boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Para tocar no luto com patas e pétalas

por Déborah de Paula Souza[1]

 

E, vejam bem, não é que se possa esperar
da escrita um consolo para a tristeza

Natalia Ginzburg

 

Uma mulher, um amigo morto, um cão: esses são os protagonistas do livro O amigo[2], de Sigrid Nunez. Um romance desconcertante que, ao abordar o luto, faz uma poderosa reflexão sobre a linguagem, a escrita, o amor e a amizade entre gêneros e espécies. Sem sentimentalismo e com humor inesperado. No Brasil, alguns conhecem essa autora novaiorquina do cinema. O filme O quarto ao lado, de Pedro Almodóvar, que também aborda a morte, foi inspirado em outro livro dela.

A escrita do luto é um modo de processá-lo? De que maneira a morte subverte ou fertiliza as narrativas? Quem diz a morte e quem poderia escutar seus efeitos na carne viva? Emudecer será o começo de outro dizer, instigado pela fronteira entre vivos e mortos? Será essa fronteira a respiração? Eu queria tocar no luto com pétalas.

Encontrei no pequeno livro O amigo, de Sigrid Nunez (ed. Instante; 192 páginas), um amparo para o momento em que o passo falha e a gente cai. O enredo: o melhor amigo se mata e a narradora adota seu cachorro – Apolo, um enorme dog alemão que não para de uivar desde que o dono morreu. A narradora é uma mulher, o amigo suicida é um homem que já passou da meia-idade, ambos escritores. O luto dela é atravessado por muitas questões relativas à escrita, ao mundo intelectual contemporâneo, com suas miragens de fama, glória e outras situações patéticas. O morto é um mulherengo que não sabia ficar sozinho. Casou três vezes, teve um monte de namoradas e era um professor de literatura adorável, que conquistava colegas e alunas. Mas os tempos mudaram e as novas alunas fizeram um abaixo-assinado: não querem mais ser chamadas de “queridas”, como ele estava habituado a chamá-las. Sua inteligência irônica mantém-se firme – com ótimas tiradas sobre o papel de Eros na transmissão em sala de aula – mas ele sofre. Não apenas com o envelhecimento, também com os clubes e prêmios literários, a banalização dos livros, a leitura desatenta, os alunos que acham que escrever é truque e que vão ganhar dinheiro com romances divulgados na internet. As inúmeras citações e divagações de escritores famosos permeiam o texto, com histórias saborosas ou ácidas. Idem para as considerações a respeito da psicanálise, do masoquismo, da terapia de luto que a narradora faz a pedido de amigos que se preocupam com seu isolamento. Um aluno do curso de escrita pergunta à professora se Freud existiu mesmo, ele não acredita.

Na juventude, a narradora foi uma das colegas de faculdade apaixonada pelo escritor que se matou, chegaram a transar, foi ele quem interrompeu o flerte. A amizade que nasceu daí durou muito mais que os casamentos dele. Ela é amiga da esposa 1; a esposa 2 era uma ciumenta obsessiva e, depois de sua morte, anuncia que escreverá um livro sobre a relação deles; a esposa 3 desconsidera o desprezo do morto por choradeira e ritos funerários e chama todos os amigos para a despedida final.

O morto era ateu. Não desacreditava só dos deuses, perdera a fé no poder da ficção, na possibilidade da arte interferir no curso do mundo, ressentia-se dos livros tratados como objetos que deveriam satisfazer os clientes. Andava deprimido.

Ele tinha parado de lecionar, há tempos não lançava um livro, mas parecia entusiasmado ao voltar a escrever e correr no parque. A narradora conta as últimas conversas que tiveram por e-mail. Falaram sobre as mulheres do Camboja, refugiadas de guerra que chegaram em massa na Califórnia, depois de passarem por uma série atroz de abusos, estupros, violência e espoliação. Todas cegas. Os médicos não encontraram nada nos exames clínicos para explicar essa cegueira. O motivo não estava no corpo: “Uma mulher, que nunca mais viu o marido e os três filhos, depois que os soldados os levaram, disse que havia perdido a visão após ter chorado todos os dias durante quatro anos.”

O viés psíquico do luto se insinua o tempo todo, sempre com referências às notícias do mundo, à literatura, aos cursos de escrita criativa que são o ganha-pão da narradora. É com essas referências que ela atravessa a tempestade. Enrolando-se numa colcha de palavras que remetem à dor e ao absurdo, sem nunca tocar na falta que o amigo lhe faz. Ela se recolhe, não quer falar dele com ninguém.

UMA DOR DO CÃO

A chegada do cachorro do amigo na casa da narradora inaugura outra fase. O que parece um enredo de comédia – o dog alemão pesa 80kg e o apartamento da narradora tem 50 metros, boa parte ocupada por estantes – vai tomando caminhos surpreendentes. Na verdade, ela espera um milagre. Sem misticismos, não aguarda a volta do amigo morto (esse desejo só escapa num sonho), apenas deseja não ser despejada do condomínio, que proíbe animais no prédio. Os amigos estão preocupados e ao mesmo tempo fogem dela: temem que surja de repente com uma mala e aquele cachorro imenso na porta deles. Mas como ela foi pegar um cachorro numa hora dessas? Ela não queria. A esposa 3 a convocou – há tempos o marido achara o cachorro no parque, abandonado, levou-o para a casa contra a vontade da mulher. Quando seu dono morreu, o cachorro continuou esperando por ele na porta de casa. Apolo, esse era o nome do cachorro, passava a madrugada uivando. Ninguém dormia.

Os vizinhos não suportaram, nem a viúva, por isso colocou o bicho num canil. No entanto, uns dias antes de se matar, o marido fez a esposa saber que a amiga morava sozinha e gostava de animais. A viúva tenta atenuar a situação dizendo que o cão é velho, essa raça não vive muito tempo. A amiga recusa, porém, identificada com a dor do cão, não consegue imaginar o bicho uivando no canil e acaba levando-o para casa, mesmo correndo risco de um despejo. “Você precisa esquecê-lo e se apaixonar por mim”, diz ela ao cão. Apolo para de uivar, eles se entendem. Mas ela está louca.

TEMPO DE NÉVOA

Esquecer compromissos e perder a hora são apenas alguns registros compreensíveis da névoa que o luto produz. Não se vê mais o sol, mesmo que seja necessário passear na rua todos os dias, o cão exige.

Como dizer do impossível de morrer? E do impossível de sobreviver aos mortos? E um suicídio sem bilhete de despedida? Com razão não se diz nada, o registro da perda é outro. A supressão do sentido dá pistas nessa escrita de nuvem. O pé na loucura, a falta de chão. Em alguns momentos, o leitor se perde, eu me perdi, voltei as páginas: Onde ela está? Onde você está? Onde eu estou?

“A poeta está falando de amor ou da morte?” A velha senhora com sua foice é perita em embaralhar narrativas. Os protagonistas são escritores desconfiados da ficção. Para que inventar a dor, se ela já está gritando no mundo? Quem tem o direito ou o talento para contar a história do outro? São muitos rios que cruzam O amigo.  Eis as  palavras que a narradora recolhe da sua terapia de luto: “Deixar de sentir a falta dele não me faria feliz”. Outra vertente da escrita é se ela tem função de auto-ajuda, de cura, essas coisas que o amigo escritor debocha e deplora.

A narradora trabalha com uma amiga psicóloga que atende mulheres vítimas de tráfico humano e são convidadas a fazer diários. Algumas recusam, outras escrevem e escondem; outras mostram. A psicóloga escreve um livro sobre essas experiências brutais. Ganha um prêmio literário importante, tem um bloqueio criativo,  estuda a teoria do desapego do budismo e decide nunca mais publicar nada. É preciso escarafunchar o que é a ambição de um escritor para saber de sua vida e sua morte. Carreira literária e desapego são inconciliáveis. Essa amiga psicóloga ainda escreve poemas que “funcionam para rezar”.

O rio fabuloso dos bichos cruza a narrativa, com palavras permitidas apenas às crianças e aos animais, como “inocência” ou “compaixão”. Uivar de dor só bichos e crianças podem. E quem não é bicho e criança no fim? Que grande medo despertar vergonha ou pena, ainda mais na Nova York do século 21, ainda mais na hora da morte. “Acredito que a intensidade da compaixão que uma pessoa sente por um animal tem a ver como isso suscita pena de si mesma”. A narradora ultrapassa ou dança na névoa? Ela crê na memória da infância, “época em que éramos tão animais quanto humanos, os sentimentos avassaladores de desamparo (…) e o anseio pela proteção que nossos instintos nos diziam que estava lá, desde que chorássemos bem alto”.

Quem não quer ser sentimental se detém na composição química das lágrimas. Mas a narradora enlutada sabe que os filmes populares fazem chorar. No folclore e nas fábulas, ela sublinha, as lágrimas, o sêmen e o sangue podem ter propriedades mágicas, curar, restituir a visão a quem um dia foi cegado pela dor.

 

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[1] Poeta, psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste boletim online.

[2] O amigo foi vencedor do National Book Award de 2018, considerado o melhor livro de ficção daquele ano. A obra foi adaptada para o cinema em 2024, com os atores Naomi Watts e Bill Murray. Tem foto do dog alemão na internet. Este foi o primeiro livro de Sigrid Nunez publicado no Brasil, em 2019. Entre outras obras, ela também é autora de O que você está enfrentando, que inspirou o filme de  Pedro Almodóvar.

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