Instituto Sedes Sapientiae

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Trabalho na equipe clínica e na supervisão: potências, ruídos e conflitos[1]

por Fabiana Gomes[2]

 

Como jovem analista em constante formação (como creio, não pode deixar de ser), a entrada na Clínica social do Sedes se apresentou, a princípio, com nuances muito distintas do trabalho na clínica particular. Sem entrar em minúcias quanto à chegada do paciente e todos os aspectos atrelados a essa chegada, desde o processo de seleção, recepção de pacientes em grupo, a estrutura da instituição em si e atravessamentos aos quais o paciente pode ser submetido, são muitas as camadas construídas que falam ou podem falar na transferência e na experiência analítica mesma. E aí estão incluídas cenas e experiências como um cafezinho na lanchonete, o contato com funcionários da Clínica, preenchimento de fichas e formulários, até finalmente acontecer o encontro com o analista que lhe foi designado. Nos deparamos na Clínica com um modo da transferência se estabelecer que passa pela transferência institucional – acontece uma passagem da instituição para aquele que recebe o paciente e, na sequência, a transferência com o analista pode se constituir, se manter, ou não.

Para ilustrar como acontecem alguns atravessamentos institucionais, um breve exemplo: um dos pacientes de uma recepção da qual participei experimentou o que pareceu, a mim e a outras pessoas da equipe que acompanharam o grupo, algo como um ligeiro precipitado romântico com outro participante da recepção. Ocorre que esse participante viria a ser meu paciente. Meses depois de iniciado o processo de análise, durante uma sessão, como se falasse com uma amiga, ele lança a pergunta: “Lembra do fulano da recepção?”. Devolvo a pergunta com um semblante de interrogação e interesse. Animado, relembra detalhes sobre a história de vida compartilhada pelo tal fulano na ocasião da recepção e de como ficou impressionado e comovido com o relato. Ao final da lembrança, me informa que o encontrou na lanchonete. A cena se torna, então, material daquela sessão.

Toda estrutura e trocas que envolvem, além das supervisões e reuniões de equipe clínica com profissionais de diferentes áreas, me pareceram uma importante rede de sustentação das transferências, uma rica fonte de experiência e de intercâmbio de ideias e abordagens. Confirmando essa percepção, um dos significantes que mais ouvi referenciados à experiência na Clínica social foi “riqueza” – “uma experiência muito rica”. O termo riqueza pode ser lido como abundância, fertilidade, mas também como excesso.

Caso o analista não tenha participado da recepção do paciente, antes mesmo do primeiro encontro, ele recebe o prontuário. Nesse documento, marcadamente referido ao modelo médico, podem ser encontradas informações pessoais como: nome completo, endereço e renda, assim como detalhes sobre a medicação que eventualmente esteja fazendo uso. Também podem constar impressões sobre a participação do paciente na recepção ou, no caso daqueles que já passaram por processos anteriores na Clínica, relatórios de atendimentos e de evolução [modelo médico]. Na reunião de equipe clínica, além de ler o prontuário, o analista escuta sobre seu futuro paciente.

Entendo que a análise e seus desafios se apresenta em campo, no setting. De que maneira e em que momento usar (ou não) esse conhecimento prévio, essa memória institucional? Quando se tem algum conhecimento prévio do paciente, como articular essa escuta e saberes prévios (que fazem inscrições) com o que ele lhe traz em análise? Sabendo de saída que o processo tem data de validade, como dar o tempo necessário para que a transferência se estabeleça sem se antecipar diante de tantos atravessamentos, transferências prévias e ruídos? Como lidar com o tempo cronológico – estabelecido pelo período de tempo do aprimoramento e o tempo dos processos em andamento – o tempo do inconsciente? Outra questão se apresenta: será que só existem perdas neste formato de atendimento no qual se trabalha com um tempo pré-estabelecido? Na troca com colegas, notamos, com frequência, pressa e exigências superegóicas em promover mudanças e trazer resultados para o trabalho em andamento. Isso se acentuaria por estarmos numa instituição em que os analistas participam de um curso, de um percurso de transmissão da psicanálise?

Penso que um caminho possível seja sempre o de escutar pelo paciente o que ele diz sobre si. Mantendo experiências de supervisão e intervisão como guias que podem ajudar a iluminar o processo, mas sem antecipar ou encobrir a fala do paciente.  Sem deixar que isso se sobreponha a sensibilidade e intuição do analista do caso. E, é justamente aí que a riqueza herdada com a experiência na clínica (e, naturalmente, com o estudo teórico e a análise pessoal) pode oferecer toda sua potência: quando surge na cena analítica a oportunidade de trabalhar o que se apresentou naqueles lugares.

Como num sonho com profusão de elementos, Freud nos ensina a não nos deixarmos seduzir pela eloquência e botarmos reparo, assuntarmos o que parece irrelevante:

“Quanto mais trivial, disparatado e desinteressante é um elemento do sonho manifesto, e quanto mais o sonhador se recusa a fornecer associações a este elemento alegando sua desimportância, mais ele se mostra significante para o trabalho de decifração, posto que são precisamente eles que poderão conduzir ao desejo inconsciente e à solução do sonho.”[3]

Talvez o maior desafio venha justamente daí – perceber quando e como usar a potência da experiência coletiva da Clínica, as diferentes perspectivas que se apresentam em relação a determinado caso – que podem ajudar a oxigenar, lampejar e compor memória. Mas que também podem se apresentar como ruído antecipatório. Guiar-se pelo que se apresenta em transferência na experiência analítica, tendo o amparo da rede institucional, parece ser um bom guia para esse compasso. Quão revelador pode ser um cafezinho?

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[1] Escrito apresentado no evento Espaço Clínico, do Curso de Psicanálise, em agosto de 2024.

[2] Aluna do curso Psicanálise no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] FREUD, S. Obras Completas vol IV, A interpretação dos sonhos (1900). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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