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A memória feminista na voz das mais velhas

Tide Setubal[1]

 

“Escute as mais velhas”!, sugeriram, na forma imperativa, essas duas mulheres, Sueli Carneiro e Neca Setúbal, uma negra e uma branca. Entre elas, uma amizade inusitada, que surgiu a partir do convite de Neca para Sueli participar do Conselho da Fundação Tide Setúbal. A partir daí muitos encontros, conversas e viagens. Duas mulheres de origens e cores muito diferentes, mas de idades parecidas, portanto contemporâneas na luta por um Brasil menos desigual, mais justo, antirracista, feminista. Foram colecionando inesperadas afinidades e construindo um comum na diferença. É uma amizade atravessada pelo trabalho – aliás esse é mais uma paixão em comum -,  que carrega uma mensagem e uma crença em si: é possível estarmos juntas e, mais: é preciso nos unirmos para fortalecer a luta coletiva.

Como um desdobramento dessa relação, surgiu a ideia de fazerem juntas um podcast, no qual entrevistariam mulheres feministas com mais de 70 anos que fizeram parte da história da luta feminista no Brasil, entrelaçando ainda outros temas como a luta antirracista, a democracia, a desigualdade brasileira. A memória, tantas vezes desprestigiada nesse país, é uma das grandes motivações desse trabalho. Lembrar e registrar para honrar essas mulheres que deram passos fundamentais para a luta feminista, luta tão importante que segue carregando, ainda nos dias de hoje, enormes desafios. Memoriar para seguir lutando ou como nos disse Lélia Gonzalez: “(…) a memória a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção.” (2020, p. 78)

Foram entrevistadas mulheres pioneiras, responsáveis por mudar de forma significativa o lugar da mulher no Brasil. Foi a primeira geração delas, nas décadas de 60 e 70, que pôde comprar pílula e ir para a Universidade. Isso foi verdadeiramente revolucionário! Mulheres que ousaram questionar a perspectiva hegemônica que imperava na esquerda da década de 70: “O problema verdadeiro é o de classe, o resto é subtema” (Sueli Carneiro no episódio da Maria Malta Campos). Mulheres que colocaram a questão da mulher (gênero) e da negritude (raça) no centro da luta, inaugurando, já naquela época, o pensamento interseccional que hoje desagua na luta identitária.

Elas descrevem um tempo propício para germinar a estratégia de mais espaço para as mulheres no campo social. Um canteiro de obra que se formou a partir do momento histórico onde internacionalmente tínhamos Cuba, Guerra do Vietnã e, no Brasil, a ditadura, inimigo comum. Depois, com a redemocratização, elas viram uma oportunidade única de criar, dentro do Governo Federal, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Esse órgão havia sido prometido a elas pelo Tancredo e, com a sua morte, elas exigiram que o Sarney mantivesse a palavra e assim aconteceu. Com espaço no governo, Schuma Schumacher, Jaqueline Pitanguy e Branca Moreira Alves contam como foram as lutas, as conquistas e os desafios dessa época. A luta acontecia no campo político, mas não exclusivamente, também a escutamos através do samba, do carnaval e da arte na voz de Leci Brandão, na Universidade com Heloísa Teixeira, na literatura com Conceição Evaristo, no mundo empresarial com Luiza Trajano.

Através dessas entrevistas vemos concretamente o que nos escreveu Lélia Gonzalez, feminista que foi inúmeras vezes citada nesse podcast: “É inegável que o feminismo, como teoria e prática, desempenhou um papel fundamental em nossas lutas e conquistas, na medida em que, ao apresentar novas questões, não apenas estimulou a formação de grupos e de redes mas também desenvolveu a busca por uma nova maneira de ser mulher. Ao centralizar suas análises em torno do capitalismo patriarcal (ou patriarcado capitalista), ele revelou as bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres, o que constituiu uma contribuição de importância crucial para a direção de nossas lutas como movimento.” (2020, p. 140) Movimento que denunciou o caráter político do privado ou, como dizem as feministas da atualidade, afirmou que “o pessoal é político”. A luta tem que continuar: Feminismo, presente!

 

Bibliografia

Gonzalez, Lélia. Por um feminismo Afro Latino Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

Podcast Escute as Mais Velhas – Spotify

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e supervisora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, integrante do grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o mal-estar contemporâneo e da Comissão de Reparação e ações afirmativas do Departamento de Psicanálise, colaboradora deste boletim online.

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