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jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Convite a uma leitura inquieta[1]

por Daniela Danesi[2]

 

Antes de começar as considerações que pensei em trazer para vocês nesta noite, gostaria de também lhes dar as boas-vindas e falar do prazer de estar aqui junto à Sílvia, que divide comigo a coordenação a partir deste ano, e dos meus queridos colegas que compõem o grupo de professores do primeiro ano.

Recebemos também com muito prazer os alunos do segundo ano da minha turma e da turma da Sílvia.

Aproveito também para agradecer o imenso trabalho, dedicação e cuidado que Ana Maria Sigal e Lucía Barbero Fuks tiveram, ao longo desses anos todos, tanto ao pensar a programação do curso quanto ao acompanhar e consolidar a constituição desse corpo de professores.

Junto ao respeito às diferenças de pensamento e ao estilo de coordenação dos seminários, nos caracterizamos por sermos um grupo de analistas que preza muito o trabalho compartilhado e as discussões coletivas. Sem dúvida carregamos as marcas que tanto caracterizaram a presença e a condução do curso por essas queridas colegas que o fundaram.

Passo agora a tecer algumas reflexões a partir das reverberações da escuta dos candidatos ao curso, durante as entrevistas de seleção e, também, das discussões surgidas em sala de aula ao longo desses tantos anos em que estou no curso.

Renovo, aqui, uma pergunta que cada um de nós já se fez em algum momento de sua trajetória formativa e, certamente, vocês também, ao decidirem iniciar o percurso de leitura proposto por este curso: Por que ainda ler Freud hoje em dia?  E, como decorrência desta, abrir outra importante questão: Como ler Freud hoje em dia?

Iniciarei buscando responder à primeira pergunta para, em seguida, fechar o meu pequeno texto com um convite a todos nós para adentrarmos a leitura do texto freudiano a partir do que Sílvia nomeou, ao final de seu texto, como uma política de leitura.

Neste primeiro ano vocês acompanharão o jovem neurologista Sigmund Freud às voltas com a escuta de sintomatologias que acometiam o corpo de suas pacientes histéricas.

Esses sintomas não correspondiam a nenhuma descrição do corpo anatômico dissecado e descrito nos livros científicos de sua época. Nosso jovem médico começou a se perguntar sobre qual corpo, de fato, recaiam essas dores e, mais do que buscar suprimir o sintoma, compreendeu a importância de convidar os pacientes a falarem o mais livremente possível para se acercar do sentido destes sintomas, sempre entrelaçado com as marcas da história de vida do sujeito e do tempo histórico-cultural que habitava.

Eis que se desenhava, na teorização freudiana, um corpo mais além da anatomia: o corpo erógeno, imantado pela presença do outro e pelo campo da linguagem.

Através de suas manifestações corporais, as histéricas lançavam um desafio à compreensão médica da época, que buscava uma causalidade única como explicação desses fenômenos.

Ao devolver o saber às suas pacientes, escutando as suas palavras, Freud acercou-se da complexidade dos fenômenos psíquicos, tecidos em uma rede multicausal e sobredeterminada. Encontramos em seu conceito de séries complementares a ruptura com a ideia simplista das dicotomias: exterior-interior; natureza-cultura; biológico-psíquico, realidade material-fantasia, dentre outras.

Conforme podemos ver em seu texto escrito com Joseph Breuer, “Estudos sobre a histeria” (1895), as situações clínicas descritas ali eram de mulheres que, com suas paralisias, cegueiras, mutismos, etc., denunciavam o lugar subalternizado ao qual estavam condenadas naquela sociedade que silenciava os seus desejos e as impedia de acederem a uma verdadeira  autonomia.

Freud começou a se aperceber da importância da sexualidade adulta para a etiologia das neuroses, enquanto fonte dos sofrimentos que essas pacientes apresentavam na clínica. A noção de conflito entre o desejo e a defesa passou a ser um componente fundamental de seu pensamento sobre a formação dos sintomas.

Em seguida a estas descobertas teóricas iniciais, Freud cada vez mais retrocedeu no tempo ao escutar de seus pacientes relatos de acontecimentos sexuais vividos na infância, a partir da sedução imposta por um adulto. Desenvolveu a Teoria da sedução, com o seu componente traumático, que logo seria abandonada em 1897, com a descoberta da importância do que denominou como realidade psíquica e do mundo da fantasia.

É importante considerar que a ideia de trauma não seria totalmente abandonada e, sim, deslocada para a ideia de que a sexualidade humana, mais abrangente do que a tardia genitalidade, é sempre excessiva para o psiquismo, demandando-lhe um trabalho de enlace e derivação.

Não podemos nos esquecer também que a noção de trauma retornaria ao pensamento freudiano quando, em 1920, nosso autor conceitualizou a pulsão de morte. Mas esse caminho me afastaria muito das considerações que gostaria de fazer neste texto.

Vou, então, retomar o percurso freudiano no momento em que inaugurou a ideia de realidade psíquica. Esta virada conceitual permitiu a Freud articular o campo da sexualidade com o do inconsciente, que passou a ser pensado por ele enquanto uma instância psíquica que abriga as representações recalcadas.

Sonhos, atos falhos, chistes e sintomas passaram a ser pensados enquanto formações do inconsciente, mensagens cifradas que buscam abrir caminhos para que os desejos recalcados cheguem à consciência, sempre de forma disfarçada.

Aproximamo-nos aqui de um aspecto fundamental da ética da psicanálise que o pensamento freudiano inaugura, ao nos convocar a nos responsabilizarmos pelos efeitos desta outra instância que nos constitui[3].

O fato de não termos livre acesso aos conteúdos do inconsciente, às representações recalcadas e também, por mais que busquemos nos acercar destes conteúdos, sabermos que sempre vai sobrar um resto irrepresentável, não significa que devemos nos omitir diante do enigma dos nossos desejos.

Neste sentido, em conformidade com o pensamento freudiano, podemos dizer que o trabalho de uma análise não busca o equilíbrio, pois sempre inalcançável, muito menos a conformidade a ideais performativos culturalmente valorizados. Também não busca anestesiar toda e qualquer dor psíquica, reduzindo a experiência humana a uma atividade cerebral.

Concluo, então, esta primeira parte das minhas reflexões afirmando, em consonância com Joel Birman[4] que é preciso continuar a ler Freud hoje em dia, dentre outros motivos, porque o discurso que inaugura nos permite fazer resistência aos discursos biologizantes e comportamentalistas que imperam hoje em dia e que visam anestesiar e neutralizar toda a potência disruptiva que o nosso inconsciente carrega, enquanto manancial de sonhos e reservatório pulsional.

Devemos nos perguntar a partir das reflexões de Nelson da Silva Junior[5]: A quem interessa o apagamento da condição de sujeito nestes tempos de acirramento da empreitada neoliberal, em que cada ser humano é reduzido a ser um empreendedor de si, a partir da ilusão da meritocracia, que procura apagar todas as marcas históricas de violência e exclusão de muitos em benefício da manutenção de privilégios sociais e maximização dos lucros, na mão de poucos?

Deparamo-nos aqui, enquanto psicanalistas, com um dever ético de também escutar em nossa clínica as marcas psíquicas derivadas de nosso tempo histórico a partir de marcadores de exclusão tal como: raça, gênero, classe, sexualidade, território, dentre outros.

Afinal, justamente aprendemos com Freud que a psicologia individual é indissociável da psicologia social.

A psicanálise, já desde os seus inícios, ao dar voz ao sofrimento das mulheres em final de século XIX, aponta para a contramão dos discursos hegemônicos. Estas mulheres já não seriam então consideradas loucas ou simuladoras e, sim, portadoras de um corpo desejante que buscava denunciar, com os seus sintomas, os silenciamentos e violências aos quais era submetido.

Podemos dizer que o discurso freudiano, ainda hoje, nos permite considerar a experiência humana em sua condição de pathos constituída a partir da singularidade do sujeito implicada, sempre, em sua relação com os outros e na rede conflitiva das relações sociais.

Quero finalizar o meu texto com um convite à leitura do texto freudiano que de certa forma seja muito freudiana!

Ou seja, que sustente uma leitura inquieta, atenta às tensões, construções, desconstruções que compõem o estilo e a ética de um autor que produziu uma obra muito extensa e que nunca se negou a reformular as suas teorias fechando-as em verdades absolutas.

Uma leitura que não seja sacralizada mas que fuja do senso comum e do raso enquadramento em críticas superficiais a partir das etiquetas tão em voga nos tempos que correm, que nos impedem leituras aprofundadas e a colocação em trabalho dos conceitos à luz das problematizações com as quais nos deparamos na contemporaneidade.

Encerro com as lindas palavras de Gilson Iannini (2024):

A obra de Freud é uma biblioteca inteira, feita de livros, de mapas, de instantâneos, de infiltrações, de baús, de velharias, de tesouros escondidos, de correntes subterrâneas mais ou menos ocultadas sob superfícies estáveis. Tem tralhas num canto ou noutro, um cadeado sem chave, muitas janelas, nem sempre abertas ou arejadas. Mas tem também muita poeira, algumas quinquilharias, traças. Muitos leitores transitam pelas estantes, leem os livros, abrem uma janela ou outra. Tem gente que se fixa nas velharias, para apontar os buracos deixados por uma infiltração, por um tropeço, por um exagero. Outros só consideram verdadeiros os exageros. Há ainda quem se concentre na poeira. Aspirador de pó em punho, começa a limpeza. Há aqueles que preferem o tribunal, a inquisição e a fogueira. Fazem sucesso. Outros preferem o altar. Tanto a fogueira quanto o altar respondem à lógica sacrificial. Há ainda aqueles que roubam folhas amarelecidas para escrever cartas de amor, formando novos palimpsestos. Há quem se perca nesses labirintos, especialmente quando estes se multiplicam. Freud é muitos.”.[6]

Boa leitura!

 

Referências Bibliográficas:

Birman, J. Discurso freudiano e contemporaneidade. In: Por que Freud hoje?; organizador: Daniel Kupermann. São Paulo: Zagodoni, 2017.

Freud, S. Edição standard brasileira das obras completas (E.S.B.). Rio de Janeiro: Imago, 1974.

Freud, S. (1892-1899) Extratos dos documentos dirigidos a Fliess, Carta 69 (21 de setembro de 1897). In: E.S.B., v. I.

Freud, S. (1893-1895) Estudos sobre a histeria. In: E.S.B., v. II.

Freud, S. (1910) Cinco lições de psicanálise, Lição 3. In: E.S.B., v. XI.

Freud, S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: E.S.B., v. XIV.

Freud, S. (1916-1917) Conferências introdutórias à psicanálise, conferência XXIII. O sentido dos sintomas. In: E.S.B., v. XVI.

Iannini, G. Freud no século XXI, volume 1: O que é psicanálise? Belo Horizonte: Autêntica, 2024,.

Khel, M. R. Três motivos (pelo menos) para se ler Freud, hoje. In: Por que Freud hoje?, organizador: Daniel Kupermann. São Paulo: Zagodoni, 2017.

Silva Jr., N. “Pacto edípico, pacto social”: o Brasil da barbárie à desumanização em quarenta anos. Revista Poder&Cultura. Rio de Janeiro, v. 7, n.13, jan\jun 2020.

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[1] Apresentado como aula inaugural de Conflito e Sintoma 2025.

[2] Psicóloga, psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Integrante da Comissão de Reparação e Ações Afirmativas e do Grupo de trabalho e pesquisa Generidades, ambos do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] Khel 2017, p. 19.

[4] Birman 2017, p. 41.

[5] Silva Junior 2020.

[6] Iannini, 2024, p. 37.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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