Novas masculinidades: uma construção
por Deborah Joan de Cardoso[1]
Masculinidades tem sido um tema amplamente estudado e debatido nos últimos tempos e sua diversidade amplia essa discussão, permitindo pensar na sua multiplicidade de expressões e consequências. Em função disso, trazer uma problematização por meio do relato de um episódio ocorrido recentemente com adolescentes meninos, em uma escola, é uma oportunidade de contribuir nesse debate. O presente texto relata o encaminhamento dado pela equipe da direção do Colégio Santa Cruz a um trote virtual promovido por alunos do Ensino Médio.
No início de 2025, alguns pais de alunos, todos meninos recém-ingressos no 1º ano do Ensino Médio, reportaram à direção que os filhos não queriam mais ir à escola, intimidados pela atuação de um grupo de WhatsApp, também composto só por meninos do 2º e do 3º anos.
O recurso criado para servir como instrumento de acolhimento dos novos participantes vinha sendo usado para aplicar um trote virtual, em que xingamentos misóginos, capacitistas, racistas mesclavam-se com ameaças e imposições como condição de pertencimento na grupalidade de meninos.
No dia seguinte à denúncia, a equipe da direção mostrou as mensagens aos pais dos agressores e, para evitar retaliação aos denunciantes, aplicou advertência e suspensão breve ou por tempo indeterminado conforme a gravidade da atuação. Em seguida, reuniu-se, primeiro, com os alunos; depois, com as famílias de cada série do Ensino Médio, para informar do ocorrido e focar a abordagem no encaminhamento.
O fato de os alunos adotarem condutas típicas da masculinidade tóxica dentro de um ambiente que procura ser crítico a ela e com tamanho desvirtuamento da tarefa de facilitar a adaptação dos novatos parece ilustrar, de um lado, a força com que esse modelo encontra-se introjetado e, de outro, a falta de vivência, portanto, de aprendizado, de uma masculinidade que opera no cuidado e não no submetimento.
Na ausência dessa compreensão, vingou a ideia de que um grupo masculino deveria organizar-se por uma hierarquia pautada na capacidade de domínio do outro, a ponto de deixá-lo sem direito a nada, caso não se submetesse. A turma do 1º ano entendeu a imposição dessa hierarquia e manteve-se ao largo, quase sem interação, com exceção de uns poucos que se submetiam, para poder, no próximo ano, ser quem impõe as condições.
O isolamento imposto pela pandemia agravou os conflitos das relações de gênero, devido a dois efeitos nocivos. Primeiro, a formação de bolhas, pois a grupalidade gera divisão, especialmente na passagem da primeira infância para a pré-adolescência, quando os códigos de convivência são ainda imaturos. Como eles não conviviam no espaço escolar, não tiveram a possibilidade de aprender a se relacionar. Quando chegam ao Ensino Médio, meninas e meninos apresentam alguns comportamentos típicos da pré-adolescência. Isso concretizava-se até na disposição física dos alunos na sala de aula: meninas de um lado; meninos, de outro. Nessa distribuição, os meninos, em muitos momentos, atrapalhavam o andamento das aulas, pois todos juntos entravam num funcionamento de muita agitação e conversa. Não que as meninas não conversassem, mas os meninos tomavam a cena e, talvez sem se dar conta, impediam o andamento democrático da aula.
O segundo fator foi a exposição maciça ao conteúdo misógino das redes sociais, em especial, o TikTok, tão popular entre meninos do Fundamental 2, hoje alunos do Ensino Médio. O discurso de ódio dessas plataformas ocupou o espaço do debate cotidiano existente antes da pandemia e que já fora, inclusive, integrado ao currículo da escola, como conteúdo trabalhado na transição do Fundamental para o Ensino Médio.
Em 2013, quando foi fundado, portanto antes da pandemia, o Coletivo Feminista do Ensino Médio tinha força e entusiasmo para pautar discussões dentro e fora da sala de aula. A orientação educacional, por sua vez, colocava esses conteúdos em movimento, dialogando com eles em suas atividades pedagógicas, a fim de incluir quem se encontrava distante do debate.
Após o Covid-19, o coletivo desapareceu e o machismo acirrou-se. Ciente disso, a direção e alguns professores formaram em 2023 um Grupo de Estudo sobre relações de gênero, masculinidades, feminilidades na contemporaneidade e na adolescência. O planejamento de 2025 também contemplou o tema, na forma de uma palestra aos professores, como assunto a ser abordado ao longo de todo ano letivo.
Para encerrar a punição ao trote de forma propositiva, a escola convocou seus participantes para doze encontros, orientados por dois especialistas (Isadora Venturosa, antropóloga, e Ismael dos Anjos, coordenador do documentário O silêncio dos homens) e por dois professores homens que participam do Grupo Estudo de Gênero. A atividade foi encerrada com um convite ao pai de cada aluno para um encontro mediado por esses professores. Por fim, foram ministradas (serão ministradas em setembro) palestras com os mesmos profissionais, direcionadas a cada série do Ensino Médio e na 3ª série; seus pontos serão discutidos em pequenos grupos conduzidos pelos alunos que participaram dos doze encontros. Entendemos que esses alunos tiveram um trabalho precioso sobre o tema da masculinidade e, ao prepararem a condução da atividade, eles poderão, além de compartilhar o que aprenderam nesses encontros, reparar e cuidar da dor que causaram à comunidade.
A escola tem lutado pelo seu papel formativo de desnaturalizar os modelos hegemônicos de masculinidade. Considerando que os homens ocupam o centro da efetivação desse objetivo, é vital essa desconstrução ocorrer em um ambiente de segurança emocional, inserida na construção coletiva – de alunas, alunos, alunes –, de uma nova masculinidade, validada pelo exercício do cuidado e não pela competição, dominação e comportamentos de risco. Nesse esforço conjunto, esperamos contribuir para inaugurar mobilidades em lugares de privilégio vetados às mulheres e garantidos aos homens pelo patriarcado.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, orientadora educacional do Colégio Santa Cruz.