boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Mulheres da Boca e outras histórias

por Maria Aparecida Kfouri Aidar[1]

 

Na década de 1970, com alguma abertura política em andamento, surgem grupos feministas que foram crescendo e se desdobrando ao longo do tempo, cujas histórias estão registradas e seus efeitos nos atravessam até hoje. Foi no feminismo que me engajei na luta por direitos, das mulheres é claro. Mas também contra a ditadura, por eleições livres e diretas, pelo fim das opressões. Os grupos dos quais participei estiveram sempre alinhados aí.

Em 1975, ano internacional da mulher, fiz parte de um coletivo recém surgido, com mulheres que vinham de diferentes lugares. “O chamado” foi de companheiras do Partido Comunista, então totalmente clandestino, e aí se juntaram jornalistas, ativistas de diferentes origens, estudantes – como eu – e mulheres exiladas que tinham acabado de voltar ao Brasil. Fizemos alguns debates, mas era um coletivo muito grande, com propostas que nem sempre convergiam. Rendeu diferentes frutos e se dispersou. Fundamental esclarecer que esse relato é sobre minha experiência e impressões e como sabemos que a memória sempre falha, o que pretendo aqui é relatar o que lembro, o que ficou na minha memória dessa parte de minha história.

Desse grupão saíram parte das fundadoras do Nós Mulheres (eu inclusive), o primeiro jornal a se declarar feminista. De 1976 a 1978, seu tempo de duração, publicamos oito números, disponíveis na internet, para quem se interessar[2].

Foi aí que conheci e fiquei amiga da Inês Castilho, jornalista, com quem dirigi o curta-metragem Mulheres da Boca[3], que inspirou esse relato.

Fomos constituindo uma rede de grupos e instituições que, se não eram feministas, se identificavam com a luta das mulheres. Papel fundamental teve a Fundação Carlos Chagas, que dotava bolsas para pesquisas sobre a mulher. Aqui começa a história do filme.

Inês e eu recebemos essa bolsa para fazermos uma pesquisa sobre prostituição na então chamada Boca do Lixo paulistana, localizada nas imediações da antiga rodoviária, onde a rua do Triunfo era um ponto fundamental. Aí localizava-se também a “boca do lixo” do cinema marginal paulistano, endereço das produtoras desses filmes. Origem dos filmes de Ozualdo Candeias, por exemplo.

Por que fazer um filme? O meu amor pelo cinema vem do berço. Em um primeiro momento da vida, influenciada pelo amor de minha família de origem pelo cinema americano e francês. Depois, no começo da vida adulta aprendi a amar o cinema brasileiro, através de minha convivência familiar com Paulo Emílio Sales Gomes. Aqui conheci também o cinema de arte, ou cinema autoral. Tenho marcada em minha retina a impressão da cópia colorizada de Ivã o terrível, de Einseinstein.  Além disso, Inês e eu éramos próximas, amigas, namoradas, colegas do pessoal das produtoras independentes paulistanas. Assim, com o desejo de fazer um filme, de contar uma história através do audiovisual, de seguir a luta feminista através do cinema, nossa pesquisa rapidamente transformou-se no projeto de um curta-metragem.

Para sua realização montamos um grupo de mulheres. Além de Inês e eu, Sarah Feldman, Sarah Yakhni, Jacira de Melo e Marcia Vicente. Nos associamos à produtora Tatu filmes e fomos à luta, fomos a campo.

Chegamos na rua do Triunfo com nossos amigos da Tatu que logo nos apresentaram ao Satã, produtor e ator de filmes realizados ali, e uma espécie de príncipe do pedaço. Foi amor à primeira vista, nos demos muito bem e Satã, com seu jeito suave e gentil, nos levou para dar uma volta na região, para nos mostrar o pedaço, mas fundamentalmente para avalizar nossa presença ali. Bastou essa volta, a partir dela, pudemos circular tranquilamente por lá, entre as trabalhadoras do sexo, cafetões, e toda população. Fizemos nossa pesquisa que se transformou em um trabalho de campo e de locação para a realização do filme. E filmamos, montamos e finalizamos o Mulheres da Boca,  entre 1980 e 1982.

Não sei se é possível relatar a experiência dessa imersão que fizemos na “boca do lixo” tantos anos depois. Inês e eu fizemos um relatório escrito, exigência de nosso contrato com a Fundação Carlos Chagas, mas esse relatório é pouco, comparado ao que conseguimos alcançar com o filme. Talvez o que fique mais forte seja a naturalidade com que nos aproximamos, a generosidade com que fomos recebidas, o “ombro a ombro” que vivemos com essas mulheres. Nossa abertura e respeito por seus trabalhos foi um ingrediente fundamental para o bom encontro que tivemos. Mudei para sempre meu imaginário, minhas ideias preconcebidas sobre as trabalhadoras do sexo. É óbvio que as diferenças gritantes, de classe principalmente, sempre estiveram. Mas naquele hiato de tempo fomos mulheres engajadas, cis, heteros e homossexuais, brancas e negras, lado a lado no setting de filmagem, em um mesmo projeto. Experiência única, inesquecível. Ultimamente  assisti a um documentário maravilhoso sobre o Ingmar Bergman[4]. Uma passagem importante do filme trata de seu olhar como diretor, ele faz o “elogio da câmera” e diz “ela capta a alma das pessoas”. Acho que conseguimos algo disso no Mulheres da Boca.

Nessa época, eu já era psicóloga e fazia meu caminho e formação pela psicanálise. Fiz outros trabalhos em vídeo e filme mas mergulhei mesmo no ofício de psicanalista. Com o tempo, o Mulheres foi ficando distante, nunca esquecido, faz parte de minha história, mas distante.

Dois anos pra cá, o filme voltou à tona em minha vida e venho atualizando essa parte de minha história. Surgiu a partir de um chamado de Inês, que vinha cuidando do filme, acompanhando sua digitalização e mantendo contato com jovens mulheres ligadas ao cinema e seu trabalho de resgate e estudo dos filmes de mulheres na época da ditadura civil-militar.

Depois de Mulheres da Boca, nos engajamos em outro projeto que resultou no curta-metragem Histerias[5], de 1983, dirigido por Inês, para quem fiz assistência de direção. O filme, também considerado experimental, é um olhar de mulheres para mulheres, passando por sua saúde mental, opressões, encenado com coreografia de Juliana Carneiro da Cunha.

Nesse período, começo dos anos 1980, eu fazia parte de um grupo de estudos com amigas psicanalistas, que deu origem  ao coletivo Núcleo de Psicanálise, Cinema e Vídeo. O grupo era constituído por mim, Heidi Tabacof, Marta Azzolini e Maria Lúcia Arroyo Lima (amiga muito querida, que infelizmente já se foi para outras dimensões). Durante um tempo, Maria Rita Kehl também esteve conosco, mas logo saiu para seguir sua carreira solo, que conhecemos bem.

Faz tempo que penso em escrever sobre minha experiência no Núcleo, chegou o bom momento para isso. Depois da assistência de direção do Histerias, segui meu trabalho como psicanalista e o grupo de estudos logo se transformou num grupo de trabalho, à medida que decidimos falar sobre a psicanálise através do cinema e do vídeo, baseadas no desejo de democratizar a psicanálise. A concretização desse desejo aconteceu por ocasião de um primeiro encontro, ocorrido em Havana, da psicanálise com a psicologia marxista, como os cubanos a denominavam. Encontro memorável entre cubanos, brasileiros, argentinos e uruguaios, principalmente. Fomos o primeiro grupo de brasileiros a entrar oficialmente em Cuba, com quem o Brasil acabara de reatar relações diplomáticas – ainda existia diplomacia…

E fizemos o primeiro filme, o curta-metragem Psycuba[6], produzido por nós e dirigido por Heidi Tabacof. A experiência em Havana, de alguma forma, me remete ao que vivi no Mulheres da Boca; fomos a campo com a cara e a coragem, vivência intensa, divertida, de grande aprendizagem sobre o encontro com a diferença, com nossos mestres, pares e colegas. O Psycuba é um material raro, com passagens como a bela entrevista com Marie Langer, de maiô preto na beira da piscina do hotel Habana Libre, antigo Hilton. A imagem dela, sua voz, sua fala, estão coladas em mim para sempre.

Foi na realização do Psycuba que nomeamos o Núcleo de Psicanálise, Cinema e Vídeo.

De volta ao Brasil, levamos um bom tempo na montagem do Psycuba e começamos a semear a ideia de fazer um filme de ficção, a partir de um conto de Maria Lúcia Arroyo Lima, A mulher do atirador de facas[7].

Em 1988 o projeto saiu do papel. Tivemos a verba de um edital, a parceria com a Super Filmes, e dessa vez vivemos uma experiência inédita entre nós, fazer um filme de ficção com atores, Carla Camuratti e Ney Latorraca. Nilson Villas-Boas assinou a direção cinematográfica do filme e o Núcleo, a direção de projeto. Filme com direito a exibição e prêmio de melhor trilha original de José Miguel Wisnik, no festival de Gramado no mesmo ano.

Em 1993, em parceria com o Departamento de Psicanálise, fizemos o documentário Traduzir: Jean Laplanche e Haroldo de Campos. Trata-se de uma bela conversa sobre tradução, nas perspectivas do psicanalista e do poeta, material precioso sobre o tema[8].

Nosso trabalho seguinte foi contar um pouco da história da psicanálise brasileira e latino-americana através das filmagens que fizemos por ocasião do evento realizado para o lançamento da biografia de Freud escrita por Emilio Rodrigué, em Salvador, 1995. Trabalhamos em parceria com Moisés Rodrigues da Silva. Trata-se de entrevistas com o próprio Emilio e com psicanalistas de várias partes do mundo, que estiveram presentes no evento. Nesse material, temos um relato de grupo sobre a psicanálise em nosso Departamento. O documentário, Nós outros e a psicanálise, foi lançado em 2000[9].

Foi o último trabalho do Núcleo, cada uma seguiu seu caminho.

Filmar é uma experiência intensa, trabalhosa, admirável mesmo, mas não é algo que quis seguir fazendo.

Em 2003, fechei definitivamente minha produção em cinema e vídeo com uma entrevista realizada com minha tia, Nadir Kfouri, sobre sua experiência de vida como assistente social e reitora da PUC[10]. Fiz esse trabalho com minha prima querida, Maria Luiza Kfouri, jornalista, especialista em MPB, que infelizmente já se foi. A sugestão muito bem-vinda foi da Maria Auxiliadora Cunha Arantes, nossa colega Dodora, que foi a entrevistadora. Tenho uma enorme alegria em ter registrado esse material que tem servido como memória e fonte para trabalhos sobre a Nadir.

Temos acompanhado muitos filmes de resistência, como estão sendo chamados, como é o Mulheres da Boca, que vem participando de mostras como a Experimentações feministas, cinema, vídeo e democracia no Brasil (1972-1995), ocorrida no Cinesesc em fevereiro último. E então, o convite para que eu escrevesse esse texto para o Boletim.

Quero agradecer a Camila Flaborea que deu a ideia, a Adriana Dias que encampou e oficializou o convite e a Sílvia Nogueira que faz tempo me incentiva a escrever sobre minha experiência com o cinema e vídeo.

Então, tanto o jornal Nós Mulheres, quanto o filme, hoje chamado de experimental, têm sido objeto de estudo, de recuperação da história da luta feminista no Brasil.

Penso que com esse registro encerrei muito bem minha carreira de fazedora de filme e vídeo. Sigo amando o cinema como espectadora e com a certeza de que o bom cinema pode mobilizar afetos, trazer à tona memórias individuais e coletivas, como bem temos visto! Meu campo de atuação política segue sendo a psicanálise, prática civilizatória, mais necessária do que nunca nos tempos que vivemos.

__________

[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise e integrante do Conselho editorial da revista Percurso.

[2] https://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/nosmulheres/

[3] https://mubi.com/pt/br/films/mulheres-da-boca

[4] Bergman 100 anos. Trailer disponível em https://youtu.be/uH1TPmlVzS0?si=WHyVVM3LlqJNx1kr

[5] https://www.imdb.com/pt/title/tt21855410/

[6] https://www.youtube.com/watch?v=cM2h6lBxUpk

[7] https://www.youtube.com/watch?v=UKG3pNxcjJE

[8] A transcrição desse debate foi publicada pelo Núcleo de Psicanálise, cinema e vídeo em Percurso, 56/57 — Jean Laplanche –ano XXIX, jun-dez2016. Disponível em: https://percurso.openjournalsolutions.com.br/index.php/ojs/article/view/255/274. Filme disponível em: https://youtu.be/_s38R-BEht8?si=xF6C5JTxVtyyi-yS

[9] Disponível em: https://youtu.be/RFQekdQHrMg?si=jU7Y7_YZiz6iGcFQ

[10] Trechos do documentário Nadir Kfouri, de março de 2012, disponíveis em https://youtu.be/1zJadOt9_ZY?si=vzwj7fEHt0FI8Zxi