Instituto Sedes Sapientiae

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Civilização e barbárie. O mal-estar no caminho da psicanálise

por Maria Silvia Borghese[1]

 

O XI Congresso Internacional e XVII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental aconteceria no Recife em setembro passado. Cidade que não visitava há quase duas décadas, de cara pensei que seria muito bom retornar. Assim, confesso que decidi participar do evento animada, primeiramente, por razões bastante concorrentes entre si. Desejava passear pelo Recife antigo, subir e descer as ladeiras de Olinda, respirar a história da região, aproveitando de sua culinária, sua vida cultural, apreciando ainda aquelas praias de mares verdejantes. Todas essas coisas me seduziam. De outro lado, porém, o eixo proposto para o congresso era também fascinante: Eros e Civilização. Há muito tempo, venho estudando os autores da Teoria Crítica da Sociedade, sendo Herbert Marcuse um autor que conversa muito de perto com questões, a meu ver, fundamentais. Sendo mulher, brasileira, psicanalista, vivendo tempos de complexidade quase indecifrável, muito cedo saí em busca de fazer dialogar a psicanálise com a perspectiva critica, apostando em uma psicanálise que não se furtasse a interrogar o contemporâneo, mas que se deixasse também por ele ser confrontada.

Obviamente, ir ao congresso se tornou em imperativo daqueles difíceis de escapar. E lá fui eu para o Recife, levando na mala um texto para apresentar em uma das mesas.

Logo na chegada, contudo, fui tomada por um incômodo – já o mal-estar? – porque estranhei concretamente o hotel onde o congresso iria acontecer. O lugar era de uma ‘deselegância discreta’ decepcionante. Nada mais ‘anti’ Recife. Um prédio feioso e acinzentado em uma rua paralela à praia, sem qualquer vista para os lindos mares de Pernambuco. As salas determinadas às atividades eram fechadas e sem janelas, iluminadas por luzes brancas, cadeiras desconfortáveis, ar condicionado que distribuía o ar frio a partir de máquinas instaladas junto ao chão, deixando as salas com um clima polar para as pessoas que se sentavam mais próximas às mesas para, ao contrário, submeter as outras pessoas, que se sentavam do meio para o fundo da sala, a um calor infernal. Definitivamente, o espaço não era convidativo ou acolhedor. Seriam os desígnios de Tânatos?

Precipitei-me a pensar que o tema proposto para fazer a psicanálise e os psicanalistas trabalharem corria o risco de se transformar apenas em uma moldura vazia. No entanto, comecei a encontrar colegas e amigos, fui me deparando com muitas pessoas chegando, circulando, conversando. Havia um burburinho, inúmeras mesas já iniciavam e relendo a programação, imediatamente, dei conta do que teríamos pela frente: trabalho de Eros!

Passadas essas impressões iniciais, pude acompanhar um Congresso forte e vibrante. Psicanalistas, de diversas regiões do Brasil e do mundo, puderam dizer a que vieram, apresentando suas inquietações que os atravessavam desde a clínica, dos significativos impasses sociais da atualidade, do mal-estar que se intensificou no atravessamento de uma pandemia cruel, do recrudescimento da extrema direita no mundo, dos quatro anos sombrios de um governo fascista no Brasil. A proposta dos organizadores do Congresso de “trazer Marcuse de volta” se mostrou acertada por muitas razões e, de fato, incitou a todas e todos psicanalistas que participaram – grande maioria, brasileiros – a apresentarem um pensamento psicanalítico vicejante, crítico, com produções que partem do nosso fazer cotidiano, das questões que têm confrontado e desafiado a psicanálise a buscar respostas ou, ao menos, apontar caminhos possíveis.

O que cabe à psicanálise? Transversalmente, essa era uma pergunta que ia sendo feita, em uma trama de temas, perguntas, diferentes olhares. A psicanálise, claro, só pode sobreviver assim, sendo posta a trabalhar. Penso que esse foi o principal mérito do Congresso, aliás. Nesses tempos, em que as velhas questões sobre a atualidade e/ou validade da teoria e clínica psicanalíticas voltaram a ser trombeteadas, o Congresso demonstrou fartamente que a ‘velha senhora’ não se converteu ainda em um anacronismo. Feliz ou infelizmente.

Embora seja difícil abordar neste breve texto a variedade significativa dos temas apresentados nas mesas, simpósios, conferências e minicursos, penso que se pode ‘fotografar’ parte da trama tecida ao longo dos quatro dias do Congresso, pois ela possibilita vislumbrar a riqueza e a complexidade das questões ali tratadas, dos debates e das conversas que foram feitos. A meu ver, o Congresso foi bastante exitoso pela apresentação de um mapa, um guia, a nos tirar do emaranhado de fios nos quais os sujeitos se veem enredados em sofrimentos decorrentes de múltiplas densidades.

Eros e o feminino; Mal-estar na maternidade e paternidade; Mal-estar, religião, poder e transição de gênero; Psicanálise extra-muros: fazeres plurais; Eros, erros e errâncias; Ódio e amor; travessias contemporâneas; Impasses de Eros na infância; A civilização como sintoma; A vergonha nos limites entre Eros e Tânatos; Psicanálise e autismo: a que se destina?; O enquadre interno do analista e o paradigma contemporâneo; Mal -estar na condição amorosa e a ars erótica’; Neurose, psicose e autismo em tempos de forclusão generalizada; Eros e seus desdobramentos no luto e no envelhecimento; Eros na era da aceleração; Deu ‘match’ sobre o masoquismo e o encontro de Eros e Tânatos; Dominações contemporâneas e seus efeitos sobre Eros; Sintomas contemporâneos e o páthos neoliberal; Escutar o mal-estar e ler o invisível; Ciborgues digitais: potências e paradoxos; O corpo e suas vicissitudes na contemporaneidade; Reflexões psicanalíticas sobre violências (extra)ordinárias; A sobrevivência psíquica na clinica contemporânea: abuso sexual, transidentidades e racismo; A experiência clínica da perversão ou o outro sexual e sua psicanálise; O monstro Preciado e o mal-estar na psicanálise; A presença de Eros na clínica do trauma; Psicanálise e psicotrópicos: par possível?

Este passeio aleatório sobre alguns títulos das mesas e dos trabalhos apresentados permite entrar, de certo modo, na riqueza e densidade das questões abordadas. A maioria absoluta dos textos refletiu sobre os embates atuais do fazer psicanalítico, de uma psicanálise que não volta as suas costas para o mundo no qual está se desenvolvendo, para o mal-estar na atualidade: as dores e o sofrimento psíquico inscritos na submissão dos corpos, na exploração excessiva das almas, na rudeza e violência com as quais é (im)possível viver nos dias de hoje.

Não nos sentimos à vontade com o tipo de civilização que conseguimos alcançar, escreveu Freud em 1929. De certo modo, essa foi a ponta do novelo perseguido por Marcuse em Eros e civilização (1955). Contudo, seguimos buscando ir além dos sobrevoos freudianos fundamentais, que desvelaram irremediavelmente o quanto as mazelas sociais adoecem psiquicamente o sujeito. Marcuse certamente resgatou e relançou essa discussão. Como guias carregando velas que queimavam suas mãos por trilhas e campos minados, certamente nos deixaram trilhas apontadas. Perder-se nesse trajeto é um risco necessário a correr, pois o ‘desencastelamento’ da psicanálise de seus supostos lugares ‘puristas’ ainda merece ser defendido.

E foi certamente o que se viu no Congresso: a busca de superação das dificuldades e resistências, para o desvelamento do fazer psicanalítico na contemporaneidade. O encerramento no exame de problemas clínicos, dispensando ou evitando reflexões mais amplas sobre as condições objetivas dos sujeitos, não é desejável, não é possível. Apesar de, por vezes, termos que tolerar a imprecisão dos referenciais ou a claudicância de nossas produções teóricas, como ensinou Freud, os dias de trabalho no Recife permitiram conhecer inúmeras produções rigorosas e consistentes.

Vários colegas do Departamento estiveram presentes, companhias afetivas daqueles dias, mas principalmente interlocutores argutos, psicanalistas alertas. As conversas e a troca de experiências foram ricas e estimulantes. Seus trabalhos foram, a meu ver, escritos no fio da navalha da clínica, da política e da reflexão teórica, tarefa fundamental, pois esse esforço é imprescindível para a produção de conhecimento. Não citarei todas e todos, os links de suas mesas podem ser encontrados no site do Congresso. Mas gostaria de mencionar e agradecer a meus companheiros de mesa Maria Laurinda Ribeiro de Souza e Nelson da Silva Jr. Correndo o risco de cometer injustiças, escolho ainda destacar dois textos, que conversaram mais de perto com minhas inquietações atuais: ‘A vergonha e o silenciamento das mulheres vítimas de violência de gênero’, de Lilian Carbone, e ‘Vida e morte da palavra’, de Flavio Ferraz.

Finalizo, recomendando a brilhante conferência proferida por Jurandir Freire Costa: ‘As várias faces de Eros’. Corajosamente, Jurandir toma para sua análise as pessoas que ele chamou inicialmente de migrantes sociais. Quem são eles? Quem são essas pessoas, em sua maioria homens, que se encontravam perdidos ou expulsos do tecido social? Quem são as pessoas cooptadas visceralmente pelo recrudescimento de uma extrema direita mais violenta e igualmente fascista à do inicio do século XX na Europa? Jurandir levou sua análise às últimas consequências a que se pode chegar em eventos desse tipo, relatando inclusive um fragmento de sua clínica, na qual entra em embate com um paciente que negara diversas vezes, durante as sessões, a existência da ditadura militar no Brasil. Buscando tratar das anomias atuais, argumenta que o trauma cultural não afeta apenas os sujeitos ‘vulnerabilizados’, mas também aqueles que reproduzem a opressão e a violência. Ao se colocar, assim, propriamente embrenhado em sua dolorosa reflexão, Jurandir não nos deixou outra saída: fazer uma psicanálise a serviço da contemporaneidade. O Congresso evidenciou que a ‘velha senhora’ levantou da cadeira de rodas, está tentando escolher suas melhores armas para, inescapavelmente, seguir no campo de batalha.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise.

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