Psicanálise e algoritmos
pela Comissão Organizadora do Evento Psicanálise e Algoritmos[1]
Em uma jornada dupla no fim de novembro de 2024 foi realizado o evento Psicanálise e Algoritmos, organizado pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. A proposta desse encontro presencial partiu de um grupo de psicanalistas desejosos de aprofundar questões precipitadas pelas novas tecnologias digitais na nossa clínica e no mundo que habitamos; colegas psi e amigos inquietos, querendo trocar com outros psicanalistas – membros do Sedes e externos – mas também ávidos por escutar o que a área das Humanidades Digitais tem a contribuir a esse complexo debate.
Foi assim que montamos um grupo horizontal em que, com grande companheirismo, começamos a circular os nomes dos possíveis convidados, fazer convites, montar o quebra-cabeça das datas disponíveis na agenda de Eventos do Sedes com a dos convidados. Por fim chegamos ao programa definitivo do evento, satisfeitos em termos conseguido juntar uma turma especial que considerávamos poder estabelecer um espaço-tempo de diálogo e crescimento. Embora já estivéssemos animados antes do evento, o que escutamos nos dois dias de evento nos motivou ainda mais, saímos com tantas aberturas para pensarmos e aprofundarmos as temáticas abordadas. Como disse Renata Cromberg, foi produção de pensamento em ato mais do que conferências somadas.
Após a fala inicial de Ana Carolina Vasarhelyi de Paula Santos, articuladora da área de Eventos representando o Conselho de Direção do Departamento, e a fala de Helena Lima representando a comissão organizadora, tivemos uma abertura feita por Ivy de Carvalho, da qual fazemos um pequeno recorte:
“O evento de hoje foi concebido especialmente para nos proporcionar a oportunidade de ouvir autoras e autores que têm refletido profundamente sobre a chegada do mundo dos algoritmos e que são capazes de apontar seus maiores desafios. Cabe a nós escutarmos como uma tentativa de organização para perguntas e dilemas que chegaram ao limite da espera entre nós analistas. Perguntas como: 1) Quais são os impactos na subjetividade e na corporeidade em um mundo onde o desejo é confrontado pelos algoritmos? 2) O que podemos esperar em relação às novas formas de sofrimento e à produção de sintomas neste cenário? 3) E, por fim, qual a responsabilidade ética da psicanálise em um contexto em que o vínculo social se vê cada vez mais desafiado pela aceleração do tempo e pela reconfiguração das formas de mal-estar?”
A seguir, tivemos a presença instigante de Lucia Santaella, pesquisadora de Semiótica, Psicanálise e Tecnologias Digitais. Embora a maior parte do público já conhecesse a vasta e rica produção da pesquisadora, foi ainda mais surpreendente descobrir como além da já sabida potência intelectual, Santaella nos presentearia com momentos de encontro genuíno, diversão, risos, trocas de afetos.
Na sequência, Marcelo Buzatto – cofundador do Centro de Pesquisas em Pós-humanismo e Humanidades Digitais do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp – discutiu vários aspectos do funcionamento dos algoritmos, abrindo o debate acerca de novas práticas subjetivas e sociais que emergem com a expansão rizomática da vida digitalizada.
Encerrando as apresentações da primeira mesa-redonda, Ilana Katz, com grande sensibilidade, trouxe inúmeras questões que enfrentamos na nossa clínica contemporânea: engajamento é uma forma de laço? O que esse laço opera na nossa relação com a falta? Com nosso tempo de compreender? Ela nos fez notar como o tempo freudiano – o tempo de recordar, repetir e elaborar – acontece se espalhando no tempo, no ir e vir de uma fala, nessa passagem de um significante a outro, no qual se dá a produção de saber. E ela nos convidava a pensar como isso ocorria na rede em que são oferecidos incessantemente posts. Ou ainda, como nos disse Santaella, é preciso que nós psicanalistas possamos pensar a relação dos algoritmos que leem nossos desejos, o que abriu para outras tantas ideias no transcorrer do debate.
A delicada condução da mesa, capitaneada por Marcia Bozon, assegurou um espaço de trocas divertidas com o público, que exerceu uma “associação livre grupal coletiva”, trazendo várias ideias instigantes para pensarmos as questões trazidas nas falas.
O segundo dia do evento foi aberto com a estimulante fala de Renata Cromberg, que partiu da máquina de calcular de Ferenczi para assinalar a dimensão maquínica do nosso psiquismo e como isso nos permite avançar a ideia de haver algo de máquina em nós, de quanto a tecnologia nos constitui e constitui nossos saberes.
A seguir tivemos uma mesa-redonda que foi coordenada com vivacidade e bom-humor por Eugênio Canesin Dal Molin, capaz de estabelecer um ritmo instigante de falas e trocas com o público. Christian Dunker inaugurou as falas trazendo indagações relacionadas ao momento contemporâneo pensado como novo campo da linguagem digital, novos tipos de produção do sujeito, e a questão de como podemos pensar as novas subjetividades. O psicanalista trouxe várias ideias inovadoras, salientando como não fazia parte da nossa metapsicologia o problema da autorreferência e do infinito, e suas relações com os algoritmos e as interfaces entre psicanálise e IA.
Em sua fala, Julieta Jerusalinsky ressaltou como a sobredeterminação inconsciente produz formações que rompem com a razão, produz nonsense pelo ato falho, pelo esquecimento, pelo sonho. Já no cenário dos nossos tempos de IA, algoritmos e virtualidade, Jerusalinsky trouxe para o debate a proposição de uma outra sobredeterminação do sujeito contemporâneo, sobredeterminação algorítmica que suprime as brechas desde as quais a interrogação do sujeito do desejo poderia se produzir, antes de dar lugar aos enigmas, às invenções singulares do sujeito. A psicanalista abordou como viu essas mudanças na clínica psicanalítica desde quando começou a receber os bebês e crianças que nasceram já nos tempos digitais: crianças sideradas pelo brilho da tela, crianças habitadas por holófrases que vinham de aplicativos, trazendo a questão se podemos pensar que o Outro para essas crianças eram esses gadgets, esses Ipads etc.
Outras questões levantadas foram o rápido pêndulo do amor-ódio nas redes sociais, o efeito espelho das redes, os gadgets modificando o modo como cada um representa o que há de mais íntimo na sua vida, como essa geração se coloca na linguagem, os modos de editar a nossa vida e como isso é atravessado pela IA e seus algoritmos. Assim como na fala de Ilana Katz, Jerusalinsky comenta como se suprimiu o tempo de elaboração psíquica, que se precipitou um ato que deve ser a reação que vem logo depois da visualização (retrato do colapsamento das três disposições do tempo lógico – proposto por Lacan – que antes eram o instante de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir). Por fim, a psicanalista problematiza como em nossos tempos podemos falar de psicopatologia da vida digital contemporânea e sua sobredeterminação algorítmica (nos instigando a pensar a virtualidade como um quarto nó, adicional ao Real-Simbólico-Imaginário), e como pensar os riscos das tecnologias digitais.
Também nessa linha de problematização dos riscos das tecnologias digitais foi que Marina Bialer salientou, em sua fala, os efeitos da algoritmização das massas e das multidões digitais, os riscos da algoritmização de racismo e sexismo algorítmicos, as manipulações de corações e mentes feitas de modo algorítmico e as fake news. A psicanalista salientou como a Internet, designada “o experimento social mais desregulado de nossos tempos”, retrata os desafios que enfrentamos para pensar os impactos imprevisíveis dos algoritmos na sociedade contemporânea e a importância de nós, psicanalistas, colocarmos a psicanálise em movimento para pensar as questões levantadas pelos nossos tempos digitais algorítmicos.
Fechando a mesa-redonda, Mario Eduardo Costa Pereira nos falou do “Inconsciente Algorítmico”, avançando ainda mais a questão crucial do algoritmo e suas interfaces com a psicanálise. O psicanalista retomou a perspectiva do maquínico (da parte não-humana) no psiquismo que fora abordado por Cromberg para assinalar o interesse da cibernética na perspectiva lacaniana, notadamente a relação entre cibernética e a teoria do sujeito em Lacan. Por fim, o psicanalista abriu importantes questões comentando como a IA sabe de nós, a partir das nossas pegadas digitais, e como a IA pode se apropriar dessas marcas de quem somos, das nossas fantasias.
O debate final demonstrou como o evento foi disparador de intensas trocas que nos permitiram abrir eixos para pensarmos o contemporâneo, o que é alinhado ao que dizemos usualmente na atualidade, da importância de enquanto psicanalistas estarmos à altura dos nossos tempos. Como diz Jô Gondar[2]:
“Uma psicanálise atenta ao universo digital e ao mundo pós-humano não significa uma psicanálise mecanizada, ao contrário, significa apenas que ela pode acolher a diversidade do mundo que compõe cada um de nós. É justamente ao questionar seu antropocentrismo que a psicanálise pode atingir um conhecimento mais profundo sobre aquilo que nos liga e faz laço. Ao reconhecer o quanto dependemos de outros seres, humanos e não humanos, podemos alargar a nossa escuta e cultivar… uma visão mais larga e mais generosa” (Gondar, 2024, p.22).
Não poderíamos deixar de mencionar o instigante “espaço café” criado por uma das organizadoras do evento – Helena Lima – que, com o apoio indispensável de Claudia Dametta, montou um espaço aconchegante, propício à troca de ideias e afetos, na companhia do coletivo Anna O. (Nespresso), Dora (Dolce Gusto) e Melanie Klein (3♥️). Afinal, como já disse Helena Lima: a Psicanálise se faz entre amigos. E sabemos desde os tempos de Freud a importância dos cafezinhos (naquela época, após as reuniões de quartas-feiras) para a construção dos laços da comunidade de psicanalistas.
Vale assistir à gravação, disponível no canal do YouTube do Departamento https://youtu.be/7HD5KCzqP5E
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[1] Texto produzido pela Comissão Organizadora do Evento Psicanálise e Algoritmos: Eugênio Canesin Dal Mollin, Helena Lima, Ivy Semiguem Freitas Souza Carvalho, Marcia Bozon de Campos, Marina Bialer, Renata Udler Cromberg.
[2] Gondar, J. (2024). Apresentação: outros futuros para a psicanálise. In Bialer, M. Psicologia das multidões digitais: as fake news na pandemia (pp. 17-22). São Paulo: Blucher.