boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Uma escritora de obituários

por Julia Louzada de Souza[1]

 

Há exatos dez dias escrevi um texto para um jornal. Falava da morte de Pepe Mujica, mas escrevia, na verdade, sobre sua permanência. Preferi falar do que nele ficou aceso — o jeito de viver como se a vida coubesse em uma horta, na sua cadeira de madeira, em um cachorro dormindo aos pés, num fusca, em um amor de uma vida toda e num país que ainda pudesse ser justo.

Não escrevi sobre a morte. Escrevi sobre a centelha.

Hoje, sou chamada de novo à escrita — mas não por um artigo. Quem me chama é a ausência de Sebastião Salgado.

Escrevo não para informar. Escrevo para não naufragar.

Há perdas que são como fendas no tempo. Não se atravessa ileso.

Ele — que fotografava como quem escuta. Que enxergava não apenas com os olhos, mas com a memória do mundo. Que revelava com luz aquilo que tantos tentavam manter na sombra.

Sebastião era um homem da terra — e não só da terra geográfica, mas da terra viva, que pulsa sob os pés, que sangra quando esquecida.

Foi ele quem gritou a Amazônia em silêncio, com imagens.

Foi ele quem se deitou junto aos mortos do massacre dos Carajás, não para enterrá-los, mas para devolvê-los à história.

Agora, ele vive em minhas paredes. Mas mais do que isso — ele repousa em minha escuta em frente ao meu divã, e em meu modo de olhar.

Talvez, além de analista — alguém que aprende a formular lutos com os outros — eu tenha me tornado uma mulher que escreve obituários.

Obituários que não fecham uma vida, mas a alargam. Que não dizem “acabou”, mas murmuram: “olhe bem, ele ainda está aqui”.

Escrevo porque há palavras que sustentam o que o corpo já não pode.

Escrevo porque há mortes que pedem vigília.

E porque escrever, às vezes, é meu jeito de tocar o que já partiu.

Meu modo de lembrar que a vida é feita não só de começos — mas de insistências.

E há vidas que insistem mais do que a morte.

__________

[1] Psicanalista, ex-aluna do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.

uma palavra, um nome, uma frase e pressione ENTER para realizar sua busca.