Abstinência[1]
por Ana Maria Sigal[2]
O sentido da política é a liberdade.
Hannah Arendt
Regra de abstinência: abstinência de desejar pelo outro sim, nunca abstinência de assumir as responsabilidades como sujeitos da história.
Sigmund Freud aconselha a abstinência como ferramenta valiosa para acompanhar a atenção flutuante e ser capaz de instituir uma escuta que nos permita aproximarmo-nos dos pensamentos inconscientes. O que fizeram alguns psicanalistas com esse princípio enunciado por Freud?
No verbete do Vocabulário da Psicanálise de Jean Laplanche (1987, p. 1), abstinência é um princípio ou uma regra da prática analítica segundo a qual o tratamento analítico deve ser conduzido de modo tal que o paciente encontre o menos possível de satisfações substitutivas para seus sintomas. Para o analista, implica o preceito de se recusar a satisfazer os pedidos do paciente e a preencher efetivamente os papéis que este tende a lhe impor. Em certos casos e em certos momentos do tratamento, a regra da abstinência pode constituir-se em indicações relativas a comportamentos repetitivos que dificultam o trabalho de rememoração e elaboração.
Poderíamos acrescentar que é importante não só nos abstermos de satisfazer o paciente, mas também de desejar pelo outro: diferenciar o desejo próprio daquilo que o paciente põe em jogo na transferência como forma de encontrar os caminhos de sua subjetividade. A desejar por ele já estiveram seus pais ou aqueles que, à sua volta, foram objetos de seu desejo na infância, aqueles cuja moeda era o amor e a aprovação e que se reatualizam hoje na transferência. Referimo-nos àqueles que são o motor de sua sexualidade infantil. Hoje, na repetição, não podemos nos atribuir esse lugar.
Em artigo de 1915, Freud (1975b, p. 168) aborda essa questão e diz: “quero propor a regra de que é preciso manter nos doentes necessidades e aspirações, como formas que impelem para o trabalho e para a mudança, e evitar calá-las com sucedâneos”.
E o que esses conceitos de neutralidade e abstinência teriam a ver com o psicanalista politicamente neutro, que não pode se expressar frente às ocorrências de seu tempo?
Parece que muitos psicanalistas, apoiados num conceito que nos oferece a psicanálise, o transmutaram e inventaram uma fórmula cômoda para se manter alheios à realidade e fazer do tratamento uma forma de se desresponsabilizar e não assumir seu lugar cidadão, evadir-se das lutas e esconder-se atrás de uma neutralidade que não faz bem nem aos pacientes, nem a si mesmos. Entenderam por abstinência a abstinência de viver, de participar, de ter opinião.
Parece que psicanalistas não têm time de futebol, não escrevem nos jornais posicionando-se frente aos fatos que lhes atingem, não assinam petições ou manifestos, não podem assumir suas escolhas sexuais livremente. Precisam vestir terno preto com risca de giz –como se diz que ensinava Meltzer– para evitar que o paciente possa reconhecer nossas diferenças e assim influenciar a projeção? Segundo esta concepção, o psicanalista deve se apresentar como tela em branco para permitir que o paciente fantasie. Houve uma época em que se pretendia atribuir ao psicanalista uma imagem mítica, que apenas emergia na penumbra do consultório, afastada da realidade e do contato com o paciente. De que psicanálise estamos falando? Freud atendia em sua casa, seus pacientes cruzavam com suas filhas, conheciam seu ambiente e, como nos conta no Homem dos Ratos (1975a, p. 157), o paciente associa com uma jovem que encontra nas escadas de sua casa, e traz uma presença de algo do mundo de Freud que o transforma em sua realidade imaginária. A vida de Freud continua, e o paciente faz com essa evidência o que deseja. Analisava seus próprios discípulos, com os quais a posteriori mantinha encontros científicos, brigas institucionais e discussões técnicas. Se a psicanálise tem uma marca, é a singularidade de trabalhar em transferência a neurose clínica, abordando o inconsciente. Não se pode confundir o lugar do analista na sessão, na qual se sustentam as atribuições de suposto saber, com o homem, o sujeito que tem um lugar no espaço social.
Por sermos psicanalistas, temos que deixar que a história nos passe por cima? Nossas declarações, nossas aparições serão sempre vistas pelo paciente segundo sua forma de nos ver na transferência. Essas posições do psicanalista como homem público se enunciam em um espaço diferente do da condução da cura.
Em que, como psicanalistas, estamos afetados pelo mundo que nos circunda?
Nestes sombrios tempos, nos quais testemunhamos atrocidades que jamais pensamos que poderiam ser o foco da condução política, em tempos de horror em que se fazem tentativas de desmontar universidades e planos de pesquisas, nos quais o ensinar a pensar através da filosofia, da sociologia e da arte resulta ameaçador porque é necessário que não se estimulem as mentes críticas, em momentos nos quais se pode defender a propriedade privada a bala e todo mundo pode estar armado e transportar armas, em que as diferenças e as escolhas sexuais têm que ser reguladas, nos perguntamos: O que os psicanalistas deveríamos fazer: Abstermo-nos?
Vivemos, no nosso país e no mundo, um momento de retorno ao passado, que tenta abolir e renegar todos os processos que nos proporcionaram um avanço na história, tanto no aspecto moral quanto no econômico. Frente ao estado de desamparo em que chegamos ao mundo, estado que se reatualiza nos momentos de crises, as religiões avançam oferecendo a salvação e a certeza de um mundo seguro e mais garantido, utilizando-se da sugestão para marcar os horizontes. Temos que compactuar com isto?
Da mesma maneira, têm se ressuscitado, no nosso país, legislações contra as quais lutamos há anos, luta que se impôs a partir do triunfo da antipsiquiatria e através da qual foi possível humanizar a loucura. Agora, por intermédio de uma nota técnica 11/2019 divulgada pelo Ministério de Saúde no mês de fevereiro de 2019, e que abrange uma série de mudanças, se abandonam os princípios legais e assistenciais das várias estratégias de assistência psicossocial consolidadas pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, com riscos sérios de retrocesso das políticas de Saúde Mental no país. Entre outras determinações se pretende impor a internação compulsória de usuários de drogas e moradores de rua, retornando à instauração dos manicômios. Esse golpe mortal nas conquistas conseguidas também vai na direção contrária das recomendações de entidades internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial de Saúde (OMS). A psicanálise está intimamente ligada a esta lutas, pois propõe uma conduta não higienista diante dos conflitos psíquicos, entre eles os que se expressam através da drogadicção. Freud nos ensinou que, no futuro, a psicanálise também avançaria a novos horizontes e ela realmente tem se compromissado com a saúde pública, a loucura e novas formas de atendimento.
Por que estão sofrendo tantos retrocessos muitas de nossas investigações sobre a sexualidade, sobre a depressão, sobre a psicopatologia que se debruça sobre a angústia crucial do sujeito, sobre a possibilidade de a psicanálise atuar numa clínica que não se restrinja ao consultório privado, abrindo suas asas para a Saúde Mental no âmbito da saúde pública?
A resposta não deixa dúvidas: é porque essas medidas estão inseridas numa política mais ampla que vem dominando o mundo nos últimos anos. Há uma tendência a revitalizar o fascismo, o antissemitismo, o racismo, a perseguição às diferenças de gênero, e há retrocessos econômicos que afetam as populações mais necessitadas. Entendemos por revitalizar des-recalcar problemas que não foram resolvidos verdadeiramente, e sim recalcados, atuando sempre como modalidades do inconsciente individual e social. O politicamente correto foi uma fórmula que serviu para mascarar os verdadeiros conflitos. As políticas ditatoriais, permissivas com essas condutas deletérias, afrouxam o recalque, e cada um se sente no direito de manifestar seus ataques. Cresce a violência.
O processo psicanalítico deveria estar em oposição radical aos atos totalitários, uma vez que pretende facultar ao sujeito a obtenção de uma liberdade interna para questionar, e não para se submeter cegamente. Um espírito livre não pode passar sobre os acontecimentos e os indivíduos com um olhar indiferente. Não podemos aceitar o vale-tudo; pelo contrário, a ética visa à negociação entre pulsões e exigências ética e estéticas.
A psicanálise nos confronta com um homem que é constituído na sua própria história, na história individual e coletiva a que pertence. Não a história como passado, mas como um passado historicizado no presente, a história como entrecruzamento de itinerários possíveis. A história vista desse modo não manifesta um destino ao qual somos alheios. Podemos nos apropriar do recalcado, do desconhecido, podemos dar outros sentidos a nossos atos, podemos construir novas narrativas, podemos lutar para mudar a história, podemos nos comprometer de uma forma implicada com o mundo que nos rodeia.
Assim, a psicanálise aparece como um saber que desaliena, é uma forma de intervenção ético-política. Pela forma em que nosso saber opera, acaba eventualmente se tornando ameaçador, ao propor que o sujeito seja mais regido pelo desejo do que pelo terror e pelo submetimento. Esta ideia tem acarretado duros golpes para a psicanálise, já que tem sido banida e perseguida por todos os pensamentos autoritários que desejam submeter os sujeitos a suas normas rígidas e morais próprias. Foi um saber banido por todas as sociedades intolerantes que propõem a exclusão e morte das minorias.
Os psicanalistas alemães tiveram que fugir de seu país porque o nazismo os perseguiu. A psicanálise foi um saber condenado pelos pensamentos fascistas, banido pelas diversas ditaduras de direita e de esquerda, e questionado ultimamente pelas ideologias neoliberais que, com o mainstream da psiquiatria, propiciam as terapias cognitivistas e de resultados dirigidos, com proposta de metas a serem alcançadas, tentando abolir o conflito e renegar a infelicidade social. Também é atacada pelas ideologias moralistas e religiosas, que veem nela uma ameaça. Estas apresentam a psicanálise como uma ciência que subverte os valores da família e da religião, o que induziria o sujeito a condutas perversas.
No seio da psicanálise, a política foi um elemento fundante, seja na forma das políticas científicas presentes nas lutas teóricas das quais os psicanalistas não se omitiram, seja através das lutas políticas institucionais das quais fomos e somos testemunhas e das quais nos chegam incessantes notícias que respondem às divisões que se impõem no campo psicanalítico. Os analistas em formação participavam e compartilhavam, nas instituições, com seus analistas, momentos graves de tensão e diferença. Nunca se entendeu isto como algo que impossibilitava uma análise.
Também os psicanalistas tiveram participação política em processos dolorosos de omissões que deixaram rastros na história da psicanálise e da psicanálise no Brasil. Omitir-se é uma forma de participar politicamente.
Testemunhos da história
No Brasil, tristes histórias políticas mostram encruzilhadas trágicas da psicanálise e suas instituições, como é o caso de Helena Besserman Vianna (1994), perseguida implacavelmente pela Sociedade à qual pertencia, por querer desvendar a verdade sobre membros que colaboraram com a tortura. Não era conveniente na época fazer oposição ao regime, denunciando membros coniventes com a ditadura militar, isto poderia trazer problemas tanto para a instituição quanto para os membros que dela formavam parte. Era mais operativo, como defesa, recusar a realidade, assim como a criança desmente a castração: Vejo, mas não acredito no que minha visão me mostra. Este era o lema: Não há mortos nem desaparecidos, não há tortura, não é disto que nós, psicanalistas, devemos nos ocupar.
No prólogo ao livro de Besserman Vianna (1994, p. 9), Ricardo Horacio Etchegoyen, presidente da Associação Psicanalítica Argentina em 1993, faz referência ao entrecruzamento entre a política das sociedades psicanalíticas e a política da ditadura. A Dra. Besserman denuncia Amílcar Lobo, um candidato da SPRJ, como membro da equipe de tortura do 1º Batalhão do Exército durante a época mais feroz da ditadura (de 1974 a 1979, no governo Garrastazu Médici), assim como denuncia seu analista didata, Leão Cabernite, na época presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Este último, supostamente para proteger a psicanálise, defende Lobo contra todas as evidências. Amílcar Lobo, enquanto analista, utilizava seu saber a favor da violência, presenciando as sessões de tortura e regulando os processos que podiam manter a vítima com vida. Leão Cabernite, seu analista didata, sabia sem dúvida sobre os horrores cometidos e, em nome do sigilo terapêutico, foi conivente com esta situação. Dessa vez, a história fez justiça a Helena Vianna que, ainda em vida, pode assistir à retratação de seu nome, enquanto seus dois perseguidores, coniventes com a ditadura militar, eram denunciados e expulsos da SPRJ.
Para lembrar outro ato que desmascara a relação entre posição política e atuação no campo psicanalítico e sua implicação institucional, temos que recordar a expulsão de dois destacados psicanalistas, Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas, banidos da instituição por exporem publicamente suas posições políticas. A partir de uma apresentação realizada por Hélio Pellegrino durante o seminário “A psicanálise e sua inserção no modelo capitalista”, no auditório da PUC-Rio (1980) se deflagrou a crise que esses dois analistas tiveram com a Sociedade de Psicanálise de Rio de Janeiro, motivada pela denúncia do apoliticismo da instituição e pelo fato de ela ter, entre seus quadros de candidatos a analistas didatas, o torturador velado Amilcar Lobo. Tal crise se estendeu por dois anos, e culminou com a expulsão de Mascarenhas e Pellegrino, reintegrados somente por decreto judicial. Temos ainda, na história latinoamericana, a excisão dos grupos Plataforma e Documento da APA (Sociedade de Psicanálise Argentina). Grupos que lutavam para que fossem aceitas a discussão e a manifestação política dos analistas, além de problematizarem questões ligadas à política institucional, como o cânone da análise didática. Nessa época tentou-se banir os trabalhos sociais de Freud do ensino da formação. É necessário, portanto, diferenciar abstinência e neutralidade da negligência do âmbito em que se desenvolve nosso trabalho como analistas.
Por fim, a psicanalista Regina Schnaiderman, uma das professoras fundadoras do Curso de Psicanálise do Sedes, compromissada com sua época, de espírito democrático e engajamento político conhecido, grande lutadora contra a ditadura que assolou o Brasil, também sofreu perseguições por assumir a defesa da democracia em épocas de ditadura.
Não podemos repetir esses erros, somos chamados a tomar posições sem nos omitirmos do transcurso da história. Entendo que melhor poderemos escutar nossos pacientes quanto mais conscientes e analisadas tenhamos nossas relações com o pacto social.
Gilou García Reinoso (1973, p. 47), conhecida psicanalista argentina já falecida, contemporânea de Pichon-Rivière e de Emilio Rodrigué, que pertenceu ao grupo Plataforma da Argentina, nos formulou o seguinte questionamento, que faço meu:
“Parto do paradoxo: como profissional, como intelectual, como indivíduo, como psicanalista, desenvolvo minha atividade aparentemente sem nenhuma perturbação, num mundo em que, por outro lado, tudo está perturbado. Então que classe de liberdade é a minha? É liberdade ou isolamento?”.
Referências
FREUD, S. (1909) A propósito de un caso de neurosis obsesiva. In: Obras Completas, tomo X. Buenos Aires: Amorrortu, 1975a.
_________ (1915). Puntuaciones sobre el amor de transferência. In: Obras Completas, tomo XII. Buenos Aires: Amorrortu, 1975b.
LAPLANCHE, J. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
REINOSO, G. G. (1973). Questionamos a psicanálise e as instituições. Petrópolis: Vozes.
VIANNA, H. B. Não conte a ninguém. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
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[1] Originalmente publicado em Psicanálise & Barroco em revista. Edição especial: Psicanálise e Política: versões e reversões do mundo e do imundo, v. 17, n. 02, outubro de 2019.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise desde 1976, cofundadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma em 1997, que coordenou até o final de 2024.