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 S.O.P.P.A — Serviço de Orientação Psicanalítica: Pensando a Alimentação

 Desdobramentos ético-clínicos do Cozinha como Experiência na criação de novos dispositivos de cuidado

por  Arielle Natalicio Garrido[1], Mariana David[2] e Margarida Melhem (Kika)[3]

 

Este texto tem como objetivo apresentar o serviço S.O.P.P.A. — Serviço de Orientação Psicanalítica: Pensando a Alimentação —, que surge como um desdobramento teórico-clínico do projeto Cozinha como Experiência.

Em tempos de conexões intensas e aceleradas, os encontros em torno da mesa foram afetados de maneira significativa. A vida urbana ocidental, associada ao desenvolvimento das tecnologias digitais, alterou de forma fundamental a relação do humano com o tempo, que se vê cada vez mais subtraído em sua capacidade de vivenciar processos. Nos dizeres de Agamben: “a experiência não é mais algo que nos seja dado fazer”; “o homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos — divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes —, entretanto, nenhum deles se tornou experiência”. Um exemplo disso são os vídeos curtos de 10 segundos que ensinam receitas complexas nas redes sociais, fornecendo a falsa ilusão de que é possível experienciar o cozinhar sem considerar os processos envolvidos, que, por sua vez, exigem uma temporalidade própria. Assim, o caráter simbólico e ritualístico do cozinhar se transforma em algo fugaz e pouco processual.

Outro fenômeno que se tem observado com frequência é a proliferação de transtornos e diagnósticos relacionados à alimentação, que restringem a experiência subjetiva do alimentar-se. No Cozinha como Experiência, propomos o uso da culinária como dispositivo de resistência ao modo contemporâneo de apreensão da experiência do alimentar-se, que pode, muitas vezes, se dar de forma gourmetizada e fetichizada, distanciando os sujeitos de suas histórias e costumes, e produzindo patologias.

A culinária, enquanto atividade essencialmente humana, está na base do desenvolvimento das civilizações. Todo o ritual que envolve a alimentação — da preparação dos pratos ao encontro em torno da mesa — configura uma importante forma de transmissão de valores transgeracionais e culturais. A função alimentar humana está, desde o princípio da vida, permeada por afetos, sejam estes positivos ou negativos, ultrapassando seu valor intrinsecamente nutricional e/ou funcional. O modo como nos alimentamos é um importante indicador sobre nossa saúde mental. Ao mesmo tempo, estados emocionais de angústia, medo e tristeza podem afetar significativamente a relação que estabelecemos com os alimentos. Portanto, um olhar cuidadoso para a relação que mantemos com o ato de comer pode ajudar a identificar conflitos psíquicos que, por sua vez, podem ser cuidados a partir de uma escuta sensível e não patologizante da alimentação.

Tanto o ato de comer quanto o de cozinhar dependem do acesso ao alimento, da experimentação e da observação do processo de transformação dos ingredientes. Acreditamos, assim, que pensar a alimentação pode ser uma forma de promoção de saúde e prevenção de transtornos alimentares, e que a cozinha pode ser um laboratório privilegiado, onde se ampliam repertórios, se geram memórias afetivas e onde se fortalece o senso de coletividade.

Sendo assim, nossos estudos, desenvolvimentos e ações buscam resgatar uma dimensão artesanal de fazeres e práticas relacionadas ao campo alimentar, que se fundamentam na comensalidade (o comer coletivamente), em sua função mediadora dos vínculos e laços sociais. Propomos a construção e oferta de dispositivos que consideram a interface entre psicanálise e alimentação para além de um viés psicopatológico, amplamente abordado pela literatura psicanalítica dos transtornos alimentares.

Alinhadas a essas ideias, nasceu, há quinze anos, o Cozinha como Experiência. Nesse espaço, utilizamos a culinária como uma ferramenta intermediária para trabalhar as questões ligadas à alimentação de forma lúdica, social e/ou terapêutica, por meio da realização de oficinas grupais ou projetos individuais, pensados caso a caso. A palavra experiência — que dá o motor ao projeto — traz, em sua etimologia, a ideia de conhecer além do perímetro, das fronteiras, dos limites, podendo também significar tentativa e ensaio.

As oficinas propostas apoiam-se na experiência de cozinhar e comer em grupo, sendo todo o processo estimulado, orientado e compartilhado pela equipe. As oficinas são temáticas, e os temas são variados. Em termos gerais, elenca-se um assunto a ser debatido e propõe-se uma reflexão ao grupo, enquanto a comida é preparada conjuntamente. Ao término, além de apreciar os pratos elaborados, abre-se espaço para um diálogo sobre a dinâmica das relações e o envolvimento pessoal de cada um na atividade. Durante o compartilhamento, cozinhar e comer juntos potencializam a troca, o pensar e a imersão na experiência.

Pensamos a construção das oficinas como um dispositivo que implica um “fazer culinário” em grupo, num tempo-espaço que se preste como resistência à lógica temporal contemporânea. Isso promoveu, ao longo de nosso trabalho, uma ampliação na compreensão semântica do “comer” e do “cozinhar”, que, por sua vez, resultou na possibilidade de organizar intervenções psicanalíticas no campo da alimentação, em contextos e enquadres distintos do modelo tradicional poltrona-divã.

As oficinas do Cozinha como Experiência pretendem, portanto, constituir-se como espaço de transmissão, de circulação de discursos diversos e de encontros. Apostamos que a culinária produz efeitos subjetivantes nos sujeitos participantes e pode oferecer a possibilidade de se encontrarem com novos modos de estar e ser no mundo.

Após uma década de atuação, apoiadas nos férteis encontros que tivemos ao longo desse caminho, identificamos a necessidade de ampliar a acessibilidade ao Cozinha como Experiência, no intuito de favorecer os processos de articulação entre alimentação e saúde mental.

Ao propor a extensão do nosso olhar clínico a partir do ato de cozinhar e comer coletivamente, buscamos ampliar possibilidades de transformação e resgate da potência criativa de cada indivíduo. Nesse sentido, buscamos utilizar a cozinha como um dispositivo no qual se considera a biografia alimentar da pessoa/família/grupo em questão, seus hábitos e valores culturais.

Assim nasce o S.O.P.P.A., um serviço de acolhimento e orientação, fundamentado na teoria psicanalítica, criado para ajudar qualquer pessoa ou grupo que deseje pensar sobre sua relação com a comida. Além disso, o S.O.P.P.A. atualmente propõe um aprofundamento de estudos teórico-clínicos, por meio do qual oferecemos supervisões, grupos de estudo e discussões na interface entre psicanálise e alimentação para profissionais da saúde interessados no tema.

E-mail Cozinha como Experiência: contato@cozinhacomoexperiencia.com.br

Instagram: @cozinhacomoexperiencia

Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução: Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

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[1] Psicanalista, ex-aluna do Curso de Psicanálise, integrante do grupo de Problemáticas alimentares do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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