O analista
por Maria Cristina Petry Barros Martinha[1]
Análise terminável e interminável… E quando o Real da morte se impõe intempestivamente? O que um analisante teria a dizer sobre o fim de análise entre a morte Simbólica e a morte Real do analista?
Uma homenagem in memoriam para Oscar Angel Cesarotto, analista lacaniano, nascido em 28/01/1950 em Buenos Aires, Argentina e que faleceu recentemente em São Paulo na data de 11/04/2025. Dados biográficos e relação das suas obras poderão ser encontrados em seu último livro Inconsciências – Psicanálise – Semiótica – Cultura material, lançado em 2019 pela editora Iluminuras.
Em Análise terminável e interminável[2], Freud revela um certo pessimismo quanto à eficácia terapêutica da psicanálise, considerando até mesmo os fatores constitucionais dentre as dificuldades com que ela se defronta e, além da defesa do eu e da força dos traumas, a pulsão de morte – responsável por grande parte da resistência encontrada na análise – é tida como a causa suprema de conflito na mente.
Já Lacan, em sua retomada de Freud, assim como a travessia da resistência à cura e do complexo de castração, defende que a cura adviria do confronto do sujeito com a verdade do seu desejo.
O processo analítico abordado por Lacan através dos três tempos lógicos[3]– instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir – ressalta que o analista atua para precipitar o momento de concluir do sujeito, rompendo com a temporalidade cronológica e promovendo uma apropriação subjetiva das vivências. Deve estabelecer uma relação entre o desejo e a morte como condição humana, aproximando o sujeito do Real – aquilo que resiste à simbolização.
O fim da análise é tido, não como uma erradicação da falta ou de uma cura total dos sintomas, mas sim como uma destituição subjetiva; podemos dizer até mesmo de uma morte simbólica do analista – colocado inicialmente como detentor do saber (Sujeito Suposto Saber) – uma vez que a transferência se desfaz. Implica a queda dos significantes mestres que representavam para o sujeito, das identificações idealizadas advindas do Outro, e do objeto que o completava na fantasia. Trata-se de uma transformação da posição do sujeito, liberando-o da alienação e permitindo-lhe assumir a responsabilidade por seu desejo.
E quando o Real da morte do analista se impõe para o sujeito? O que um analisante que perde o seu analista de modo repentino para a morte teria a dizer? Quais as implicações da morte física do analista?
Penso que a forma do analisante lidar com essa perda dependeria do grau de sua “travessia do fantasma” e de sua própria “destituição subjetiva” até aquele momento de sua análise, permitindo-lhe ou não integrar a perda como uma contingência da manifestação do Real, o impossível de se inscrever, com maior ou menor capacidade de aceitação.
Podemos entender a análise como interminável no sentido de que sempre fica um resto inapreensível de um Real que não cessa de não se inscrever. No caso de um analisante que se encontrasse em meio ao seu processo analítico e se deparasse com a morte do seu analista, creio que o interminável seria da ordem da transferência que não pôde ser finalizada, o que provavelmente dificultaria o início de um novo processo analítico.
E o analisante já em mudança de posição subjetiva, o que poderia também dizer quando, durante um processo analítico ainda que em tempo de finalização, morre o analista?
Um trágico fim de análise onde não existem palavras que deem conta dessa inexorável realidade. A morte é decididamente o Real que se impõe, extemporâneo, fortuito, imprevisível.
Como lidar com essa situação, dependerá da capacidade de cada um e, acredito, de como foi conduzida a análise até então. Poderá surgir um sentimento de desamparo, que seja fugaz, ou de orfandade, ou até mesmo de abandono, ou ainda…, enfim, cada caso é um caso.
Conheci o Oscar por volta dos anos 90 quando, juntamente com o Márcio Peter, também já falecido, realizou um curso de introdução a Lacan em seu consultório no Jardim Paulistano, onde, com Geraldino Ferreira, falecido no final de 2024, compunham esse trio referendado de psicanalistas lacanianos. Após o término do curso, procurei-o para iniciar uma análise que se deu por um bom tempo, no ritmo de três vezes por semana.
Há uns dez anos retomei a análise, desde então semanalmente, a fim de lidar com a realidade da morte do meu pai, grande mestre, no que fui recuperando o sentido da sua função em minha vida, da sua lei, do seu nome, finalizando todo um processo que incluiu, também, a ressignificação da morte de minha mãe, e ainda, a da primeira analista, após um tempo do encerramento daquele primeiro percurso analítico.
Participei por alguns anos da Associação Livre – São Paulo, onde Oscar – professor, mestre, doutor, psicanalista, semioticista, escritor e uma série de outros tantos dignos atributos – em parceria com Fani Hisgail, Paul Kardoux e convidados, coordenava as reuniões temáticas sobre o ensino de Lacan e também as reuniões clínicas, além do Café lacaniano promovido na Livraria da Vila, mensalmente, aos sábados.
Agora, em recentíssima data, não tive palavras e talvez ainda não as tenho plenas para dizer do que sinto, mas certamente lamento muito a perda por morte repentina de meu ainda analista, quem sempre esteve ao meu lado me ajudando a lidar com tantas perdas e lutos, mas também com tantos ganhos, reconhecimentos e gratidão pela vida. Saberei eu lidar com esse tão recente e inesperado acontecimento? Penso que sim, afinal, uma das últimas afirmações que lhe fiz, em sessão de antevéspera, foi a de que me via em paz, amando a vida, desejosa de viver tantos anos quantos me fosse possível viver, capaz de aceitar as coisas como elas são. Um comentário final que me preocupou: ao lhe dizer que eu iria ao cardiologista cuidar da minha pressão arterial, ele comenta que também estava sentindo que precisava cuidar dessa parte…
Segundo Lacan, a verdadeira análise deve nos preparar para aceitar a realidade da condição humana, em toda a sua finitude.
Que você, Oscar, meu analista de tantos anos, a quem dedico in memoriam estas palavras, esteja em paz!
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Freud, S. (1937), v. XXIII, ed. Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
[3] Lacan, J. (1945), Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
__________ Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
__________ O Seminário, lv. 16, De um Outro a outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2006
Cesarotto, Oscar e Souza Leite, Márcio Peter, Jacques Lacan – Uma Biografia Intelectual. São Paulo, Iluminuras, 2001.
Cesarotto, Oscar, Inconsciências – Psicanálise – Semiótica – Cultura Material. São Paulo, Iluminuras, 2019.
Quinet, Antonio, As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.