Territórios clínicos – Lançamento do livro
Abertura
por Fernanda Almeida[1]
Boa tarde!
É com imensa alegria que recebemos todas, todes e todos nessa tarde chuvosa. Foi num outro dia chuvoso, há um pouco mais de um ano, no dia 23/04/23, que nos reunimos para escutar, debater e trocar experiências. O 1º Seminário Territórios clínicos, que aconteceu na USP-Leste. Daquele encontro, os palestrantes saíram com o compromisso de rever suas falas, revisitar suas reflexões e sistematizar os seus textos. Nós: Tide, Laís, Vivi e eu, com o apoio editorial do querido Sérgio Kon, e de toda a equipe da editora Perspectiva, organizamos a publicação que hoje vocês têm em mãos. O livro Territórios clínicos.
Quero destacar a importância dessa publicação em dois aspectos. O primeiro tem relação com o histórico momento editorial que estamos vivendo. A proliferação e o protagonismo da publicação de autores negras e negros em diversas áreas é hoje uma realidade. São obras que compõem a esteira do avanço das lutas antirracistas no Brasil (não sem resistência por parte da branquitude). Tal movimentação faz lembrar que: As vidas negras, não só importam, como também produzem, escrevem e compõem o que temos de mais criativo, potente e inovador. Alicerçados na produção do pioneirismo da intelectualidade negra, que tanto produziu, e que hoje segue sendo uma referência. Penso que o livro Territórios clínicos, por seu coletivo de autores e por sua posição ético-política, se apresenta neste lugar. O lançamento nesta livraria Megafauna nos conecta com esse momento editorial. Obrigada Nina Knutson por nos acolher e pela curadoria socialmente posicionada da livraria.
O segundo aspecto que será melhor detalhado pela Tide, tem relação com o campo psicanalítico e da saúde mental. Recentemente escrevi que o lançamento do livro Territórios clínicos é mais que uma publicação. É uma “ágora política”, um “circuito de afetos”, ou como escrevem alguns dos autores, é “encruzilhada”. Resultado de um trabalho coletivo, os artigos reunidos neste livro exprimem um tempo novo no campo psicanalítico e da saúde mental. O livro busca somar com aquelas e aqueles que seguem na construção de uma psicanálise decolonial, antirracista e socialmente comprometida.
O meu texto neste livro é sobre a importância do ato de nomear. Para ser coerente com a minha escrita eu vou rapidamente nomear as autoras e os autores:
ANA CAROLINA BARROS SILVA, BIANCA SPINOLA, CAMILA GENEROSO, CLÉLIA PRESTES, DEISY PESSOA, EMILIANO DE CAMARGO DAVID, FERNANDA ALMEIDA, GABRIEL INTICHER BINKOWSKI, HELENA B. GUILHON, KWAME YONATAN, LAÍS DE ABREU GUIZELINI, MARCOS AMARAL, MARIA LÚCIA DA SILVA, MIRIAM DEBIEUX ROSA, NOEMI MORITZ KON, PAULA JAMELI, PEDRO SEINCMAN, PRISCILLA SANTOS DE SOUZA, RAFAEL ALVES LIMA, ROSIMEIRE BUSSOLA SANTANA SILVA, SANDRA ALENCAR, TIDE SETUBAL, VERONICA ROSA DA SILVA, VIVIANE SORANSO.
Nosso muito obrigada aos coletivos parceiros! Casa de Marias, Rede Sur Psicanálise, Perifanálise, Margens Clínicas, Instituto Amma Psique e Negritude, Roda Terapêutica das Pretas e Veredas Psicanálise e Imigração
Territórios clínicos segue em sua 2º edição, e ao que tudo indica, tem como orixá Nanã. No candomblé, o orixá da chuva que também é a senhora da morte e rege os mangues, pântanos e lama. Nanã é uma das orixás mais antigas do panteão africano e é associada a águas calmas e profundas, que simbolizam a origem da vida e a conexão com a morte. Temos ainda os outros orixás que trazem o simbolismo das águas.
Iansã: Orixá dos ventos e tempestades, que também domina fenômenos naturais como chuvas, raios e furacões.
Oxum: Orixá das cachoeiras, rios, amor, beleza e metais preciosos.
Oyá: Divindade dos ventos e tempestades, que também está ligada às águas.
Em psicanálise, Eros se impõe sobre a destrutividade de Thanatos. Que estejamos nesta tarde com a ancestralidade de Nanã e dos orixás das águas e com a força do amor de Eros.
Vou passar a palavra para a Tide apresentar o Projeto. E depois para nossa convidada especialíssima, Maria Lúcia da Silva.
Apresentação
por Tide Setubal[2]
O presente texto foi lido no lançamento do livro Territórios clínicos, dia 19 de outubro de 2024, na livraria Megafauna. Inicialmente, fiz os agradecimentos aos sete coletivos participantes do projeto Territórios clínicos, à equipe da Fundação Tide Setubal, à Editora Perspectiva, à Megafauna e a todos os presentes.
Esse livro é uma homenagem ao trabalho coletivo. É uma caixa de ressonância da força de tecermos juntos uma luta pela democratização do acesso à saúde mental. Nele moram 25 autores, dos quais 19 são mulheres e mais da metade são pessoas negras. Além desses nomes que estão explícitos nas páginas, também temos muitos outros analistas, terapeutas, supervisores, muitos pacientes, professores que construíram esse trabalho junto conosco.
Sobre a força de estarmos juntos, peço licença para ler uma citação do Antônio Bispo:
“A confluência é a energia que está nos movendo para o compartilhamento, para o reconhecimento, para o respeito. Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio, ao contrário, ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende. A confluência é uma força que rende, que aumenta, que amplia.” (Bispo 2023, p.15)
As Clínicas públicas também são um trabalho feito a muitas mãos com um direcionamento ético-político, embasado teoricamente e inserido num tempo histórico. Um trabalho coletivo que age a contrapelo de um mundo acelerado que consome subjetividades. Nós escutamos essas subjetividades contemporâneas. Nós as escutamos nas suas singularidades imersas nos marcadores de raça, classe, gênero e território. Constituídas a partir desse lugar social, político e cultural e capazes de se transformar e transformar a realidade ao seu redor. Neste trabalho não há escuta neutra. O analista também é atravessado por uma história sociocultural e é preciso saber de seu lugar para poder escutar o lugar do outro.
“A construção do caso clínico-político possibilita passagens, na medida em que incluem o analista, instigado em seu desejo na escuta do caso e na possibilidade de se situar e ressituar no tecido social.” (Texto do Veredas no livro Territórios clínicos, p. 180)
Pensamos a clínica sempre articulada com a política. Os discursos sociais capturam o sujeito em suas tramas racistas, sexistas muitas vezes responsabilizando-os individualmente por falhas e faltas que são estruturais. Um trabalho analítico que possa produzir uma elaboração subjetiva na direção de historicizar sua posição no mundo é um trabalho de resistência e de luta por uma sociedade que enxerga e potencializa seus sujeitos.
No livro, os coletivos relatam que, para escutar sujeitos, eles inventaram diferentes dispositivos clínicos com uma enorme capacidade criativa. Os lugares onde a escuta acontece são os mais diversos: praças, Casa do povo, Universidade, corredores, salas de escolas, clínicas, equipamentos públicos, porta da creche, fila do pão. A escuta de cada corpo subjetivo afirma e valoriza aquela existência singular, ressignificando a relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo à sua volta, num processo também de desalienação social.
Em muitas das escutas não tem divã, mas tem inconsciente, transferência, associação livre, corpos pulsionais. Por vezes, os casos demandam articulações com o sistema público de saúde. São criadas redes, atendimentos, multidisciplinares. Aconteceram também formações, supervisões, aquilombamentos com profissionais do SUS que cuidaram de quem cuida. Tão importante cuidar de quem cuida! Os sofrimentos psíquicos plurais e multifatoriais exigem criatividade e abertura para pensar a partir de qual modelo de dispositivo clínico iremos escutar. A escuta pode ser individual ou de grupo. Num modelo pontual ou recorrente. Num grupo aberto ou fechado. As possibilidades são muitas, porque na democratização do acesso ao tratamento psicanalítico é preciso escutar a demanda desses sujeitos na sua singularidade e nos seus territórios.
O território é esse mapa do espaço geográfico e psíquico entre o sujeito e o mundo. É onde nos constituímos como sujeitos. É um lugar do pertencimento, do refúgio, da cidade, do bairro, da casa. É um lugar da linguagem, da estética e do vínculo. É onde a vida pulsa e acontece com as suas contradições, pluralidades, afetos, relações, violências e, também, belezas.
Território é um lugar da FRONTEIRA, do ENTRE. Entre a criança e sua família. Entre o sujeito e a vida social. Entre o eu e o outro. Entre um corpo e um outro corpo. Entre um bairro e outro bairro.
O território que contorna o sujeito singular e lhe traz exigências psíquicas, códigos, cultura, saberes. Entre o sujeito singular e o sujeito político. Lugares já indissociáveis. Para o nosso trabalho de escuta, o território é o entre o saber teórico e a prática clínica ou também entre o analista e o paciente.
E dentro desse vasto campo de saberes, é fundamental fazer a metapsicologia psicanalítica se interrogar, se retorcer, se reposicionar. Construir uma psicanálise antirracista e decolonial. Os coletivos escreveram a partir da experiência diária e, nesse sentido, cada um dos textos desse livro tem muito a contribuir com as nossas reflexões teórico-clínicas. Estamos fazendo a teoria trabalhar a partir do fazer clínico nos diversos territórios de São Paulo. Fazemos a psicanálise conversar com as questões que nos atravessam cotidianamente, afinal, somos corpos políticos.
Foi a partir de habitar a minha branquitude, entender os tantos privilégios que me constituem, atravessar um sofrimento também sociopolítico, cheio de culpa estéril, que pude transformar a paralisia em ação, produzindo junto com tantas outras pessoas esse projeto Territórios clínicos. Penso que a nossa saída enquanto humanidade é sempre pelo coletivo. Coletivos grandes, médios, pequenos, em que um sujeito se enlaça com outro sujeito para produzir uma mudança no mundo. O encontro com o outro, com o diferente, faz fricção nas nossas certezas, expande saberes e imaginações. É capaz de tecer um comum na diferença como nos ensinou o nosso amigo Emiliano de Camargo David. Campo de trabalho que reconhece e nomeia as diferenças, mas não fica paralisada por elas e sim encontra também o comum, o partilhado, a possibilidade de transformar juntos.
Cria afetos, pertencimento e sentido.
Bibliografia
Bispo, Antônio. A terra dá, a terra quer, São Paulo, Ubu, 2023.
Setubal, Soranso, Guizelini, Ameida. Territórios clínicos, São Paulo, Perspectiva, 2024.
Comentário
por Maria Lucia da Silva[3]
Boa tarde a todas as pessoas presentes.
Agradeço o convite para participar deste momento e parabenizo a Fundação Tide Setúbal pela iniciativa Territórios clínicos, um importante fomento para fortalecer ações no campo da saúde mental.
É uma satisfação ver o resultado da 1ª edição deste projeto culminando no lançamento desta publicação, que traça um panorama das ações dos primeiros grupos apoiados, com trajetórias que se entrelaçaram, tecendo uma rede de cuidado e transformação.
Lembro-me, com imensa alegria, daquele 15 de abril de 2023, na USP Leste – um dia chuvoso e frio, mas, aquecido pelo calor humano de cada pessoa presente. Reencontros, abraços curativos para a alma, trazendo alento e força renovada.
Aproveito para saudar a nova turma: sejam bem-vindes!
Sabemos, com base em nossa própria história e pela nossa experiência profissional, que a saúde mental e psíquica é essencial para o nosso desenvolvimento, influenciando pensamentos, emoções, comportamentos e escolhas.
O estado emocional e psíquico dos nossos pais, familiares e das pessoas que nos rodeiam, assim como os marcadores sociais como raça, gênero, classe, território entre outros, impactam positiva e/ou negativamente durante todas as fases de nossa vida.
É a nossa história que dará suporte para nossas escolhas e escolher cuidar da saúde mental e psíquica das pessoas é também escolher, rever e reviver nossa história pessoal e coletiva, cotidiariamente.
Neste contexto, quero chamar a atenção sobre a nossa responsabilidade política e profissional diante do Estado Brasileiro, ou seja, o nosso papel de reivindicar e pressionar este Estado para o cumprimento de seu dever fundamental: assegurar políticas públicas que promovam o acesso aos cuidados em saúde mental para toda população brasileira, através do SUS, por meio de programas de assistência e acompanhamento psicológico.
Sabemos que, mesmo que sejamos muitos grupos e instituições, ainda seremos poucos para dar conta das demandas em saúde mental da população.
Por isso, é necessário que possamos nos reconhecer também como agentes políticos, comprometidas com a defesa do direito à saúde mental de qualidade, reivindicando e monitorando a implementação de políticas para o bem-viver coletivo.
Assim, espero que possamos consolidar, cada vez mais, os nossos laços, para criarmos estratégias coletivamente, que nos fortaleçam na luta por um SUS verdadeiramente UNIVERSAL, EQUÂNIME E INTEGRAL.
Obrigada.
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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim online.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo, professora e supervisora no curso Clínica psicanalítica: conflito e sintoma, colaboradora deste Boletim online.
[3] Ativista, forjada na luta contra o racismo e o sexismo escolheu Psicologia e Psicanálise como suas ferramentas de luta, para a transformação da sociedade. Cofundadora e integrante do AMMA Psique e Negritude: Pesquisa, Formação e Referência em Relações Raciais e da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es). Fellow da Ashoka – Empreendimento Social.