Uma clínica grupal
por Sylvia Fernandes[1]
O Projeto Clínico-Ético-Político da Clínica do Sedes elege o dispositivo grupal como uma prática clínica de resistência ao modo indivíduo de subjetivação, à massificação e à desigualdade social. Dominante em nossa cultura, o modo indivíduo se faz pelo efeito de uma crescente normalização social, avessa às singularidades e às diversidades.
O dispositivo grupal permeia as diversas ações da Clínica. As recepções de novos usuários são feitas em grupo, o encaminhamento e a construção do projeto terapêutico singular são realizados em grupo e as discussões clínico-institucionais com os aprimorandos (alunos dos cursos de especialização e aperfeiçoamento do Instituto) e voluntários são feitas em seus grupos de referência, as equipes clínicas). Acontecem diversas modalidades de atendimento grupal, dirigidos a crianças, adolescentes e adultos. A abordagem psicanalítica relativa à constituição subjetiva pode trazer um aporte singular ao trabalho terapêutico grupal, como mais uma alternativa ao tratamento do sofrimento das pessoas que nos procuram. Seguem algumas reflexões advindas de minha prática com grupos psicanalíticos que atendem adultos, na Clínica do Sedes.
O sofrimento humano está ligado às vicissitudes da relação do sujeito com o outro. O eu, formador da identidade, é composto pelas identificações com a imagem do outro, porém, a essa dimensão imaginária do outro, necessária para a constituição da subjetividade, um diferente Outro se impõe. Trata-se daquilo que é anterior e exterior ao sujeito, e o determina. É no deparar-se com essa alteridade radical, no mais íntimo e exterior de si, que o sujeito pode acontecer. Assim, uma ação analítica leva em consideração tanto a dimensão das relações com os semelhantes, vivida na história singular daquele sujeito, com o lugar e a função daqueles vínculos formadores do desejo, como a outra dimensão, a do que está sempre além do outro, anterior e irredutível.
O processo psicanalítico se dá num movimento pendular entre essas dimensões, que podemos nomear como tempos em espiral do acontecer psíquico. Como pensar esses tempos num atendimento psicanalítico grupal?
Primeiro Tempo
Tempo do risco da perda da identidade
A indicação para participar de um grupo tende a mobilizar no sujeito uma série de representações, suscitando expectativas relativas ao contato com o outro. Observa-se que, nos primeiros encontros, a identidade é colocada numa certa suspensão e o temor da indiscriminação, da perda dos limites e da invasão do outro se fazem presentes pela manifestação de um autoerotismo povoado pelas fantasias mais precoces. É vivenciado como uma volta ao período pré-especular, quando o corpo ainda se encontra numa certa fragmentação. É a constituição do eu, como a projeção de uma superfície, que possibilitaria organizar as pulsões parciais. É um tempo anterior à palavra, muito marcado pela relação fusional com o outro e pelo surgimento de fantasias originárias.
Nesse momento, o grupo ainda não existe, pois estamos diante de um agrupamento de pessoas que pulsam isoladamente. Trata-se de um tempo em que, na transferência, a tendência é que predominem os sentimentos de dependência de um terapeuta idealizado, que dê respostas e não questões.
O trabalho a ser feito passa pela construção da imagem, o asseguramento de um campo circunscrito, que possibilite o olhar ao outro, o olhar do outro, sem a dissolução nele. Trata-se de dar figura à angústia da perda dos limites. As cenas trazidas nas sessões cumprem essa função. O artifício da mediação possibilita uma distância suficientemente boa, funcionando como o Outro primordial e sua função intermediária e necessária para as construções iniciais e suas primeiras representações.
Tomar a palavra e dirigi-la ao outro têm a função de garantir a sustentação do olhar, da escuta e do sentido da palavra. Paulatinamente, cria-se um discurso comum, uma forma compartilhada de se perceber o que se repete no dizer, os elementos que chamam a atenção e as ressonâncias produzidas nos outros. É um tempo de abertura do sentido e dos processos inconscientes. É o início do grupo propriamente dito.
Segundo Tempo
Tempo das identificações imaginárias
O agrupamento pode se constituir em um grupo, quando há o compartilhamento de um sentido. Os membros sentem os efeitos das ressonâncias, em função da temática de um discurso. Assim, há um sutil reconhecimento de um outro, mas o que mais importa é o querer que o outro seja como eu. É um tempo de identificações, entretanto menos ameaçado pelo risco da dissolução da identidade. Aqui é a imagem de si que vem do outro que impera. As pessoas se encantam com o encontro, sentem-se acompanhadas, vistas, ouvidas. É o júbilo do espelhamento.
Há a sensação de pertencimento, mas manifestam-se os afetos próprios do funcionamento narcísico: a hostilidade e a sensação de exclusão diante do terceiro e da não complementariedade. Se no primeiro tempo a noção de pertencimento não estava totalmente ausente, no segundo tempo, ela não está absolutamente presente. O que possibilita as ressonâncias conferirem um certo sentido de pertencimento?
As fantasias originárias, que são postas em vigência nos grupos, são universais; assim, nesse vínculo, circulam fantasias idênticas, que podem atuar como organizadores inconscientes. Há em nossa herança filogenética, no arcabouço simbólico de nossa espécie, estruturas arcaicas que se organizam antes das fantasias construídas na experiência de cada sujeito. São matrizes transubjetivas que modelam as fantasias individuais.
Os membros do grupo se reconhecem no comum da história da humanidade, no que dá estatuto à nossa espécie, construído na história de nossos ancestrais: a sedução do outro.
Terceiro Tempo
Tempo da diferença
Se o primeiro tempo é pré-especular e o segundo é especular, o terceiro tempo é de trabalho de construção conjunta: tempo da palavra, da troca, do universo simbólico. Tempo em que a alteridade que nos habita pode acontecer.
Nesse tempo, o grupo, podendo compartilhar suas imagens e se reconhecendo nas imagens dos outros, pode também se deparar com as diferenças. Num processo de associação livre grupal, vai se surpreendendo com o que vai surgindo: ressonâncias identificatórias, mas também estranhamento com o íntimo. O trabalho de ligação pode acontecer: ligação entre imagens, entre afeto e pulsão, entre a pulsão e significante, entre emoção e sentimento. E o estranho no outro pode ser produtor de defesas, mas também de descobertas. Esse momento é crucial na constituição do sujeito singular no grupo e do próprio grupo, pois põe à prova a condição de suportar a alteridade. E a alteridade é do sujeito singular em relação ao grupo, do grupo em relação aos membros singulares e do sujeito em relação ao que lhe é estranho e familiar e ao que lhe é radicalmente estrangeiro.
As transferências passam a ser múltiplas e já existe uma identidade grupal. Há um “nós” e se faz um envoltório que separa o grupo e o distingue do que está fora. Entretanto, a diferença pode ser veiculada, sem ameaçar a permanência e o pertencimento.
Nesse tempo, acontece muito trabalho psíquico e, também, muita resistência, prerrogativa inevitável da construção subjetiva. Muitas podem ser as ameaças ao grupo: inveja, ciúme, rivalidade, disputa, sabotagem, subgrupos, acasalamentos etc.
Atualizam-se os vínculos formadores do desejo, fonte de agressividade, de rivalidade e de amor nas relações com os pais e irmãos. Manter um equilíbrio de tensão suficiente, que permita tanto o trabalho grupal e a produção inconsciente quanto a sustentação da permanência do sujeito singular, é um grande desafio. Pois todo grupo, e a todo momento, corre o risco de dissolução, com ameaças de esvaziamento, de rupturas, de abandonos e mesmo de colapso, na medida em que é do grupo negar o singular. Todo grupo está sujeito ao domínio da pulsão de morte.
Pela função continente e de significância do grupo opera-se a desalienação e a separação, sem uma desamarração simbólica. O processo não se dá nem dentro nem fora, nem no indivíduo, nem no grupo, nem interno nem externo, se dá entre instâncias – no fio que une e separa, sujeito e outro, indivíduo e coletivo.
Se somos construídos pelas nossas relações, o grupo possibilita reviver e reconstruir a relação com o outro e acessar níveis arcaicos das manifestações inconscientes, pré-simbólicas, que podem ser então simbolizadas. Pela associação livre grupal, o sujeito encontra a palavra que lhe faltava para poder significar suas vivências. Esses três tempos podem se atualizar em uma mesma sessão.
Se vivemos um tempo da individualidade e da intolerância, a clínica grupal nos faz vislumbrar um sujeito do compartilhamento, que pode advir no grupo, na radicalidade do Outro.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora de equipe clínica da Clínica do Sedes.