boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Sem título, 2024

em torno da 14a Conferência Internacional Sándor Ferenczi

por Camila Flaborea[1]

 

Estive presente na 14ª Conferência Internacional Sándor Ferenczi que aconteceu em São Paulo, entre os dias 29 de maio e 1º de junho, um evento oficial da ISFN (International Sandor Ferenczi Network).

À convite do boletim online, venho dividir com vocês essa que foi uma das experiências mais marcantes de minha vida pessoal e profissional até hoje. Agradeço especialmente às minhas colegas Ana Fátima Aguiar e Iasmine Pereira que não apenas estiveram ao meu lado durante todo o percurso da organização, mas também escreveram junto comigo o texto que foi a base para este relato, apresentado na conferência em formato de painel[2].

A conferência deveria ter acontecido anos antes, mas a pandemia nos trancou, nos isolou e fez com que esse momento fosse adiado. Faríamos então uma conferência pós pandemia, encontraríamos um momento, um jeito, alguma saída. A partir disso, os trabalhos seguiram buscando e produzindo brechas em meio a tanto trauma e desassossego e, impulsionados por essa vivência coletiva, chegamos ao mote do nosso evento: “Psicanálise entre catástrofe e criação”, que convidava a refletir sobre clínica, política e ecologia. Falo aqui a partir do ponto de vista de quem esteve presente de forma muito intensa nos bastidores, nas entranhas de sua organização, compartilhando o esforço de algumas pessoas para criar um evento coerente com nossos propósitos éticos e políticos. Dediquei-me mais especificamente às demandas da comunicação e da  hospitalidade – e seus inevitáveis entrelaçamentos com outras áreas da produção.

O curso preparatório, o material de divulgação, os trabalhos aprovados, a composição das mesas, a festa de encerramento, tudo isso passou por um crivo que pretendeu reafirmar um comprometimento com a prática da psicanálise norteada de forma muito específica, que espero poder iluminar aqui: uma psicanálise que se pretende horizontal e colaborativa, mirando a busca pela democratização reafirmada em cada detalhe, como uma espécie de vacina contra o hermetismo branco, heteronormativo e rico. Espero que, ao final das minhas palavras, isso possa ser entendido como um horizonte, uma utopia que nos serviu de bússola e estímulo durante todos esses meses que antecederam nosso evento e nos guia, individualmente, em nossas práticas clínicas.

Talvez não seja impossível dizer que, de certa forma, essa proposta é uma releitura -ou uma ampliação- do conceito de elasticidade da técnica, cunhado por Ferenczi ainda na década de 20 do século passado. Este conceito surge, em essência, para que o analista se adapte às necessidades dos pacientes e para que o relaxamento e a confiança possam estar presentes no campo analítico.

A proposta ferencziana, revolucionária naquele momento, parece carregar em seu bojo uma essência (e por que não dizer, uma vocação) micropolítica, que foi fundamental para nos nortear. Com um pé apoiado na inovação de Ferenczi e outro nos fundamentos freudianos, nos questionávamos a todo momento, enquanto equipe de organização, a respeito de qual psicanálise queremos que fale através de nós em 2024.

Parte do Grupo Brasileiro de Pesquisa Sándor Ferenczi tem se debruçado sobre essas questões ao propor uma forma de comunicação que visa a uma linguagem direta e clara, bem como projetos de escuta de grupos minorizados. Além disso, o grupo contava com uma temporada de podcast[3] (a segunda está sendo preparada) e dois livros, de diversos autores[4]. Seria importante que esse jeito de ver a psicanálise pudesse encontrar reverberação no maior desafio do grupo: Como manter a coerência desse pensamento num evento para 950 pessoas?

Em termos de comunicação, gostaria de lembrar que o logo dessa conferência foi um grafite. O que buscamos (re)afirmar com esta escolha, com o amarelo e preto que traziam um Ferenczi fora do ambiente sisudo ainda costumeiro da psicanálise?

A deputada Duda Salabert (MG) diz que a arte urbana, da qual o grafite é um representante fundamental, pode equivaler a um poema. O grafite, diz Salabert, “nos tira do negócio e nos joga no ócio”. E aqui, incluo as palavras de Kleber Pagu, que esteve conosco nos momentos que antecederam a conferência, coordenando uma intervenção urbana no Minhocão -importante via de trânsito na cidade de São Paulo. Kleber Pagu, cujo nome artístico já faz laço com Patrícia Galvão, a Pagu, integrante do movimento modernista de 22, nos diz que:

“A arte urbana é, também, uma terapia pela fala. Artistas da periferia, bem como os milhões de trabalhadores que transitam na cidade e, também, os desempregados, não entram no MASP (Museu de Arte de São Paulo). Os artistas urbanos criam uma comunidade e se reconhecem entre si, dando dignidade à voz dos silenciados de nossas cidades. Não se trata apenas de intervenções estéticas, mas da criação de um verdadeiro ecossistema no qual se inserem artistas, a comunidade da região e a população que transita por lá. A cidade está em permanente transformação, e nós transformamos seu tecido, sua pele, suas paredes; e nos transformamos com a cidade.”

A ideia era de que o grafite e esta linguagem se fizessem sentir na conferência de forma ampla e que pudéssemos iluminar essa torção do senso comum a respeito de onde se localizam os psicanalistas e a própria psicanálise. É um dissenso que estamos propondo, acompanhando J. Rancière (filósofo francês que se dedica ao estudo das relações entre estética e política), para ampliar a ideia de que a democratização do campo psicanalítico passa  necessariamente pela comunicação que alcança de fato o outro, em emissão e escuta, e que contribui para gerar um ambiente hospitaleiro, seja em nossos consultórios, seja em nossos espaços de transmissão ou trocas institucionais.

Entendemos que é nossa responsabilidade evidenciar que só temos a ganhar com a diversidade dentro de nosso campo de diálogo, através de pontes com outros saberes, outras estéticas e outros desejos. É apenas nas conexões horizontais, ainda que assimétricas, que a violência cede espaço à equidade, em épocas de urgência de políticas reparatórias.

O medo era, e continua sendo, de repetir as violências, de não nos atentarmos para o fato de que democracia se faz nas esferas micro e macro políticas, em nossos consultórios e  instituições, tanto quanto a partir do Estado. A comunicação descuidada pode reafirmar o trauma, a hipocrisia, a segregação e o desmentido. Sabemos que a extrema direita segue seu curso de expansão, tomando territórios, redes sociais e se comunicando de forma simples e rápida com muitas pessoas. Para todos aqueles que se sentem ameaçados pela igualdade social, pela diferença humana e pelo questionamento dos privilégios, esse é um caminho dado muito facilmente, em um mundo que está tendendo ao confronto direto.

Mas a comunicação também é um meio para  reafirmar a democratização da psicanálise e da saúde mental, compondo uma comunidade que resguarda as diferenças e as acolhe de fato em seu bojo. Esperamos, com sinceridade, estar construindo pontes e condições de respeito à inclusão e ao estrangeiro. E aqui falo de nossa conferência, mas também da nossa comunidade como um todo. Porque entendemos que seja esse também o legado de Ferenczi em sua face política, com sua proposta de abrirmos mão do lugar de poder que habitamos dentro do enquadre analítico e como cidadãos privilegiados que somos, para habitarmos a arriscada horizontalidade. Porque é assim também que queremos fazer psicanálise “à brasileira”. O país que fez da antropofagia um lema artístico e político na década de 20, que saiu da ditadura na década de 80 e ainda luta por consolidar sua frágil e jovem democracia, não pode se despreocupar neste momento, talvez não possamos por um bom tempo. Gal Costa, musa da tropicália, que faleceu em 2023, cantava que “é preciso estar atento e forte”. Nós, psicanalistas, precisamos também. Certamente, há tropeços; erramos, fazemos pouco. Mas contamos com nossa capacidade de elaboração para entendermos o que pode ou não ser perdoado, o que pode ou não ser repetido e, sobretudo, como podemos avançar  institucional e individualmente.

Não é por uma coincidência ou apenas pelo afeto que me une ao Departamento de Psicanálise que o convite para essa escrita foi feito. Existe uma confluência de intenções que põe o GBPSF e o Instituto Sedes Sapientiae num mesmo campo de luta. A busca por práticas democráticas e progressistas -que une a teoria psicanalítica em sua origem, desde as clínicas públicas, desde Freud e a primeira geração de psicanalistas- reverbera nesse encontro. Se Ferenczi chega de mansinho ao Departamento de Psicanálise do Instituto (através do GT Comunidade de destino e agora através do curso de expansão Escuta com tato: A partir de Ferenczi entre trauma e criatividade), a afinidade clínico-política está posta desde muito antes. A história do Instituto e do próprio Departamento é inequívoca em defesa da democracia no país e no campo psicanalítico. Neste sentido, nossa irmandade já está anunciada em sua utopia democrática desde o primeiro instante.

Entendo que a comunicação precisa ser conectada a este contexto, pois uma comunicação efetiva leva em conta quem nos ouve e que efeitos as nossas mensagens, verbais ou não, explícitas ou não, podem promover na vivência de hospitalidade de quem será recebido em nossa cidade, departamento, evento ou consultório. Nossos esforços devem ser direcionados para deixarmos claro, em cada passo, que tipo de micropolítica desejamos fazer aqui, em nosso ambiente comunitário. Neste sentido, toda clínica tem algo de social e toda comunicação é, também, estética e, portanto, política.

Wania Cidade declarou publicamente na plenária que realizou que havia mais diversidade racial no auditório do Mackenzie naquele dia ensolarado de maio do que em 95% dos eventos de psicanálise que ela frequenta. É um passo.

É também significativo que a diversidade etária, de gênero e de orientação sexual fosse evidente.

Estive em uma das salas em que três trabalhos sobre foram apresentados girando em torno da temática queer. Entre eles, um falava sobre crianças queer. E digo a vocês, com alegria, que não apenas todas as cadeiras estavam ocupadas, mas que havia também pessoas de pé e sentadas no chão para ouvirem e pensarem juntas.

Não menos importante é dizer que a 14ª Conferência internacional Sándor Ferenczi foi a primeira a ser aberta por uma mulher, e ela se chama Jô Gondar, uma brasileira. Também coube à uma mulher brasileira indígena encerrar o evento. De Geni Nuñez, ouvimos o alerta contra qualquer tipo de extrativismo ou monocultura. Se ali estávamos lavrando a terra, estejamos atentos para que as sementes do dogmatismo colonizador sejam identificadas e substituídas o quanto antes.

Sinto ares de mudanças. E mudanças se fazem com muitas mãos e com muitas mentes.

A nossa psicanálise está sendo repensada e reconstruída cotidianamente, com nosso tempero, nosso axé e nossa luta. Ou vamos juntos ou morreremos sufocados em nossa torre de marfim. Não tenho dúvidas de qual seria a opção de Ferenczi se ele ainda estivesse vivo.  Arrisco dizer que Madre Cristina concordaria com ele.

__________

[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, interlocutora do grupo de trabalho Comunidade de destino. Integrante do Grupo Brasileiro de Pesquisa Sándor Ferenczi.

[2] O título do painel apresentado na conferência foi “O desafio da comunicação em psicanálise: o risco da linguagem hermética na forma e no conteúdo”.

[3]https://open.spotify.com/show/4tpUCsHXeBOM84CIukbeou?si=kzZNcYbKSpy0Xs9zNSEWzA

[4] Ferenczi: pensador da catástrofe. Daniel Kupermann, Jô Gondar e Eugênio Canesin dal Molin (orgs.). São Paulo: Zagodoni, 2020.
A arte da psicanálise. Rita Hentz, Denise S. Goldfajn, Bartholomeu de Aguiar Vieira, Diane Viana, Renata Mello (orgs.). São Paulo: Blucher, 2023.

uma palavra, um nome, uma frase e pressione ENTER para realizar sua busca.