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Virgínia e Adelaide, o filme

 Desde a paciente 01, a racialização da psicanálise sempre esteve em pauta.

por Fernanda Almeida[1]

 

Para alguns, pode parecer curioso saber que a primeira psicanalista brasileira é uma mulher negra. Isso mesmo: a paciente número 01 a deitar-se em um divã no Brasil foi Virgínia Bicudo. O filme Virgínia e Adelaide conta essa história. Narra o encontro entre duas mulheres interessantíssimas: uma judia refugiada e uma brasileira que vivenciou o racismo desde a infância.

No caso da brasileira, a interracialidade familiar que a constitui (mãe branca e pai preto) é a fonte de seus conflitos intrapsíquicos e a manifestação de seu sofrimento. A questão do “pardo” está lá desde sempre como objeto.

No jogo transferencial, analisanda e analista se transformam, fazem do encontro inconsciente a denúncia real dos horrores das formas cruéis de negação do outro: o nazismo alemão e o racismo brasileiro. Mas é também do laço social que as une que surgem as possibilidades de transmissão, amor e amizade.

Eu nem sei se gostei tanto assim do filme, mas não tenho dúvidas de que essa história precisa ser contada, recontada e contada de novo. Nisso talvez resida a maior contribuição deste filme delicado e criativo, em que se destaca o excelente trabalho das atrizes, mesmo quando o didatismo marca presença na narrativa dos fatos.

Hoje revisitei o livro Racismo, subjetividade e saúde mental: O pioneirismo negro da editora Hucitec. O capítulo 3 traz um texto das autoras Fabiana Villas Boas e Natália Parolin, em que descrevem as contribuições de Virgínia Bicudo para o campo da saúde mental. Gostei de lembrar que Virgínia compôs a equipe de pesquisa de Florestan Fernandes, e das articulações que as autoras constroem com os estudos de Neusa Santos Souza. Além de lembrarem que ela teve aulas com Klein, Bion e Winnicott.

O filme se soma ao momento histórico e político recente, em que a luta antirracista e a busca pela democratização da psicanálise entram em confluência. Ao mesmo tempo, essa história denuncia (não sem um grau de ironia) que aquilo que parece absolutamente original e contemporâneo – democratizar a psicanálise no Brasil –em verdade, não é algo tão original assim, é, acima de tudo, uma reparação histórica no interior da própria psicanálise.

É a psicanálise que nos ensina que o conteúdo recalcado empurra desejos, ideias ou impulsos inaceitáveis para o inconsciente, não é?! Só que os conteúdos continuam atuando, insistindo… e retornam como sintomas. Será que isso pode, de alguma maneira, explicar a resistência àquilo que, no filme, aparece como tão óbvio?!

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[1] Psicanalista e Assistente Social. Atua na Rede Pública de Saúde (SUS) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim online e da Comissão de Reparação Racial e Ações Afirmativas do mesmo Departamento. Também compõe a equipe gestora do projeto Territórios Clínicos da Fundação Tide Setubal e é membro do coletivo Drogas: Clínica e Crítica.

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