O Movimento Articulação nos dias de hoje
por Paulo Jeronymo Pessoa de Carvalho[1]
O Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras segue firme no desenvolvimento de suas tarefas nos dias de hoje, fundamentalmente na luta política contra a regulamentação da psicanálise pelo Estado, contra a regulamentação da psicanálise como profissão.
O motivo central dessa movimentação é a preservação da autonomia das instituições psicanalíticas na questão da transmissão e da formação dos psicanalistas; essa autonomia é fundamental para garantir a qualidade da formação dos novos psicanalistas, baseada na ação de instituições sérias, que se reconhecem mutuamente, que respeitam o tripé formativo proposto por Freud há mais de século e, fundamentalmente, preservam a condição leiga da psicanálise.
É interessante apontar que o Movimento Articulação, fundado em 2000 para reagir à tentativa de organizações espúrias tomarem conta do nome psicanálise através de propostas de regulamentação pelo poder legislativo, é um acontecimento sui generis no movimento psicanalítico mundial. Essa concertação de instituições psicanalíticas variadas, que normalmente digladiavam entre si pela condição de legítima representante da verdade psicanalítica, há 24 anos reúne-se e coopera em uma tarefa maior. De modo fundamental e interessante, tais instituições reconhecem-se mutuamente como lugar de formação e de transmissão da psicanálise e como guardiãs de sua condição crítica, científica e leiga, assim como a nós legou Freud sua invenção genial. Esse movimento psicanalítico não existe em qualquer outro lugar. Desde as instituições da IPA e as instituições freudianas independentes, como é nosso Departamento de Psicanálise, até o vasto arquipélago lacaniano, todos nos reunimos, nos reconhecemos e cooperamos sobre essa tarefa comum. Certamente não sem contradições, diferenças e alguma tensão daí decorrentes, mas todas capazes de aproveitar essas mesmas diferenças para construir esse diálogo construtivo que tem caracterizado esses anos de trabalho.
Durante a pandemia, o Articulação suspendeu suas reuniões presenciais, que sempre aconteciam no Rio de Janeiro, e as substituiu por reuniões virtuais. Essa adaptação à realidade pandêmica permitiu que as instituições continuassem a se encontrar para seguir com a tarefa, por mais que alguma perda na qualidade das interações não deixasse de advir, dada a mediação eletrônica dos encontros. Porém, uma outra consequência dessa virtualização dos encontros foi o grande crescimento da participação de instituições do Brasil todo, para além dos principais centros psicanalíticos que até então se faziam presentes: Rio, São Paulo e Porto Alegre. Instituições de Florianópolis, de Curitiba, de Belo Horizonte, do Recife, de Maceió, de Vitória etc., se aproximaram e passaram a participar do movimento. Com o final da pandemia, o Movimento passou a considerar a volta das reuniões no Rio, mas isso não se mostrou tão simples. A logística dos deslocamentos e seus custos colocavam alguns impedimentos à argumentação de que estávamos perdendo familiaridade e condições melhores de aprofundamento nas discussões, que somente os encontros presenciais conseguem proporcionar. Mas as discussões evoluíram e pudemos chegar a um consenso intermediário de fazermos algumas reuniões presenciais e outras mediadas; pelo menos uma no ano, talvez mais. E assim fizemos a última reunião, em meados de agosto, em um hotel no Rio de Janeiro, reunião que foi seguida por um almoço de confraternização e de reencontro, de que praticamente todos participaram. Foi muito forte esse reencontro, não somente pelas saudades de quatro anos, mas também, e creio que principalmente, pelo claro sentimento de produtividade da reunião e de possibilidade de aprofundar as discussões que o modo mediado não consegue oferecer.
Esse ganho de capacidade de nossas reuniões vem bem a calhar, pois os desafios que enfrenta o Movimento Articulação são crescentes. Se, por um lado, as movimentações por regulamentação por via legislativa (projetos de lei que visam regulamentar a profissão do psicanalista e constituir um conselho regulador da psicanálise) estão meio que controladas e inativas (por mais que exijam sempre a atenção e articulação do Movimento em Brasília e no Congresso), o principal desafio dos dias de hoje vem de outra direção. A partir da pandemia se desenvolveu uma atividade que se reproduziu enormemente até hoje e que muito ameaça os objetivos do Movimento: a princípio uma, Uninter, e depois outras inúmeras faculdades particulares começaram a oferecer e a desenvolver cursos de graduação de psicanálise pelo Brasil afora, predominantemente através de modo online. O Movimento Articulação vem atuando desde o início da movimentação dessas faculdades, mas sem sucesso. Esses cursos possuem o amparo da legislação, vão construindo reconhecimento pelo MEC e contam com o grande interesse de uma pequena multidão de interessados em “tornarem-se psicanalistas” e “mudarem suas vidas com essa nobre e interessante profissão”, conforme lhes prometem as propagandas dessas faculdades. Atualmente, conforme acompanhamento que faz o Movimento, 13 mil alunos de psicanálise estudam nessas várias faculdades e vão no caminho de se formarem.
Formarem-se em quê, essa é a questão! Em psicanálise? Formam-se psicanalistas? Clínicos? Essa questão já deixa qualquer psicanalista sério e comprometido com a psicanálise de cabelo em pé, mas o que mais preocupa o Articulação é a decorrência mais provável desse derrame de psicanalistas formados nessas faculdades e com reconhecimento do Estado: a demanda desse número de profissionais formados nessas condições, fora da rede de instituições psicanalíticas brasileiras, por reconhecimento perante a sociedade e o Estado. O que o Movimento Articulação prevê é que essa multidão de profissionais fará uma pressão irresistível às instituições estatais por uma regulamentação de sua nova profissão. E o que disso advirá nós ainda não sabemos exatamente. Até agora, as tentativas, fundamentalmente no nível administrativo junto ao MEC, não lograram nada a não ser frustração.
Tudo isso coloca uma outra questão, ainda mais complexa e sutil, em movimento para o Articulação. A questão complexa e sutil se relaciona com a negatividade de nossa ação. Ou seja, com a característica de ação negativa de nossa ação política: nós sempre agimos contra a regulamentação, contra a caracterização da psicanálise como uma profissão reconhecida e regulada por ação estatal, contra a instituição de um conselho autárquico que assuma nossa prática e, por exemplo, privatize aos psicólogos e médicos o direito exclusivo da prática clínica psicanalítica. Muitas vezes nossos próprios interlocutores aliados, nos ministérios e no congresso, não conseguem entender por que não queremos essa regulamentação, porque nós mesmos não demandamos essa regulamentação e não tomamos conta da situação. E creio que muitas vezes nós mesmos tendemos a não compreender essa condição negativa de nossa ação e nos confundimos.
A questão principal está colocada desde o início da constituição do Movimento Articulação. As entidades psicanalíticas sempre colocaram como essencial que esse movimento não se constituísse numa instituição reguladora ela mesma. A ideia a ser preservada é que o Movimento Articulação não se tornasse uma instituição, e muito menos uma instituição reguladora da psicanálise brasileira. Que o Movimento Articulação não deixasse de ser um movimento das entidades psicanalíticas e se tornasse um algo a mais, essa tal instituição. E isso é muito difícil! A cada passo o Articulação esbarra com a tendência de se constituir instituição, com a tendência institucionalizante. E é desse modo que nossa ação política negativa tem sempre que se voltar sobre nós mesmos, para sempre estarmos atentos e vigilantes a essa tendência institucionalizante que nunca cessa. O Movimento Articulação não quer e não deve advir instituição regulamentadora, pois entendemos que o mais importante é preservar a autonomia das variadas entidades do campo psicanalítico brasileiro, preservar as diferenças, algum nível de contradição e tensão e um diálogo respeitoso e cooperativo entre instituições que se reconhecem.
Essa sutil questão se coloca no dia a dia de nossas propostas de ação. E as contradições e desafios nem sempre ficam muito claras. Um exemplo disso é a proposta de o Articulação aumentar e diversificar o diálogo com a sociedade de modo geral. Dado que nossa ação política não tem resultado como gostaríamos, que essas tais faculdades estão calçadas em legislação vigente e muitas vezes cooptam o discurso da qualidade e do cuidado na formação que brandimos, o Articulação decidiu nessa última reunião dar um passo “modernizante” nesse diálogo com a sociedade em geral: criar uma conta de Instagram! Do que ainda não nos demos conta, e isso é uma percepção minha e da representação do Departamento no Articulação, e que será debatida nas próximas reuniões, é que tal movimentação instagramica, dada a própria característica de velocidade e superficialidade desse meio, talvez dificulte muito a devida atenção e controle das tendências institucionalizantes de nosso movimento. Ou seja, muito trabalho pela frente. E, nesse sentido, é ótimo que tenhamos a oportunidade de nos vermos e podermos dialogar frente a frente para melhor dar conta de questões sutis e complexas.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, do qual é representante no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. É também professor e supervisor no Curso de Psicanálise.