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Ensaio sobre a repetição

Leonardo Ferreira Galvão Tavares[1]

 

A repetição é um tema caro e significativo à psicanálise. Determinados acontecimentos de vida escapam à compreensão e necessitam ser revividos. Essas repetições não ocorrem de forma consciente; funcionam como rastros inscritos no inconsciente, que retornam trazendo conteúdos recalcados, ainda que em formas distorcidas ou fragmentadas. Assim, a repetição opera por um caminho através do qual o indivíduo pode buscar uma representação.

Pacientes chegam à clínica tentando dar um rumo a ela, muitas vezes não reconhecem esse repetir que se manifesta nas relações interpessoais e consigo mesmo. Na clínica, a escuta psicanalítica, atenta e flutuante, volta-se para essas manifestações de repetição, percebendo-as como elementos centrais do discurso do analisando. Repetições que são sustentadas por desejos inconscientes que, ao se realizarem parcialmente, perpetuam ciclos de sofrimento e frustração.

A repetição acomete a todos, tanto os neuróticos quanto os psicóticos, cada qual à sua maneira. Algumas pessoas buscam incansavelmente repetir a realização amorosa, uma experiência de enamoramento que se dissipa com o tempo. Esse movimento, frequentemente inconsciente, pode ser interpretado como uma tentativa de reinscrição do passado no presente, uma atualização, revelando o quanto o indivíduo está preso a marcas psíquicas que condicionam suas escolhas de vida. Na prática clínica, observamos que a escolha da pessoa amada reflete traços de experiências anteriores, desvelando essa contínua tentativa, fracassada, de retorno inconsciente a uma satisfação passada.

Essa repetição falha gera sofrimento, ainda que tenha inicialmente atendido às exigências do princípio do prazer em realizar experiências agradáveis. Observa-se, então, um conflito de forças: o desejo de obter prazer a partir do mesmo caminho, uma pulsão que insiste em repetir, confronta-se com o novo e o imprevisível. Esse embate é o que permite à experiência de análise sua potência transformadora, elaborar para construir novas maneiras de lidar com seus próprios impasses.

Este ensaio[2] tem como objetivo examinar a repetição na obra freudiana e em sua expressão clínica, destacando tanto suas possibilidades de elaboração quanto seus impasses. Para isso, retoma textos fundamentais de Freud e articula-os a vinhetas clínicas de modo a discutir como a repetição pode se apresentar como via de transformação ou como destino que resiste à simbolização.

 

Repetição em Freud

Freud (1914) mostra que todos os sintomas neuróticos são repetidos durante a análise, o que pode ser benéfico para o paciente ao encontrar um lugar seguro e propício onde a repetição pode ocorrer e, consequentemente, permitir a intervenção psicanalítica. Mesmo quando Elisabeth persistia em comunicar que seu estado doente permanecia inalterado, ele continuou a análise de sua paciente: “Tivesse eu nesse estágio renunciado ao tratamento psíquico da doente, o caso da srta. Elisabeth v. R… provavelmente se tornaria irrelevante para a teoria da histeria” (FREUD, 1895, p. 208).

No texto “Estados hipnoides”, há a seguinte afirmação de Freud: “o histérico sofre sobretudo de reminiscências” (BREUER, 1893, p. 313). Mais tarde, Freud (1904) percebeu que as lembranças das histéricas eram, de certa forma, fantasias que não representavam a realidade de maneira factual, ou seja, eram representações da realidade psíquica. Não à toa, esta foi uma das razões pelas quais ele abandonou o método catártico, que, por meio da hipnose, buscava retornar à raiz do problema, trazer o conteúdo inconsciente à consciência, lembrar da cena traumática para intervir usando a sugestão, pois assim acreditava-se ser possível a transformação dos sintomas e a liberação dos afetos até então estrangulados.

Com seu sintoma mais notável, a conversão, as histéricas tentavam, mesmo sem saber, mostrar algo através do corpo, indicando uma verdade de si repetidamente e inconscientemente. Já no texto “Recordar, repetir e elaborar”, Freud (1914) argumenta que a repetição ocorre porque o paciente não consegue lembrar. Aquilo que se repete foi apartado da consciência. O recordar é substituído pelo repetir, o repetir é sinônimo de atuar, e este exige manejo e intervenção clínica a fim de uma elaboração.

Em “A dinâmica da transferência”, Freud (1912) explica que o paciente repete modelos estabelecidos (imagos) na figura do analista, para quem direciona sua libido:

“É perfeitamente normal e compreensível, portanto, que o investimento libidinal de uma pessoa em parte insatisfeita, mantido esperançosamente em prontidão, também se volte para a pessoa do médico (…) ele incluirá o médico em uma das  ‘séries’ que o doente formou até então”. (FREUD, 1912, p. 136).

Ao conceber o sintoma como formação de compromisso entre instâncias, uma resposta a um conflito entre consciente e inconsciente, torna-se evidente a persistência em manifestação. Essa persistência em repetir é própria do inconsciente.

Na relação transferencial sabemos que o paciente repete com o analista seus sintomas, aquilo que o faz sofrer lá fora.

“Logo notamos que a transferência mesma é somente uma parcela de repetição, e que a repetição é transferência do passado esquecido, [transferência] não só para o médico, mas para todos os âmbitos da situação presente. Devemos estar preparados, portanto, para o fato de que o analisando se entrega à compulsão de repetir, que então substitui o impulso à recordação, não apenas na relação pessoal com o médico, mas também em todos os demais relacionamentos e atividades contemporâneas de sua vida, por exemplo quando, no decorrer do tratamento, escolhe um objeto amoroso, toma para si uma tarefa, começa um empreendimento”. (FREUD, 1914, p. 201).

Ele percebeu que a compulsão à repetição é um modo do paciente recordar: “ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete naturalmente sem saber que o faz” (FREUD, 1914, p. 151).

Freud (1914) propunha que, à medida que o tratamento analítico progredisse, haveria um processo de recordação e elaboração; isso exigiria intervenção da resistência, que impediria um avanço no sentido de cura pois, quanto maior a resistência, mais o recordar será substituído pelo repetir.

Esse era o modo como Freud tratava a repetição, com intuito de diminuir o sofrimento do indivíduo. O repetir está no início de uma análise que chega ao fim através de um árduo e cuidadoso trabalho de elaboração.

No texto “O inquietante”, Freud (1919) diz que alguns acontecimentos repetidos podem provocar um sentimento inquietante e exemplifica contando sobre uma vez em que tentou sair de uma rua conhecida por ter muitas prostitutas e acabou retornando várias vezes ao mesmo lugar. Nesse caso ele descreve uma sensação de inevitabilidade, a repetição é algo contra o qual não se pode lutar.

Posteriormente, em “Além do princípio do prazer”, Freud (1920) explora a compulsão à repetição por meio do trauma, baseando-se em sua experiência clínica sobre sonhos recorrentes. Ele mostra que nos sonhos de neurose traumática o paciente revive o desagradável do trauma, algo que não alcança uma representação e tenta insistentemente ser simbolizado, o que coloca em xeque a teoria de que o aparelho psíquico é regido apenas pelo princípio do prazer, de que um sonho seria somente a realização disfarçada de um desejo reprimido.

Freud (1920) relata também que seu neto, ao brincar com um carretel, o jogo do Fort-da (traduzido por ida e volta), repete uma experiência de prazer e desprazer, encena partida e retorno, repetição do desaparecimento e surgimento do objeto arremessado e atado na corda. Ele observou que o desaparecimento do objeto seria desagradável (pois o que Freud de fato observou na brincadeira do neto é que o desaparecer do carretel, o Fort, era o que dava à criança mais prazer) e questiona como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se com o princípio do prazer. A partir desta observação, ele formula que existe algo além do princípio do prazer.

Freud (1920, p. 181) aponta para um “traço demoníaco”, algo que escapa e pode ser vivido como um destino inevitável e constata: “sentimo-nos encorajados a supor que na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição, que sobrepuja o princípio do prazer” (p. 183). Isso demoníaco é a pulsão de morte. Uma das bases para se pensar em pulsão de morte foi ter observado a repetição que gera desprazer. Com isso, Freud formulou novos conceitos acerca da dinâmica e manifestações do inconsciente.

 

Repetição na clínica

Restos, fragmentos e conteúdos inconscientes depositados pelo paciente reverberam na experiência subjetiva do analista. Devaneios durante a sessão, sonhos que ressoam elementos das histórias escutadas, pensamentos que transbordam o setting analítico. O caso clínico, por vezes, ocupa o corpo e a mente do analista, exigindo uma espécie de decodificação em diferentes espaços – na sessão, em supervisão, em discussões clínicas. Há, portanto, o convite para integrar esses conteúdos e dar-lhes um contorno, novo sentido.

A relação transferencial configura um campo analítico privilegiado onde se atualizam repetições que revelam desejos e conflitos inconscientes. Ao escutar o paciente, ele revive esquemas afetivos, relacionais e paradoxais. Essas repetições não se limitam a evocações passivas de lembranças, mas se apresentam como um movimento ativo que busca compensar ausência, falta, reencena, inconscientemente, experiências ainda não elaboradas. Repetem-se porque algo ainda não aconteceu, o paciente persiste em encontrar, na cena analítica, uma via para representar o que permanece em suspenso. Contudo, nem sempre é possível ou necessário conduzir a repetição à elaboração. Algumas repetições simplesmente insistem, se impõem como parte da vida psíquica, e o trabalho analítico, nesses casos, é mais sobre sustentá-las e reconhecer sua presença do que sobre tentar elaborá-las.

Essas repetições se manifestam de diversas formas: seja através de narrativas que retornam ciclicamente, seja por meio de afetos intensos e contraditórios. Por vezes, os pacientes projetam no analista figuras e experiências não compreendidas, como se ele fosse um depositário dessas marcas. Em muitos casos, percebo em minha clínica que a repetição surge como uma tentativa silenciosa de encontrar sentido ou reparar o que ficou inacabado.

O trabalho com essa dinâmica demanda uma escuta sensível, disposição afetiva e intervenções cuidadosas. Algumas intervenções se dão por meio da palavra, outras pelo silêncio, pelo manejo atento, presença espontânea e viva, pelo campo sensorial e clima emocional entre a dupla analítica. Sustentar o espaço da repetição sem se precipitar em interpretações que interrompam o processo de elaboração do paciente é fundamental. Quando uma repetição inconsciente pode ser elaborada, o paciente encontra a possibilidade de romper com o ciclo, abrindo espaço para novas formas de relação com seus afetos e com o mundo.

Esse processo, entretanto, demanda tempo, envolvimento e é permeado por resistências que se impõem. Sabe-se que onde há resistência, há também transferência, e é nesse jogo que se constrói o trabalho analítico. A elaboração daquilo que se repete e sua transformação permite que o paciente reedite sua história, criando novos caminhos para circulação do desejo e potencializando sua capacidade de se relacionar consigo mesmo e com o outro.

Lembro-me de um caso em que a paciente lamentava repetidamente a perda de um estilo de vida confortável. Suas narrativas, marcadas por sentimentos de vergonha e frustração, se entrelaçavam com sua experiência atual de relações interpessoais. Aos poucos, foi possível reconhecer como essa repetição era uma tentativa de resgatar algo que havia se perdido, mas também um modo de sustentar uma ausência que talvez jamais pudesse ser plenamente elaborada. O trabalho analítico não dissolveu o luto, mas permitiu que ele fosse nomeado, reconhecido e, de alguma forma, incluído na narrativa de vida da paciente.

Outro exemplo recorrente é a manifestação de afetos ambivalentes, como o ódio e a crítica, direcionados a figuras parentais. Em muitos casos, essas manifestações revelam a tentativa inconsciente de dar continuidade a experiências não elucidadas, trazendo para o campo analítico afetos dolorosos e complexos. O trabalho com essas repetições possibilita que o paciente reconheça tais afetos e, pouco a pouco, encontre outras formas de se relacionar com essas experiências.

Cada uma dessas situações ilustra como a repetição é um espelho do passado e um enigma que resiste à representação. Há algo de irredutível em repetições e talvez compele ao analista mais acompanhar o mistério que carregam. Em outros casos, a escuta analítica, combinada a intervenções sensíveis, permite transformá-las em um caminho. Um caminho, este, onde a elaboração possibilita a construção representacional.

A análise do conceito de repetição na obra de Freud permite compreender que este fenômeno não é apenas uma resistência a ser traduzida, mas um operador central do inconsciente. Esse ensaio buscou mostrar que a repetição pode se apresentar, por um lado, como via de elaboração, possibilitando ao sujeito novas formas de relação com seus afetos; por outro, pode insistir como destino irredutível, que não se transforma, mas que ainda assim precisa ser sustentado no campo analítico. A escuta clínica exige do analista não apenas a interpretação, mas a disposição ética de acompanhar aquilo que retorna, mesmo quando não se deixa elaborar. Esse é o desafio que a repetição impõe: reconhecer sua dimensão paradoxal, entre compulsão, criação e transformação, e sustentar sua presença como parte constitutiva da experiência psíquica.

 

Referências

BREUER, J. Estados hipnoides in Obras completas, volume 2: Estudos sobre a histeria (1893-1895) em coautoria com Josef Breuer; tradução Laura Barreto; revisão de tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 303-314.

FREUD, S. Srta. Elisabeth von R… in Obras completas, volume 2: Estudos sobre a histeria (1893-1895) em coautoria com Josef Breuer; tradução Laura Barreto; revisão de tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 194-260.

FREUD, S. O método psicanalítico de Freud in Obras completas, volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos (1901-1905); tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 321-330.

FREUD, S. A dinâmica da transferência in Obras completas, volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre a técnica e outros textos (1911-1913); tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 133-146.

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar in Obras completas, volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre a técnica e outros textos (1911-1913); tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 193-209.

FREUD, S. Além do princípio do prazer in Obras Completas, volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920); tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 161-239.

FREUD, S. O inquietante in Obras Completas, volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920); tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 328-376.

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[1] Psicólogo e psicanalista em contínua formação, atualmente pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada como monografia no seminário “Da terapia catártica ao método psicanalítico” coordenado por Flávio Carvalho Ferraz. Agradeço as contribuições do citado analista e da turma, que enriqueceram a discussão.

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