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Encontros e desencontros na psicanálise

por Maria de Fátima Vicente[1]

 

O texto a seguir foi lido como disparador de um debate na Secção Clínicade 12 de setembro de 2024, atividade regular promovida pelo Corpo Freudiano, cuja proposta é a de discutir um caso clínico clássico da psicanálise. Fui uma das pessoas convidadas para essa ocasião, cujo caso clínico proposto pela organização do evento foi a análise de Ferenczi com Freud. As características do texto buscaram corresponder tanto ao tema quanto aos parâmetros sugeridos – os de uma leitura de até 15 minutos que pudesse promover interlocução.

 

Um encontro auspicioso

É frequente que vários autores, ao mencionar Ferenczi, se refiram a ele como “genial” – nomeação que é regularmente acompanhada por elogiosa e profusa adjetivação de sua clínica e de suas postulações teóricas – porém, “genial” parece ser um substantivo que o define. Alguns lhe ressaltam também um traço de bom humor, o humor de um homem sorridente. Curiosamente, essa característica será a única que Ferenczi atribuirá como um bom resultado de sua análise com Freud.

Essa figura genial e sorridente contrasta com a imagem austera dos demais psicanalistas da primeira geração e com a do próprio Freud, mas não com aquela imagem que Freud apresentará a Ferenczi, suas características mais gentis e lúdicas. Reservará para ele, na intimidade da correspondência, as designações de Paladino e Grão-vizir, chamando-o às vezes de Meu Grão-vizir ou até mesmo de Meu Secreto Grão-vizir. A essas palavras, que recebia gostosamente de Freud, Ferenczi responderá “Eu sou o astrólogo da Corte”.

A autodesignação de Ferenczi “Eu sou o astrólogo da Corte” evoca, para mim, a história bíblica de José do Egito que, antes de ser do Egito, foi o filho preferido de seu pai, Jacó. José, que os irmãos vendem como escravo e que será comprado por mercadores, até chegar, em périplos diversos, a servir ao Faraó. Naquela corte adivinhará o futuro do Egito, por meio da decifração do significado dos sonhos do Faraó, e indicará as medidas de precaução para os tempos de incertezas e de fome, o que sua ciência e magia poderão prever. Garantirá, dessa forma, um futuro para aquele Egito, o que acabará por dar ensejo ao reencontro de seu pai e de seus irmãos e à restauração dos laços familiares. José do Egito já havia habitado os devaneios identificatórios de Freud que, às vezes, havia se representado como aquele onirocrítico, identificando-se com o filho da segunda esposa de Jacó, a mais amada por ele. Freud, que propôs que os sonhos fossem lidos como um rébus, em uma espécie de parentesco com a escrita egípcia.

Nos desdobramentos de sua participação no Movimento Psicanalítico, Ferenczi terá um papel proeminente nas realizações de expansão e consolidação da Psicanálise, fazendo jus ao destino que os epítetos de Paladino e Grão-vizir indicavam, mas sua presença como clínico e suas formulações teóricas originais demonstrarão o quanto o astrólogo da Corte era capaz de pensamento antecipatório, intuitivo na clínica e na teoria, pensamento pouco afeito à tradição, embora seguisse reverenciando o fundador.

Um traço equivalente ao de José para Jacó parece estar presente no astrólogo da Corte Ferenczi: ele é o preferido de Freud, com o qual mantém estreitas relações, mas parece, como José, ter pouco ou nenhum bem querer da parte de seus irmãos. Desses irmãos e de seus (des) afetos, irá, no futuro, sobressair a indisposição de Ernst Jones para com ele, que havia sido seu primeiro analista, e sobre o qual escreverá:

Nos primeiros dois anos de 1930 a saúde mental de Ferenczi conturbava-se seriamente, e o seu estado de sensibilidade resultou em determinada conversação franca entre ele e Freud, de que adviriam resultados benéficos (…) Ferenczi trouxe à baila o passado: por que Freud não se tinha portado de maneira mais carinhosa com ele, quando se pôs de mau humor naquela viagem a Sicília há vinte anos passados, e por que não analisara a hostilidade reprimida de Ferenczi, durante as três semanas de análise há quinze anos passados?(JONES, 1970, p. 707).

Jones parece não ter outra possibilidade de compreender as demandas de Ferenczi a Freud a não ser como loucura. Não lhe é possível reconhecer que são os restos da análise o que faz Ferenczi insistir em retomar algo que ficou sem solução e sem possibilidade de solução, ainda que no passado, já que o que foi vivido sem se tornar experiência permanece ativo e produzindo sofrimento. Quanto a Ferenczi, em 16 de fevereiro de 1932, ele escreve em seu Diário Clínico, sobre o que considera uma análise concluída:

A imagem de um final de análise bem-sucedida apresenta-se então: poderia assemelhar-se, de certo modo, à despedida de dois alegres camaradas que, após anos de duro trabalho, constatam ser bons amigos, mas devem admitir, sem cenas trágicas, que a camaradagem não é a vida e que cada um deve desenvolver-se de acordo com os seus próprios projetos de futuro. É assim que se poderia imaginar o desfecho feliz da relação pais-filhos. (FERENCZI, 1990; p.70).

Conclusão que é precedida por trabalho árduo entre analista e analisante, do qual resultaria uma separação necessária e a possibilidade de novos caminhos pessoais e intelectuais para cada um deles. Ferenczi documentará, por meio do Diário Clínico e por meio de outras publicações, as inovações técnicas, as reflexões teóricas e as postulações sobre as condições necessárias ao analista para conduzir uma análise até aquelas consequências; o que será o principal modo de dar continuidade à sua contribuição à Psicanálise, mas também de dar continuidade à sua análise pessoal. Nesse último caso, com o limite incontornável do impossível de uma análise sem analista.

 

A centralidade do trauma nessa história

É possível que Ferenczi tenha estado, desde o primeiro momento, em uma relação transferencial com Freud, em que este e suas produções foram inspiração e estímulo para ele, o que poderia ser considerada um boa transferência de trabalho, não fosse o permanente e sutil obstáculo da disposição de Ferenczi em não contrariar Freud e de enaltecê-lo. Possivelmente tal relação idealizada e sua incontornável ambivalência estivessem presentes como tônica das relações dos psicanalistas da primeira geração com Freud. O lugar de fundador mantinha Freud como a referência teórica e clínica do que Psicanálise queria dizer e deveria seguir querendo dizer. O que provavelmente limitava fortemente sua possiblidade de escutar seus seguidores em análise, assim como limitava àqueles em seus caminhos pessoais, em suas invenções clínicas e produções teóricas. Mas lhes dava um lugar de pertencimento em que trocas eram possíveis. Nesse contexto, cada um deles encontrou as saídas singulares para garantir suas produções clínica e teórica, mais ou menos relevantes segundo o caso, e cada um o fez de acordo com seus próprios percalços sintomáticos.

As contribuições de Ferenczi à clínica e à teoria psicanalíticas são hoje não apenas conhecidas como também reconhecidas, além de possibilitarem significativos aportes para o tratamento psicanalítico nas condições contemporâneas. Sem pretender retomar aquelas contribuições de modo abrangente, dado os limites desta apresentação, considero que deva ser destacada a centralidade que a teoria do trauma, conforme proposta por Freud em 1894, irá obter nesse percurso. Ferenczi fará a derivação dessa teoria a partir de sua clínica, em que trabalhará sobre a repetição insistente do trauma nas análises. O que propugnará que seja admitido pela Psicanálise concerne mais ao desmentido que ao acontecimento originário, pois à decepção com a violação sofrida pela criança se sobrepõe a recusa do adulto “de confiança” em ocupar o lugar de testemunha que lhe é demandado. Tal duplicação trará consequências patológicas complexas, das quais destaco particularmente a atomização do eu, a fragmentação do eu – às quais Ferenczi chamará posteriormente de clivagem do eu, o que me parece muito asséptico. É a fragmentação, a atomização que Ferenczi pretende restaurar mediante suas inovações técnicas e teóricas.

A experiência traumática, cujo retorno e insistência nos tratamentos se tornará o substrato de suas ações clínicas, a partir das quais virá a postular o traumatológico, o desmentido e assinalará o lugar da testemunha, também será considerada no contexto da relação analítica. Ferenczi incluirá o psicanalista nessa série das figuras que, responsáveis pelos cuidados, que até então não eram objeto de atenção dos psicanalistas, trairá sua responsabilidade por meio de atitudes que levem ao desmentido.

Como derivação dessas formulações, irá propor que, no lugar do desmentido, da frieza, da indiferença, deverá advir a empatia, o sentir com. Nesse lugar deverá advir a autenticidade, a reciprocidade, a horizontalidade. A análise mútua comparece, inicialmente, como o que poderá levar a essa condição, uma vez que os pontos cegos para o analista são visíveis para o analisando. Ferenczi tratará desses pontos cegos de Freud diretamente em seu diário, sempre a título de sublinhar as condições necessárias a um psicanalista para que uma análise siga seu percurso resolutivo, tido como radicalmente alcançável. Desenvolverá, de forma pioneira, reflexões sobre as condições necessárias ao psicanalista para poder analisar, incluídas as referências aos finais da análise que, mesmo a dos psicanalistas, deveria ser uma análise pessoal.

No processo de suas inovações técnicas e das elaborações teóricas, assim como da escrita do Diário Clínico, Ferenczi irá progressivamente se distanciando do meio psicanalítico mais imediato e se isolará principalmente de Freud. Se esse isolamento pareceria necessário à sua produção original, ao que parece, irá se converter em uma das condições para o desenlace nefasto daquela relação. A supressão progressiva da intimidade que havia sido garantida pela correspondência contínua, da qual ele passa a se subtrair, parece retirar de Freud os derradeiros traços de uma presença afetiva, presença que sustentava ainda a possibilidade do prosseguimento de Ferenczi naquele campo. A análise indireta que levava adiante por intermédio de seus pacientes e as reflexões que daí decorrerão parecem passar a concentrar sua atenção mais significativa.

Embora Freud não tenha como estar totalmente a par dos caminhos que Ferenczi está trilhando, ele registra o afastamento progressivo de Ferenczi, cobra-lhe a presença – inclusive institucional – e o admoesta sobre os riscos do isolamento. Tem a opinião que os desenvolvimentos teóricos de Ferenczi têm uma vertente sintomática, mas isso não o preocupa, enquanto esses desenvolvimentos pareçam promissores para a Psicanálise. Repete-se, nessa conjuntura, a dita frieza de Freud, que se preocupa com o colega/pupilo, mas não lhe reconhece o sofrimento, que é também o motor daquelas pesquisas, formulações e elucubrações. Só irá se indispor definitivamente com ele no momento em que discordará radicalmente do conteúdo da produção de Ferenczi e lhe recomendará, nessa ocasião, cautela e espera, que não (se) exponha no Congresso próximo com a apresentação de seu trabalho. Conselhos que Ferenczi não seguirá. Aparentemente, Freud fica agastado com essa rebeldia e preocupado com as condições mentais do antigo filho predileto.

A mim parece que um dos elementos que levou Freud à conclusão da irreversibilidade daquele afastamento e à ruptura, foi sua estupefacção com o peculiar “retorno a Freud” que seu pupilo estava realizando. Em uma carta a Anna ele escreve sobre Ferenczi, após um encontro particularmente desencontrado, em que Ferenczi insiste em um momento pouco adequado, em ler para ele seu artigo

…ele regrediu completamente a concepções etiológicas em que acreditei e a que renunciei 35 anos atrás: que a causa regular das neuroses são os traumas sexuais da infância, dito praticamente nas mesmas palavras que eu usei.

A ideia de progresso da psicanálise era tributária de uma concepção da História que avança, concepção própria à época, embora essa História possa ter seus percalços de vez em quando, como uma guerra, por exemplo, tal como a I Guerra, que desde 1918 todos haviam julgado que teria acabado. Uma concepção de avanço científico que não admitia nem regressões nem retrocesso.

 

A utopia da restauração

Para Ferenczi, suas proposições teórico-clínicas assim como o analista ocupando o lugar necessário levariam a cura para além da análise dos sintomas, atingiriam a transformar o caráter e as injunções determinísticas da história libidinal subjetiva, tais como o trauma e o desmentido do trauma, que mantinham o sofrimento. Seria possível levar a análise até a restauração do eu atomizado pelo trauma, poder-se-ia alcançar, recuperar, um estado de liberdade, tal qual o da criança. A psicanálise poderia colaborar na construção do homem novo.

O homem novo é uma ideia que habita a Europa naquele momento do pós guerra de 1914-1918. A ideia tem raízes filosóficas sólidas e ganha corpo na realidade política da URRS, em que tal sintagma fará História, inicialmente de forma auspiciosa, posteriormente derivando para o execrável Gulag; mas, naqueles entretantos, ainda goza de respeitabilidade. A revolução terá eliminado os vícios do passado e da tradição e construirá o homem novo por meio do cultivo de sua bondade intrínseca. Quando da publicação de “Para Além do Princípio do Prazer”, algo desse pensamento utópico difusamente presente no campo psicanalítico[2] ficará abalado. Não para Ferenczi, pois há nele a convicção que a Psicanálise possa ser o método capaz de resgatar a vida de suas amarras institucionais, caracteriais, políticas e sociais, pela restauração do eu fragmentado e pela reconexão com a energia cósmica, pela restauração e renascimento de um novo Eu. Assim, em 28/06/1932 Ferenczi escreve em seu diário:

“As hipóteses audaciosas a respeito do contato de um indivíduo com  todo o universo devem ser consideradas não só do ponto de vista segundo o qual essa onisciência torna o indivíduo capaz de determinadas performances, mas também (e isso talvez seja o mais paradoxal de tudo o que foi dito até hoje) na perspectiva de que tal contato possa agir de um modo humanizante sobre todo o universo.(FERENCZI, 1990; p. 188).

E, de um modo mais circunspecto, sobre a possível “lenta eclosão de uma benevolência ingênua” a qual poderia vir a acontecer por meio de se possibilitar que “pulsões puramente egoístas pudessem ser em parte realmente satisfeitas e que a bondade neurótica possa ser erradicada”, ele escreverá dois dias depois:

O trabalho preparatório para isso deveria ser fornecido pela educação das crianças, mas o trabalho preparatório para a educação das crianças é a experiência e prática psicanalíticas.(FERENCZI, 1990; p. 195).

E o que chamamos progresso é essa tempestade

Em janeiro de 1978 estreia em Nova York o filme de Ingmar Bergman O ovo da serpente, que se passa em Berlim, em novembro de 1923. O personagem protagonista, um judeu trapezista, descobre que seu irmão se suicidara, e na miserabilidade da vida da cidade, Abel e a cunhada Manuela tentarão sobreviver, talvez viver. Naquele contexto, irão trabalhar em uma clínica clandestina que realiza experimentos com seres humanos. Um deles consiste em deixar isolada uma mulher em contínuos cuidados a seu bebê recém-nascido que, devido a uma síndrome, chora ininterruptamente. O experimento pretende medir quanto tempo ela levará até matar seu bebê. Não me lembro quanto tempo ela leva, mas o mata.

Embora Freud tenha escrito bastante precocemente seu texto “Considerações Contemporâneas sobre a Guerra e a Morte” – apenas alguns meses depois do início da Guerra de 1914-1918 – e embora nele tenha desenvolvido a arguta percepção sobre o papel do Estado em relação aos cidadãos não combatentes em tempos de Guerra, e embora ele houvesse padecido fome, frio e angústia durante o período de duração daquela guerra, aquele período foi também um período muito produtivo, com poucos pacientes e muito tempo para escrever. O término da Guerra o encontrará disposto e decidido a repensar e reposicionar a posição dos psicanalistas na sociedade, pois considerava que pudessem ficar do lado errado da História, caso não revissem seus métodos. Ele dirá “embora a situação pertença ao futuro (…) deveremos estar preparados” (DANTO, 2019; p. XXI). A proposta das clínicas públicas europeias, gratuitas, pretendiam atender a esses propósitos, cuja direção ética seria ajudar a restaurar a individualidade e a participação social dos empobrecidos sobreviventes, ex-combatentes ou não combatentes. A Guerra atingira a todos. O método que Freud propõe à época, para tal restauração, seria a técnica ativa de Ferenczi.

Mas, apesar de tanto entusiasmo e precauções, não haveria o que pudesse preparar a todos para o que se tecia nos porões, nas clínicas clandestinas, nos suicídios desesperados, na fome e na brutalização dos corpos como mercadorias. O pós Guerra era apenas o interregno para um segundo tempo traumático, de cujos desdobramentos o primeiro tempo tinha sido apenas parca amostra.

O trauma daquela Guerra não se assemelhava aos outros, pois essa Guerra é diferente. Dela os soldados voltarão emudecidos, tendo perdido a possibilidade de tornar o horror uma experiência compartilhada e transmissível. Ou de apelar para que alguém de confiança testemunhasse suas vivências do horror. A neurose traumática dessa Guerra, porém, permitirá reconhecer os sonhos traumáticos, a compulsão à repetição e o quanto brincar e nomear é façanha civilizatória. Mas desconheço relatos clínicos sobre o tratamento desses soldados retornados nessas condições.

Da segunda Guerra os soldados não voltarão mudos, voltarão expropriados de suas vivências, para sempre culpados de haverem sobrevivido. Muitos com algo que tornava impossível prosseguir vivendo. Eles são as testemunhas do inominável, mas quem testemunhará pelas testemunhas?

A II Guerra irá pôr Ferenczi novamente em contato com Freud, pois, ainda que muito doente – padecia de anemia perniciosa, que respondia mal ao tratamento administrado – três semanas após o incêndio do Reichstag, bastante alarmado com o progresso das ações de Hitler na Alemanha, ele escreverá a Freud exortando-o a que este saia da Áustria, “com sua filha Anna e com alguns poucos pacientes” e o aconselha enfaticamente que se exile na Inglaterra. O médico de Ferenczi considerará que esse seu pessimismo – Ferenczi também pensava em se refugiar – era efeito de seu estado patológico. Freud lhe responde que não pretende deixar Viena, pois acredita que na Áustria aquela guerra “não atingiria a desfaçatez da brutalidade tal como na Alemanha”. Ele havia respondido a Marie Bonaparte em termos muito semelhantes, quando ela o convidara a se dirigir a St. Cloud e afirmará sua crença que as investidas de Hitler não passavam de bravatas, que a França e a América saberiam controlar à distância. Freud diz: “As brutalidades que se notam na Alemanha parecem que estão diminuindo.”

Ferenczi morreu pouco depois daquela sua carta e não pode ver suas profecias se realizarem; Freud, entretanto, assistiu às primeiras escaladas do brutalidades de Hitler em direção à solução final, que não chegou a ver.

Como comentário final, gostaria de introduzir a conjectura de que o desenlace nefasto das relações entre Ferenczi e Freud foi também efeito de uma certa dose coletiva de negacionismo presente no pós Guerra e que ambos disso fizeram parte, pois viveram uma espécie de busca de restauração do “eu atomizado” pelo trauma ou das consequências diretas e indiretas da Guerra, restauração como processo do qual não haveria nem restos nem escória. Tudo poderia ser representado, inscrito, admitido e ab-reagido, restaurado, pela Psicanálise. Curiosamente, nessa relação, Freud teria sido o mais otimista, o mais negacionista – a Psicanálise poderia resgatar a individualidade dos empobrecidos e precarizados cidadãos europeus pós Guerra e levá-los a retomar a participação social. Aquele Ferenczi que reputava à sua análise ter lhe possibilitado ser bem humorado, reencontra seu pessimismo profético, e novamente não é escutado.

Havia uma diferença importante entre ambos nessa História, pois diferentemente de Freud, Ferenczi estivera diretamente na Guerra, como médico e, possivelmente, muito dessa vivência não pode ser acolhida nem por ele, nem por Freud, mas lhe possibilitou pressentir o horror que novamente se avizinhava. Freud permaneceu sem dar ouvidos ao mau humor de seu paladino e também não leu o que escreveu, pois nas respostas àquelas duas pessoas que o amavam – Marie Bonaparte e Sándor Ferenczi, sua escrita atesta que a brutalidade já está presente. Nos anos seguintes, terá que se haver com isso e em um de seus derradeiros trabalhos – “Moisés e o monoteísmo” – tentará lançar luz sobre a História como trauma.

São Paulo, 08 de Setembro de 2024

 

Referências Bibliográficas

DANTO, Elizabeth Ann / As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social 1918- 1938. Tradução Margarida Goldstein – 1ed – São Paulo: Editora Perspectiva, 2019. (Coleção Estudos; 368/coordenação J. Guinsburg (in memoriam)

FERENCZI. Sandor / Diário Clínico: [Tradução de Álvaro Cabral; Revisão da Tradução: Claudia Berliner], – São Paulo: Martins Fontes, 1990.

JONES, Ernest / Vida e Obra de Sigmund Freud Volume II [Tradução de Marco Aurélio de Moura Mattos; Introdução de Lionel Trilling / Organização e Resumo de Lionel Trilling e Steven Marcus]; Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.

__________

[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora e supervisora no Curso de Psicanálise.

[2] À proposta de Freud da criação de Clínicas Publicas europeias, de atendimento gratuito e dirigida extensamente à população empobrecida e traumatizada do pós guerra será recebida e assumida pelos psicanalistas de primeira geração e alguns da segunda, dentre os quais se encontram psicanalistas comunistas, socialistas e social-democratas.

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