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Revisitando a revisita de Ferenczi

por Viviane Hercowitz[1]

Recebi, com muita alegria, o convite para escrever sobre o evento Revisitando Ferenczi: uma psicanálise contemporânea, que aconteceu em 29 e 30 de novembro de 2024, organizado pelo grupo de trabalho Comunidade de destino do Departamento de Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae. Escolhi contar a partir do formato do evento enquanto um envelope ético e conceitual, e segui com algumas elaborações do processo do planejamento e execução desse evento construído coletivamente e  alinhado aos pensamentos de Sándor Ferenczi.

Foi durante as reuniões preparatórias da 14º Conferência Internacional Sándor Ferenczi que Camila Flaborea idealizou o nosso Grupo de Trabalho, buscando abrir mais espaços de estudos e circulação do legado desse autor. Essa ideia foi aceita pelo Departamento de Psicanálise, e rapidamente encampada por Renata Udler Cromberg, que trouxe para esse coletivo inaugural Eugenio Canesin Dal Molin e Débora Gaino Albiero.

Também foi a 14º Conferência Internacional Sándor Ferenczi que plantou as sementes para nosso evento. Nela, houve uma grande diversidade e quantidade de trabalhos apresentados em salas simultâneas, por isso, muita gente não pôde participar de mesas de interesse. Surgiu então uma demanda por novos espaços de compartilhamento de trabalhos apresentados, a qual tentamos contemplar, sempre parcialmente, na elaboração desse evento.

Vale ressaltar que a diversidade se fez presente também nessa comissão organizadora do evento. Além de mim, estavam: Débora Gaino Albiero, Eugênio Canesin Dal Molin, Gabriel Mugnatto, Leonardo Tunoda e Marcia Bozon. Temos idades, instituições de formação e percursos socioculturais diversos, mas todos nós estamos alinhados ao projeto político-institucional do Departamento de Psicanálise, do Instituto Sedes Sapientiae e do GBPSF. Essa nossa mini  “comunidade de destino” se materializou num devir rico, por exemplo, com a lindíssima arte do folder de divulgação do evento feita pelo Gabriel. Tivemos um diálogo permanente com algumas áreas do Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise, como de Publicações e Comunicação (Daniela de Andrade Athuil Galvão de Sousa)  e de Eventos (Ana Carolina Vasarhelyi de Paula Santos), além de todo apoio da Claudia Dametta; nesses momentos, o papel de facilitação e articulação dentro da comissão teve a prontidão luxuosa da Márcia e da Débora. Eugênio trouxe para o evento as diversas conexões fundamentais com o GBPSF, juntamente com a Débora, principalmente nas montagens das mesas e na interlocução com cada participante, a fim de gerar encontros e debates interessantes para todos. Leonardo trouxe sua disponibilidade impressionante e sugestões em cada etapa de planejamento do evento, e eu cheguei com minha intensidade, sempre na busca pelo rigor ético e técnico, costurando as decisões.

Cuidamos especialmente de fazer os trabalhos circularem, serem escutados e refletidos, dentro do nosso limite de tempo e espaço, e também de disponibilidade, visto que já era final do ano. Nesse cenário atentamos para, pelo menos três fatores de extrema importância:

  1. incluir a maior diversidade de corpos, raças, gêneros e etnias no evento;
  2. diversificar os temas, refletidos à luz das ideias de Sándor Ferenczi;
  3. garantir as condições mais favoráveis possíveis para a palavra circular numa ambiência de confiança e horizontalidade.

 

Enfim, condições em consonância com as ideias do autor, especialmente em relação aos cuidados com os jogos de poder, com a hipocrisia, favorecendo um “sentir com”, de encontros vivos e honestos.

O convite foi aberto a membros e aspirantes a membro do Departamento de Psicanálise do Sedes, com reserva de vagas afirmativas para alunos cotistas, atenção permanente de todo Departamento de Psicanálise , potencializada pela Comissão de Reparação do mesmo. Os temas das mesas destacaram Ferenczi como pensador político, atento aos jogos de poder e às hipocrisias, aos desmentidos na gênese dos traumas individuais e sociais, e aos riscos de catástrofes e possibilidades de cuidados.

Planejamos a estrutura de cada mesa da seguinte maneira: havia os apresentadores de dois trabalhos, um colega do grupo de trabalho Comunidade de destino como guardião dos tempos e movimentos das apresentações dos trabalhos e da roda de conversa , e também a figura que, ao meu ver, foi um dos pontos mais fortes do formato geral: os mediadores/comentaristas. Para essa tarefa escolhemos pessoas de fora do GT com percursos ligados à obra do Ferenczi, e que, a partir das leituras dos trabalhos, destacaram algumas passagens que lhes ecoaram significativamente, com o intuito de tecerem conceitos, abordarem e discutirem os  manejos clínicos expostos, além de promoverem a circulação e conexões de afetos, conhecimentos e inquietações entre os autores e os participantes nas rodas de conversa. Foram eles: Julio Verztman, Adriana Barbosa Pereira, Renato Mezan, Décio Gurfinkel, Maria Elisa Labaki e Daniela Romão Dias.

O encontro de diversas gerações de psicanalistas em cada mesa também considerei um brilho do formato do evento. Renato Mezan mediou uma mesa com jovens pesquisadores psicanalistas, juntando o tema do tédio com a pornografia. Mezan fez um passeio por histórias do movimento psicanalítico, alinhavando conceitos aos contextos culturais. Foi também rigoroso com o uso de conceitos usados nos trabalhos.

Maria Elisa Labaki mediou uma mesa sobre “Trauma, onipotência e acesso à realidade” e  a “anfimixia e fusões eróticas”, também de duas jovens pesquisadoras. Achei marcante a passagem na qual a mediadora comentou sobre a palavra sensória, ou seja, quando a palavra presentifica mais do que representa, como uma representação coisa que não admite a polissemia das representações. Ela seguiu dando enorme valor aos trabalhos que refletem as questões da sexualidade e de gênero , orientados pelo método utraquista. Método esse que valoriza concepções e lógicas heterogêneas para o proveito e a fecundação de cada uma delas, numa dança entre mistura e multiplicidade.

Na mesa sobre a potência do encontro interracial e os traumas sociais, Julio Verztman (um homem branco) trouxe sua abertura e expansão subjetiva no encontro com Marleide Soares (uma mulher preta) quando ela mediou sua mesa na Conferência Internacional, e agora estava como mediador da mesa,  aprendendo ainda mais com seu trabalho; foi uma beleza!

Todos esses cuidados com o formato do evento se materializaram logo na abertura, com uma mesa composta pela Débora Gaino Albieiro, Camila Flaborea e Julio Verztman em falas lindíssimas que deram o tom dos momentos seguintes. Havia naquelas presenças uma mistura de paixão e ternura, falas fortes, com posicionamentos políticos claros, e rigorosas conceitualmente. Eles construíram uma ambiência de hospitalidade desde a abertura da Débora, entremeadas por um banho de cultura em suas diversas linguagens que Camila nos trouxe, junto com  a simpatia inteligente e cheia de humor de Julio.

Camila disse: “Ampliar a ideia de que a democratização do campo psicanalítico passa necessariamente pela comunicação que alcança de fato o outro, em emissão e escuta, e que contribui para gerar um ambiente hospitaleiro, seja em nossos consultórios, seja em nossos espaços de transmissão ou trocas institucionais. Existe, portanto, uma confluência de intenções que põe o GBPSF e o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae num mesmo campo de luta. A busca por práticas democráticas e progressistas que une a teoria psicanalítica em sua origem, desde as clínicas públicas, desde Freud e a primeira geração de psicanalistas reverbera nesse encontro.”

Julio ficou com a complexa tarefa de nos trazer uma reflexão do porquê Ferenczi no Brasil. A imensa procura por cursos e eventos que falam desse autor chama a atenção. Nesse evento, por exemplo, em menos de 24 horas de divulgação, as vagas estavam quase todas preenchidas, e em poucos dias já tínhamos uma grande fila de espera.

Julio Verztman ressaltou alguns pontos que nos ajudaram a compreender esse fenômeno:

  1. Sua fidelidade radical ao movimento psicanalítico heterogêneo e contrário à ortodoxia e à submissão.
  2. Sua insistência em desconstruir uma definição rígida e protocolar do que chamamos hoje de critérios de analisabilidade, e que tornam este autor uma grande inspiração para a presença do psicanalista em contextos pouco usuais, com arranjos psicopatológicos considerados avessos à nossa terapêutica ou com formas de socialização diferentes das características de uma elite econômica ou cultural.
  3. Ferenczi nos inspira a sempre procurar o psiquismo enraizado em seu ambiente, com as ferramentas conceituais proporcionadas por esse ambiente.
  4. As inúmeras possibilidades que Ferenczi oferece para pensar o trauma social, especialmente em suas vertentes do desmentido, do descrédito e da desautorização.
  5. A insistência de Ferenczi sobre a necessidade de uma elasticidade da técnica, cumprindo o papel de proporcionar contato com experiências indizíveis, inaudíveis, invisíveis e com baixa potencialidade narrativa.
  6. A amplitude de sua denúncia sobre nossa hipocrisia profissional. E ela não é marcada pelo recalque. Ela diz respeito a algo que é sabido, acessível teoricamente, mas silenciado a um nível assustadoramente superficial. A hipocrisia é uma das marcas mais importantes da sociabilidade brasileira. Os mitos da democracia racial e da meritocracia assim o demonstram.
  7. O interesse crescente, embora contra-hegemônico, da discussão sobre a nossa colonização na literatura psicanalítica brasileira, e que torna os textos de Ferenczi um manancial de conceitos para discutir os efeitos da assimetria de poder, tomando como base a relação entre os bebês/crianças e os adultos.

 

Foi interessante sentir como cada item desses permeou tanto o percurso de estruturação do evento que descrevi, quanto os próprios conteúdos dos trabalhos apresentados.

A meu ver, por exemplo, não foi mera coincidência ter o texto “Ferenczi como pensador político” de Jô Gondar, como um dos mais citados no evento . Nele, Jô diz que o modelo proposto para Ferenczi não restringe a desautorização à experiência de abuso da criança pelo adulto, mas amplia para as relações de poder, de dependência, de desvalorização, de desrespeito. Em suma, de relações políticas.

Jô Gondar diz também nesse texto que, para Ferenczi, a catástrofe não é necessariamente traumática; ela pode se tornar traumática se, ao desastre, se somar esse outro elemento capaz de minar a confiança básica, em si, no outro, na vida. Esse elemento é o desmentido.

Apareceram, nos trabalhos apresentados, uma rica diversidade de espaços de escuta psicanalítica: escolas, instituições de formação psicanalítica, as ruas, equipamentos públicos de saúde. Conceitos como autotomia, fragmentação, colapso, clivagem, foram trazidos em exemplos vivos de sujeitos e coletivos traumatizados de formas estruturantes e não estruturantes. Caminhos criativos de cuidado nessas situações incluíram mais ideias de Ferenczi, como por exemplo, na ênfase no potencial de criação das chamadas comunidades de destino. Comunidades essas que acreditam ser possível fundar as relações nas vulnerabilidades compartilhadas como forma de estabelecer laços de confiança, realçando a importância do reconhecimento tanto na constituição do sujeito quanto nas relações sociais.

O encerramento com Daniela Romão, Eugênio Canesin Dal Molin e Marcia Bozon trouxe a alegria da realização do primeiro evento do GT Comunidade de destino!  Aqui novamente destacaram a expansão da circulação das ideias de Ferenczi, com o salto que ele nos ajuda a dar, como companheiro de jornada, para sermos analistas situados em um tempo e espaço, pensando nossa prática também a partir dos marcadores sociais que nós, analistas e também as pessoas com quem trabalhamos, carregamos. Ou seja, um salto da intersubjetividade doméstica para a social.

Nessa conversa de encerramento, enfatizaram ainda que revisitar não é se concentrar em Ferenczi numa espécie de dogmatismo, e nem fazer dele uma nova escola, mas realizar um esforço na direção de recuperar a complexa trama de histórias, debates e personagens que formaram o “coletivo” do movimento psicanalítico. Um coletivo híbrido e heterogêneo, ao mesmo tempo, com transgressões e criatividade.

Foi bonita a festa, pá, fiquei contente!

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[1] Aspirante a membro em processo de admissão no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae , membro do Grupo Brasileiro de Pesquisa Sándor Ferenczi, ex-participante da comissão de coordenação do núcleo “Aproximações” nesse mesmo grupo.

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