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Evento: O tronco e os ramos – GT Matrizes Clínicas

por Michael Reuben [1]

 

No final de 2022, surgiu a proposta de um novo grupo de trabalho dentro do Departamento de Psicanálise, cujo objetivo seria o estudo das “matrizes clínicas” no contexto da história da psicanálise de Freud até hoje. No período atual do grupo temos nos debruçado sobre explorar a epistemologia e a história da psicanálise presentes na obra de Freud. A proposta seria de se situar com Freud e além dele, acompanhando os desdobramentos e a expansão da construção da metapsicologia psicanalítica, atualizados através de sua obra e sua arborescência, ao longo do tempo. Após alguns meses de frutíferas discussões e leituras, surgiu no grupo a proposta de convidar Renato Mezan para um evento interno ao Departamento de Psicanálise, para ele expor suas propostas e pesquisa sobre o tema do legado freudiano e suas ressonâncias com nosso tempo. Receber o Mezan, agora, como uma visita, em sua própria casa…

Seu livro O tronco e os ramos (2014) havia sido publicado dez anos antes, e achamos que seria um motivo a mais para organizarmos um evento e não deixar passar em branco essa efeméride. Nesse período, desde sua publicação, outros autores também abordaram o tema das matrizes e dos modelos em psicanálise e a história das ideias em psicanálise sob diferentes, e por vezes, semelhantes perspectivas ante aquelas propostas por Mezan. Destacam-se a proposta de Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho, com o livro Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura (2018), assim como o livro Relações de objeto, de Decio Gurfinkel (2017), entre outros.

A sugestão do coordenador do grupo, Decio Gurfinkel, foi fazer um breve passeio por diferentes autores que se debruçaram sobre o tema. Parafraseando Decio: o grupo de trabalho ainda está numa fase de enquadramento, assentando as bases do edifício teórico que planejamos percorrer e construir juntos. Nesse início de jornada, portanto, exploramos o pensamento de alguns desses autores, o que nos permitiu apurar nosso olhar frente a diferentes visões epistemológicas presentes no seio da teoria psicanalítica. O grupo chegou “aquecido” para o evento, pois tínhamos explorado, até aquele momento, diferentes modelos teóricos e como, por meio deles, se havia tentado manter calibrada a “bússola” que nos orienta no vasto território da teoria e clínica psicanalítica. Obviamente, há contradições, encontros e desencontros entre as diversas escolas de psicanálise, como podemos constatar na sua edificação. Colocá-las em perspectiva, evidenciando os momentos de continuidade e de rupturas, é essencial para termos uma visão coerente frente à dispersão da comunidade psicanalítica. Como destaca Mezan: “Os psicanalistas não falam a mesma língua!”

A partir do desejo de organizar esse evento, nos dedicamos a formular questões a serem levadas para o Mezan e, assim, podermos ter uma “escuta ativa” para a exposição que seria feita por ele no dia do evento. Entre tantas questões levantadas, destacam-se: existem outras matrizes pós-freudianas? No desenvolvimento das escolas há uma tensão entre diversidade e conservadorismo? Qual seria o diálogo possível entre a teoria das matrizes clínicas proposta por Mezan e as ideias de Figueiredo e Coelho Junior? Matrizes clínicas x matrizes e modelos em psicanálise? Podemos substituir a matriz da histeria pelo modelo do sonho? Há uma psicanálise brasileira?

No artigo “Paradigmas e matrizes clínicas” (2006), Renato Mezan, escrevendo sob o viés de um historiador, coloca as bases de sua proposta de pesquisa, que combina os referenciais epistemológicos e cronológicos para pensar as continuidades e rupturas no campo psicanalítico. Talvez, em consonância com outros autores contemporâneos, Mezan tenta dar conta da dispersão presente em tantas línguas que são faladas na comunidade psicanalítica mundo afora. Procurar um common ground tem sido o objetivo de muitos pensadores para falar sobre as modificações e contradições da técnica e da teoria psicanalítica presentes na diversidade das escolas.

Como eixo central de sua proposta de pesquisa, Mezan dá seguimento às ideias de Greenberg e Mitchell – de que, em psicanálise, existem dois paradigmas principais, o pulsional e o relacional. Mezan acompanha o modelo proposto por esses autores, mas ele o considera abrangente demais. Assim, expande-o e o coloca em tensão com a proposta de se pensar na definição do que ele chama de matrizes clínicas, sempre sob a hipótese de que em cada matriz haveria um modelo metapsicológico homólogo que se articularia com a teoria e a clínica freudianas. Ele propõe uma sequência para se pensar nas matrizes clínicas, tentando seguir os passos da lógica da descoberta de Freud. Mezan credita a Paul Brecherie a ideia de ligar os modelos metapsicológicos que ele identifica em Freud ao conceito de matrizes. Dessa maneira, Mezan define as quatro matrizes: uma matriz baseada no modelo da histeria, uma fundada no modelo das psicoses, uma baseada no modelo da melancolia e, por uma firmada no modelo da neurose obsessiva. Mezan se diferencia um pouco de Brecherie no que concerne à ordenação da “descoberta” cronológica desses modelos, situando a histeria como modelo fundante da metapsicologia e a neurose obsessiva como um modelo subsequente e suplementar presente desde os primórdios da clínica de Freud, enquanto Brecherie situa que a matriz clínica da neurose obsessiva se evidenciaria mais adiante na obra de Freud.

Há uma pesquisa em aberto tanto por Mezan como por Decio Gurfinkel, onde o primeiro deles propõe a existência de um terceiro paradigma, o paradigma subjetal (baseado no modelo de Lacan). Por outro lado, Decio propõe a existência de duas outras matrizes além das quatro propostas por Mezan; as matrizes clínicas baseadas nas neuroses atuais e no fetichismo. Essa seria uma conversa para outro momento. Como nos lembra Mezan no prefácio do livro de Decio citado acima: “É necessário manter teso o arco da conversa”.

O próximo passo do grupo é iniciar a discussão sobre as diferentes matrizes clínicas em si e estabelecer as conexões dessa investigação epistemológica-histórica com a clínica psicanalítica. Um trabalho absorvente de percorrer como cada tijolo foi colocado nessa construção hipercomplexa que faz parte da história das ideias em psicanálise, suas continuidades e rupturas, e cujo objetivo último possa se resumir a investigar os encontros (e desencontros?) da metapsicologia com a nossa clínica.

Até lá, vale a pena ver de novo o evento, registrado em vídeo do YouTube do Departamento:

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Coordenador de grupos de estudo do projeto Pensamento clínico, membro da Gesto psicanálise.

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