Instituto Sedes Sapientiae

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Grupo de trabalho: Pensamento e clínica não mecânicos de Christopher Bollas

por Sérgio de Gouvêa Franco[1]

 

Poderia citar vários, mas Os humores e o processo conservativo[2] é um dos capítulos de Bollas que me impacta. Fico pensando em um paciente que, sessão atrás de sessão, manifesta uma disposição de espírito característica (humor) extremamente raivosa. Penso em minha própria infância, lar austero, e o humor que teria ajudado a construir em mim. Bollas discute como aquilo que não pode ser representado apareceria na transferência como um certo humor. O humor na vida adulta conserva, veja o título do capítulo, inconscientemente, a experiência traumática da infância. Quem estuda Bollas se vê subitamente enriquecido na compreensão do humano e mais bem aparelhado para a dura tarefa de escutar os outros.

Na Percurso número 71 aparece artigo meu, A vida na era da perplexidade, que discute Meaning and melancholia. Life in the age of Bewilderment[3], livro recente de Bollas ainda sem tradução para o português. O título traduzido literalmente seria: Sentido e melancolia, a vida na era da perplexidade. Reproduzido aqui algumas linhas do meu artigo na Percurso:

Queremos ver se conseguimos entender um pouco a condição histórica atual, em que se acentuam a experiência do vazio, da fragmentação e da incapacidade de conviver com o outro. Queremos tangenciar temas relativos à psicopatologia que se expressam nas relações sociais contemporâneas. Estruturamos nossa escrita assim: começamos com o ambiente cultural contemporâneo e sua conexão com o funcionamento mental. Depois passamos do tema da perplexidade à questão da democracia e à questão aterradora da ameaça da democracia[4].

Em muitos de seus escritos, Bollas vai do consultório ao ambiente cultural e político, não tanto como um cientista social, mas como um psicanalista que demonstra a violência da negação e da loucura social.

Em O momento freudiano[5], livro que acaba de ser relançado em português, Bollas oferece um impressionante capítulo de natureza, digamos, epistemológica: O que é teoria? Uma epistemologia, deixemos claro, de inspiração psicanalítica: no inconsciente convivem diversas ideias em oposição. Bollas, muito longe de um ecletismo fácil, vai propor uma convivência, como no inconsciente, de várias leituras psicanalíticas: “Isso me levou a apreciar o valor das teorias psicanalíticas como formas de percepção.” Mais para frente: “Existe uma ética da percepção. As teorias não são simplesmente formas de percepção. Quando praticadas, tornam-se decisões éticas.”[6] Combatendo a guerra entre as escolas e a luta pelo poder dentro das instituições psicanalíticas, sustenta uma visão inclusiva que permite ao analista se enriquecer com a contribuição de vários autores. Nenhuma Escola dá conta plenamente do inconsciente e da realidade. Reconhecimento dos limites da própria teoria, disponibilidade para sustentar o próprio desconhecimento e prontidão para aprender são requisitos indispensáveis teórica e clinicamente.

Do consultório à política, da política à epistemologia, Bollas é um autor contemporâneo, vivo, que não pode ser desconsiderado[7].

Teórico agudo, com rica clínica que enfrenta as mais variadas psicopatologias. Sua experiência é ao mesmo tempo com a neurose, com pacientes graves e psicóticos. Estudou história e literatura nos EUA, com tese de doutorado sobre Hermann Melville, o autor de Moby Dick. Fez formação em psicanálise em Londres, tendo sido influenciado pelo chamado Grupo Independente da Sociedade Britânica de Psicanálise, cujo principal nome foi Winnicott. Mas ele é sobretudo um freudiano. Além da Inglaterra, onde clinicou por décadas, dialoga também com a França de Lacan, de Pontalis e de André Green, tendo publicado na Nouvelle Revue de Psychanalyse. Viajou mundo afora, destaque para seu trabalho na Itália, incluindo visitas ao Brasil. Faz leitura inovadora de A interpretação de sonhos de Freud, valorizando o que chama de genera, a parte mais criativa e de mais fácil acesso do inconsciente. Bollas é autor de cerca de duas dezenas de livros de grande impacto, incluindo quatro romances.

O Grupo de Trabalho (GT) do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, com o mesmo título que dá nome a este texto, se propõe a estudar a clínica e o pensamento de Bollas. A proposta é que o Grupo de Trabalho tenha autonomia para aprofundar ou deixar de lado temas, ou acrescentar estudos paralelos em outros autores que possam iluminar o caminho. Trata-se de uma construção coletiva, que visa finalmente enriquecer o pensamento, a clínica e a própria vida no contato com Bollas.

O propósito inicial do grupo seria estudar sua biografia e bibliografia, refletindo sobre o impacto renovador de seu trabalho. Inescapável primeiramente é o estudo do seu primeiro livro A sombra do objeto – Psicanálise do conhecido não pensado, de 1987, verdadeiro manifesto e plataforma de seu pensamento, onde está presente um conjunto de conceitos que serão desenvolvidos e complementados em livros posteriores. Neste livro, aparece, já no primeiro capítulo, a noção de objeto transformacional, reflexão aguda sobre o que põe uma análise e uma vida em andamento, ou na sua ausência as estanca.

Lançado este fundamento, seguiria o estudo detalhado da clínica da neurose, fronteiriços e psicose em Bollas, sobretudo baseado em seus livros Hysteria[8], Segure-os antes que caiam[9] e When the sun bursts, the enigma of schizofrenia[10], este último ainda sem tradução para o português.

Um dos eixos de trabalho do grupo seria o estudo da temática da contratransferência. O tema da contratransferência tem uma longa carreira na história da psicanálise, que já começa em Freud, passa por Paula Heimann, Margareth Little, Donald Winnicott e tantos outros. Christopher Bollas está plenamente consciente de todo este legado e é verdadeiro herdeiro, intérprete e aperfeiçoador da tradição que reflete sobre a contratransferência.

Por fim, viriam os temas finais de sua obra. A relação entre política e psicanálise que aparece sobretudo em seu livro Meaning and melancholia. Life in the age of Bewilderment. E a relação da psicanálise com o pensamento oriental, que aparece em seu livro China em mente[11]. Discussões sobre estética, literatura e filosofia coroam o estudo deste autor instigante, que pertence à chamada Psicanálise de relação de objetos.

O GT está começando e está aberto à entrada de novos membros. Encontros mensais na segunda sexta-feira de cada mês, das 13h30 às 15h30, presencialmente no Sedes. Coordenador: Sérgio de Gouvêa Franco. Email: sg-franco@uol.com.br. WhatsApp: (11) 99685.0824.

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[1] Sérgio é psicanalista com formação no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; membro deste Departamento. Doutor pela Unicamp e pós-doutor em psicologia clínica pela PUC-SP. Atual presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF). Autor do livro Hermenêutica e psicanálise na obra de Paul Ricoeur e, em parceria com Manoel Berlinck e Karin Wondracek, do livro Mandrágoras, clínica psicanalítica: Freud e Winnicott. Organizador do livro Sofrimento psíquico em tempos sombrios e autor do capítulo “A contratransferência em Christopher Bollas”, no livro Por que Bollas? (org. Elisa Ulhoa Cintra), entre outras publicações. Vem se dedicando ao pensamento de Christopher Bollas há seis anos, tendo conduzido vários seminários e proferido palestras sobre ele. Publicou artigos sobre Bollas na Revista Percurso 62 (2018) e na Revista Percurso 71 (2024).

[2] Sexto capítulo do primeiro livro de Bollas, C. A sombra do objeto. Psicanálise do conhecido não pensado. São Paulo: Escuta, 2015.

[3] Bollas, C. Meaning and melancholia. Life in the age of Bewilderment. London and New York: Routledge, 2018.

[4] Franco. S. G. A vida na era da perplexidade, p. 51. Percurso. Revista de Psicanálise 71. Ano XXXV: dezembro de 2023.

[5] Bollas, C. O momento freudiano. São Paulo: Nós, 2024.

[6] Idem, pp. 137 e 139.

[7] Bollas nasceu em Washington, capital dos EUA, em 1943; neste ano de 2024 vai completar 81 anos. Seu pai era francês, vivendo em Paris até o início da adolescência, depois morou na Argentina, na Inglaterra e finalmente foi morar nos EUA. Sua mãe era californiana, dona de casa e pianista. Christopher é o mais velho de três filhos. A família viveu em vários lugares na Califórnia. Estudou ciências políticas e história na Universidade de Virginia e Berkeley.

Sabemos que começou a trabalhar em um centro de atendimento de autistas e psicóticos na Universidade de Berkeley. Decidiu se tornar psicanalista, mas não quis fazer medicina ou psicologia. Decidiu seguir os estudos na Universidade de Buffalo, com um doutorado em literatura, com área de concentração em psicanálise e literatura. Em 1973, com 30 anos, foi para Londres fazer formação em psicanálise, já que nos EUA isto não lhe era possível, sem ser psicólogo ou médico.

[8] Bollas, C. Hysteria. São Paulo, Escuta, 2000.

[9] Bollas, C. Segure-os antes que caiam. São Paulo: Nós, 2024

[10] Bollas, C. When the sun bursts, the enigma of schizofrenia. New Haven and London: Yale University. 2015.

[11] Bollas, C. China em mente. London and New York: Routledge, 2013.

 

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