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O encontro de Bride[1] com a jovem nascida às margens do Mekong[2]

por Rubia Delorenzo[3]

 

Encontram-se as duas mulheres na travessia das águas do Golfo do Amor.
Uma veste branco, para realçar a cor de alcatrão de sua pele, que escolheu revelar
exótica.
A outra mantém, ainda, seu corpo magro da menina de outrora.
Olham-se interessadas.
Conversam.

-De onde vens?

Venho hoje de Marselha.
Mas nasci na Indochina.
E tu?

-Sou americana. Filha do pior da América.
Nasci preta, tão escura, meu pai assombrado nos deixou.
Suspeitou de minha mãe.
Ela tampouco me suportou.
Aquela estranha criatura, pensava, nasceu de algum feitiço. Só trará vergonha no
futuro.

Penso também em minha mãe.
Eu a via enlouquecer. Subtrair-se.
Ausentar-se.
Imóvel à nossa frente.
Em seguida, saía a correr continentes, nômade, devastada.
Me sentia só, o amor dela, absoluto, dedicado ao meu irmão.

-Por minha mãe cometi um crime. Na infância, acusei uma inocente.
Meu amor sumiu no mundo.
Não tolerou meu silêncio, meu segredo, a mentira.
Fui atrás de meu amor.
Perdi meu corpo.
Perdi os seios, os pelos, os músculos.
Fui minguando, atravessei os tempos.
Quando o encontrei era só o resto de menina. Então, me confessei.

Eu, fui atrás de um amor que me impuseram.
Ganhei um falso corpo.
Fiquei alta nos saltos dos sapatos de lamê dourado, esguia sob a transparência do
vestido roto.
Na travessia do Mekong, apoiada na amurada da balsa, encontrei meu amor
primeiro.
Fui vista pelo homem da limusine preta.
Distanciei-me da cinzenta imagem de minha mãe. Dos sapatos deformados por
seu andar trôpego.
Minhas lagrimas endureceram.
Precisei deixá-la entregue a seu humor errático, ao luto incontornável pelo filho
morto.
Foi assim que comecei a escrever.
De minha dor nasceu a escrita.

-Vejo semelhança entre nossas histórias.
Precisei também deixar minha mãe. Devolvê-la à sua vergonha, ao impedimento
de tocar-me, ao seu desejo de matar-me.
Foi quando resgatei meu amor.
Um corpo vibrante.
O amor dentro do corpo.
Deus ajude essa criança.

Chegam a seu destino.
Despedem-se, irmanadas em seu drama.

17/04/2025

__________

[1] Bride é a protagonista de Deus ajude essa criança, obra de Toni Morrison, 2015.

[2] A jovem é a protagonista de O amante, obra de M. Duras, 1984.

[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste Boletim online.

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