Algumas lembranças da roda de conversa sobre Otto Rank e a Psicanálise[1]
por Janaina Namba[2]
Qual memória a psicanálise quer legar para uma história futura? É a pergunta que faz Susan Markuszower a partir da fala “As sombras de Otto Rank em Moisés e o monoteísmo”, realizada por Pedro Fernandez de Souza na Roda de conversa: Otto Rank e a psicanálise, promovida pelo Departamento de Psicanálise nesse Instituto no início de junho desse ano.
Ainda podemos sentir as ressonâncias dessa pergunta se analisarmos que em diversos cantos do mundo não foram poucos os eventos realizados sobre Sándor Ferenczi, Lou-Andreas Salomé, Otto Rank, Sabina Spielrein, ou mesmo, estudos e traduções que resgatam, não apenas esses autores, mas muitos outros pioneiros da psicanálise.
Se por um lado tivemos poucos protagonistas durante a elaboração do pensamento da psicanálise, por outro, os muitos coadjuvantes foram responsáveis por tornar a história do movimento muito mais complexa e interessante. Otto Rank fora um desses coadjuvantes que não tinha a formação médica, mas adentrou no círculo psicanalítico muito jovem. Após conhecer Freud em 1905, e lhe apresentar um manuscrito intitulado “O artista”, passou a frequentar as reuniões da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras a partir de 1906. Desde essa data foi muito encorajado por ele “a retomar os estudos secundários e a ingressar na universidade”; também lhe foi oferecido um cargo de secretário dessa sociedade, para que pudesse se sustentar financeiramente. Nesse trabalho deveria tomar notas das atas dos encontros a propósito das intervenções e discussões feitas pelos membros nessas reuniões.
Rank, tanto na Sociedade quanto ao longo de sua formação acadêmica, deteve sua pesquisa sobre o tema do incesto e a literatura, como mostram inclusive os livros Poesia e mito e A formação poética da fantasia e textos selecionados, discutidos no encontro. Além desses dois livros traduzidos do alemão por Natan Shäfer (que infelizmente não pode participar) e Pedro Fernandez de Souza, respectivamente, André Medina Carone nos contou um pouco sobre a tradução do texto conjunto de Rank e Ferenczi: Metas do desenvolvimento da psicanálise (1924), publicado pela Quina.
O grupo que compôs a roda de conversa, de tradutores, “introdutores” e editora (André Carone, Pedro de Souza, Janaina Namba, Caio Padovan e Lia Novaes Serra) mostra que o interesse renovado por Otto Rank traz à luz uma outra história da psicanálise que, pela distância temporal, pode ser melhor avaliada pelos seus atuais leitores. Se não é novidade que Freud tivera relacionamentos conflituosos com seus discípulos, o que não foi diferente com Ferenczi e Rank, o que talvez seja novidade – ou, podemos dizer ainda, somente um outro olhar – é que tais traduções feitas diretamente do alemão, assim como os estudos e comentários a propósito desses autores, mostram que esse início do movimento psicanalítico não é dominado exclusivamente pelo ponto de vista freudiano.
Os textos “Sonho e mito” e “Sonho e poesia” figuraram durante oito anos na Interpretação dos sonhos e, como nos apontou André Carone, não foram deliberadamente banidos da obra freudiana. Teria sido mais um ajuste da obra freudiana, uma vez que esses textos haviam ficado deslocados depois das diversas modificações ocorridas nas sucessivas edições.
Caio Padovan retomou uma ideia fundamental, que propôs em seu texto “A noção de psicanálise aplicada nos primeiros anos do movimento psicanalítico” (2016): “o artigo que abre a primeira edição da Revista Imago vem a ser justamente uma espécie de manifesto escrito por Rank e Hans Sachs (1912b) em defesa da pertinência do estudo psicanalítico das mais variadas realizações humanas. Partindo do princípio de que essas realizações, assim como os sonhos e os devaneios, estariam amparadas pela fantasia, [sendo assim], seria justo dirigir-lhes o mesmo estudo sistemático antes dirigido aos sonhos e aos devaneios pelo psicanalista clínico.”
Rank, assim como Freud, também observou a orientação incestuosa do desejo fantasioso inconsciente, mas seu material de estudo estava relacionado principalmente aos mitos, às lendas e fábulas baseando-se na literatura em geral, como podemos ver na seleção organizada por Pedro F. de Souza. Além da orientação incestuosa do desejo, Rank persegue ao longo da vida a figura do artista, dizendo desde 1907 que ele se utiliza de suas fantasias criativas para realizar quaisquer desejos insatisfeitos e tanto obter por ele mesmo, quanto oferecer ao público, um ganho de prazer estético ao trabalhar seus conflitos psíquicos.
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[1] Evento realizado no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no dia 07 de junho de 2025.
[2] Psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e pesquisadora em Filosofia e Psicanálise pela UFScar e autora de Expressão e linguagem: aspectos da teoria freudiana (Blucher) e do texto introdutório “A ciência de Otto Rank” em A formação poética da fantasia e textos selecionados (Blucher).