Grupo de Trabalho Psicanálise de Grupo: entre o singular e o plural
por Juliana Farah, Adriana Novais, Camila Hachul, Julia Conceição, Ligia Ungaretti[1]
Começo este texto no singular, ainda que sabendo ser isso uma ilusão, já que a singularidade é marcada pela pluralidade de relações que estabelecemos ao longo da vida. Não é demais lembrar que desde nosso nascimento estamos inseridos em um grupo e que duplas, sejam elas mãe-bebê, casal ou analista-analisando, também são pequenos grupos. Escrevo escutando a polifonia de vozes do Grupo de trabalho Psicanálise de grupo: teoria e prática, tentando delimitar o que é meu, singular; o que é fruto do trabalho deste grupo, efeito transformador do aparelho psíquico grupal; e o que é herança, transmissão psíquica transgeracional.
Em outubro de 2023, Ligia Ungaretti, psicanalista em formação pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, me escreveu a seguinte mensagem: “você pretende recomeçar o grupo do Sedes em algum momento?”. Na hora, não entendi a que grupo ela se referia, sobretudo pelo termo “recomeçar”. Ela havia visto no site do Departamento que o grupo de trabalho e pesquisa Dinâmicas grupais e institucionais estava inativo. O grupo em questão, do qual fiz parte entre 2016 e 2019, havia encerrado suas atividades em 2020, quando Paulo Jeronymo Pessoa de Carvalho, então interlocutor, se deparou com um esvaziamento do grupo diante da migração dos encontros para as telas, forçada pela pandemia da Covid-19. Curioso pensar que o grupo se encerra justamente em um momento no qual há um crescimento significativo da demanda por trabalhos em grupo: rodas de conversas, grupos reflexivos, psicoterapias em grupo, grupos de elaboração, de apoio e operativos. Podemos pensar que o esvaziamento daquele GT revela uma problemática antiga, um descompasso entre o número de psicanalistas fazendo grupos, coordenando dispositivos, propondo e sustentando práticas clínicas com grupos e os espaços de reflexão psicanalítica sobre grupos, sobretudo dentro das instituições de psicanálise. Essa é uma questão formulada, aliás, pelo próprio GT em artigo da Percurso de 2010:
Apesar de muitos dos praticantes, coordenadores desses dispositivos, serem psicanalistas e usarem elementos psicanalíticos na instauração e desenvolvimento dessas práticas, o que se observa é uma ausência de reflexão sobre elas, especialmente reflexão psicanalítica. Por que isso tem se dado? Quais são os vértices dessa ausência? A que isso responde? (Silveira e Carvalho, 2010)
De todo modo, a sustentação desse grupo durante 16 anos (2004-2020) no interior do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae revela, em primeiro lugar, a abertura e a continência desta instituição para a questão do grupo. Em segundo lugar, revela a persistência de um pequeno número de psicanalistas desta instituição, psicanalistas estes que encamparam a produção de espaços de reflexão sobre a teoria e a prática psicanalítica com grupos, incluindo colóquios internos e desdobramentos para além da instituição, como dissertações de mestrado, doutorado e publicações de livros e artigos, que, se não foram produtos diretos do GT, sem dúvida são dele tributários[2].
Voltemos a 2023, quando a ausência deste espaço foi sentida por uma aluna do Curso de Psicanálise, que me conhecia por conta de um curso que dou sobre o trabalho psicanalítico com grupos em outra instituição, ou seja, mobilizada pela questão do grupo desde fora do Departamento, mas com desejo de trazê-la novamente para dentro. Assim como Ligia, uma outra ex-aluna se interessou por essa possibilidade e juntou-se a nós, Camila Hachul.
Aqui, o relato singular passa a ser plural: o eu do início do texto dá espaço a um nós, mas um nós que mantém espaço para as singularidades. Nós, movidas por questões similares às que o antigo grupo trabalhava, mas também com novas inquietações, decidimos fundar o grupo de trabalho Psicanálise de grupo: teoria e prática. Para a fundação do grupo, Camila e Ligia tornaram-se aspirantes a membro do Departamento, para que não fôssemos um grupo com maioria de externos. O grupo hoje é composto por, além de nós três, Adriana Novais, Julia Conceição, Suzana Pastori e Mariana Victorino. Somente uma de nós é membro do Departamento, uma é externa e as outras tornaram-se aspirantes a membro no processo de entrada para o grupo.
Neste um ano de existência, apenas um membro do Departamento demonstrou interesse em participar do GT, enquanto pessoas externas ao Departamento têm continuamente nos contactado buscando um espaço de interlocução para questões relativas à psicanálise de grupo. Dentre as inquietações que mobilizam nossas pesquisas e reflexões, está a baixa adesão de membros do Departamento, trazendo à tona uma problemática antiga, nomeada por Kaës, que diz respeito à ideia de que o grupo funciona como matriz fecunda e traumática da invenção da psicanálise, tendo como principal efeito uma resistência epistêmica dos psicanalistas sobre o objeto grupo (Kaës 1997, p. 25).
Ora, reconhecer, validar e incluir o grupo como objeto da psicanálise demanda, a um só tempo, coragem de colocar em trabalho alianças inconscientes historicamente constituídas na psicanálise e disposição para rever aspectos da metapsicologia freudiana. Nós nos situamos neste projeto: juntas estamos lendo textos fundamentais de René Kaës, preocupadas com as alianças inconscientes e os pactos denegativos da psicanálise em suas intersecções com a sociedade, sobretudo no que diz respeito à raça, gênero e classe. Adotando a metapsicologia proposta por Kaës, na qual o sujeito do inconsciente é também sujeito do vínculo e onde importa sobremaneira a articulação entre intrapsíquico e intersubjetividade, estamos o tempo todo pondo em questão o que concerne ao sujeito em sua singularidade, o que concerne ao grupo e o que concerne aos processos, formações e pessoas que constituem vínculo entre o grupo e os membros do grupo (Kaës 2001, p. 28).
Tal perspectiva nos parece pertinente quando observamos que os dilemas atuais da humanidade nos impõem a tarefa de refletir e confrontar as múltiplas crises que nos atravessam. Nos convocam a nos reinventar enquanto coletividade humana, a olhar e pensar sobre os vínculos que foram estabelecidos até este momento histórico; e, sobretudo, nos interrogam sobre quais os laços necessários a serem forjados para enfrentar tais crises, para então projetar e garantir um futuro comum.
Nosso grupo de trabalho atualmente está lendo o livro Um singular plural, a psicanálise à prova do grupo, de René Kaës, intercalando com discussões clínicas, pensando a pertinência do dispositivo grupal nos tratamentos psicanalíticos na contemporaneidade e refletindo sobre diferenças e semelhanças nos trabalhos que já estão sendo feitos pelos psicanalistas no âmbito público e privado. Nosso plano é seguir nessa linha de pesquisa e atualizar nosso foco de trabalho a partir das demandas do próprio GT, sempre tendo o dispositivo psicanalítico de grupo como principal objeto de estudo, em suas várias configurações – grupo homogêneo, heterogêneo, família, casal, entre outros.
O grupo de trabalho tem se mostrado uma instância privilegiada, que abarca muito de nossas reflexões e pensamentos do cotidiano psicanalítico, pois é em grupo também que se formam analistas e onde é possível construir, coletivamente, teorias psicanalíticas. Nesse sentido, temos vivido um ambiente onde é possível articular a psicanálise com os processos sociopolíticos, possibilitando tratarmos com menos amarras a diversidade e a necessidade de uma psicanálise mais inclusiva.
Referências bibliográficas:
KAËS, R. O grupo e o sujeito do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
KAËS, R. Um singular plural. São Paulo: Loyola, 2001.
SILVEIRA, F. e CARVALHO, P. J. P. A experiência clínica grupal e o modelo psicanalítico. Percurso, pp. 117-124, 2010.
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[1] Psicanalistas, integrante do grupo de trabalho Psicanálise de grupo.
[2] Muitos são os exemplos, mas incluo aqui alguns capítulos do livro A subjetividade nos grupos e instituições: Constituição, mediação e mudança, organizado por Cristiane Abud (2015); o doutorado de Fernando da Silveira (2016), Ouro, cobre e chumbo: A psicanálise, o grupo e o movimento analítico brasileiro em tempos de ditadura; minha dissertação de mestrado, Farah, J. (2019), Emagrecer é uma barra (de chocolate): a psicanálise de grupo no tratamento de pacientes com queixas em relação a sobrepeso e obesidade; entre outros.