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Um olhar sobre as masculinidades

por Ismael dos Anjos[1]

 

Nas minhas costas, um homem e um menino caminham de mãos dadas. O mais velho, passo firme, pochete atravessada, olha e se dirige para a esquerda como quem reconhece o terreno. O mais novo, em postura idêntica, mas espelhada, caminha para a direita como quem ainda tateia o chão e o mundo.

Essa é uma descrição literal de uma tatuagem que tenho em minhas costas, reproduzida a partir de uma foto capturada pela minha mãe. Ao mesmo tempo, essa é, também, uma imagem carregada de sentido figurado sobre minha relação com meu pai.

Durante muitos e muitos anos, vivemos às rusgas ainda que silenciosamente. Apesar de semelhanças físicas (cara de um, focinho do outro) e uma admiração profunda pela capacidade de sobrevivência daquele homem negro, eu entrava em conflito diário com quase todas as maneiras dele ser e estar no mundo. Parecia duro demais, emotivo de menos, preconceituoso em pautas de costumes… ele, tampouco, se satisfazia com minhas escolhas — a da tatuagem inclusive.

Como os parágrafos acima evidenciam, a conversa e as práticas sobre masculinidades e suas implicações são algo que me movimenta no dia-a-dia e fazem parte da minha vida. Com o tempo, elas passaram a fazer parte também da minha profissão e do meu ativismo.

Primeiro, como jornalista, trabalhei nas revistas ditas masculinas. Escrevi para Playboy, VIP, Alfa, publicações que trabalhavam com um ideal de homem que nunca fui e nem conseguiria ser. A partir de 2013, comecei a escrever para o PapodeHomem, um site que também mirava no público masculino, mas por meio de reflexões diferentes: o que é ser homem? Que homem que eu aprendi a ser e isso ainda faz sentido pra mim? Quais são as minhas referências sobre o tema? Em 2019, essas perguntas e reflexões tomaram a forma de um projeto: o Silêncio dos homens.

“Silêncio?”. Sim, eu sei que os homens falam bastante, falam alto, interrompem as mulheres e que essa palavra soa incongruente. Ao mesmo tempo, há um silêncio específico que costuma imperar: o da restrição emocional. Desenvolvido pelo PapodeHomem e com o apoio institucional da ONU Mulheres, o projeto se debruçou na pesquisa de gênero a partir de uma perspectiva pouco usual, mergulhando para entender como se dá o desenvolvimento das masculinidades no Brasil, os problemas e caminhos práticos para mudanças tão necessárias — afinal, não há perspectiva de equidade de gênero sem que os homens (com as devidas intersecções de categorias como raça, classe, orientação sexual…) compreendam que as dores que eles sentem se desdobram nas muitas dores que eles causam.

Fui responsável pela coordenação da iniciativa como um todo, que incluía uma equipe de mais de 30 pessoas entre pesquisa qualitativa, pesquisa quantitativa e produção de um documentário longa-metragem. A pesquisa quantitativa ouviu mais de 47 mil pessoas no país inteiro, e é considerada até hoje a maior já realizada no Brasil sobre esse tema. O filme está disponível no YouTube e de lá pra cá reuniu mais de 2,2 milhões de visualizações orgânicas com mais de 200 sessões de exibição simultâneas e voluntárias apenas na primeira noite, da sala das casas de pessoas, faculdades e até em uma igreja.

Essa repercussão não foi à toa. Falar de masculinidades pode até não ser a coisa mais urgente do mundo, mas as práticas a ela conectadas, como os exercícios de poder, estão ligadas intrinsecamente às mudanças urgentes que a sociedade precisa experimentar.

Abaixo, listo alguns dos principais achados da pesquisa:

  • A maioria dos homens, 68%, afirma ter o pai como principal referência de masculinidade. Mas só 1 em cada 10 já conversou com o pai sobre o que significa ser homem.

A junção desses dois números me faz pensar que a maioria de nós mira na imagem que tem do pai para criar uma versão para si, ao invés de ter acesso a essa referência de forma humanizada, entendendo que ali há acertos, erros, desejos, frustrações. É como se, desde a mais tenra idade, criássemos uma ficção de nós mesmos, que só vamos descobrir não ser viável e irreal anos mais tarde, depois de aprender na prática, ao quebrar expectativas.

  • Ao todo, apenas 3 em cada 10 homens possuem o hábito de conversar (sempre ou muitas vezes) sobre os seus maiores medos e dúvidas com os amigos. 1 em cada 4 homens de até 17 anos afirma se sentir solitário sempre.
  • Também perguntamos o quanto os homens concordam terem sido ensinados de cada uma das crenças a seguir, durante a infância e adolescência:
    • Ser bem sucedido profissionalmente: 85%
    • Não se comportar de modos que pareçam femininos: 78%
    • Ser fisicamente forte: 73%
    • Ser o responsável pelo sustento financeiro da família: 67%
    • Não expressar minhas emoções: 57%
    • Dar em cima das mulheres sempre que possível: 48%

 

Embora essa ligação imbrical entre masculinidades e sucesso mereça uma conversa só sobre ela (não tem lugar no pódio para todo mundo e muitos homens se sentem menos homens ao não serem promovidos, serem demitidos, falirem uma empresa, não serem mais os provedores da casa e por aí vai), queria me concentrar no segundo índice do trecho acima.

Os homens, ao desenvolverem uma noção hegemônica e restritiva do que é ser homem, criaram uma armadilha para si. Vivemos em uma sociedade em que as prerrogativas do que é esse homem, no singular, foram paulatinamente se distanciando de características que nos fazem eminentemente humanos. Se o gênero feminino é aquele que, entendemos, está em constante contato com as emoções, eu corro o risco de ser lido como menos homem se me abrir para esse rol de sentimentos.

Durante a pesquisa, descobrimos também que seis a cada 10 homens afirma lidar hoje com distúrbios emocionais, em algum nível, nos dias de hoje. Os mais prevalentes? Ansiedade, depressão, insônia, uma relação conturbada com pornografia, pensamentos suicidas, distúrbios sexuais, vício em apostas, jogos eletrônicos e distúrbios alimentares. Apesar disso, só 1 a cada 10 diz frequentar um terapeuta atualmente. A maioria prefere enfrentar (e sofrer) calado e sozinho, aguentando o tranco.

Costumo dizer que esse é o índice da masculinidade tóxica, termo que se popularizou na última década. Se produtos tóxicos são aqueles que não se resumem ao “hospedeiro” e se espalham pelo ambiente ao redor, o mesmo acontece com esses homens que sabem que têm um problema e não conseguem pedir ajuda. Essas questões param de habitar apenas neles, e passam a afetar esposas, colegas de trabalho, filhos, filhas e todo mundo que convive ao seu redor.

Felizmente, ao falar sobre o Silêncio, temos conseguido multiplicar conversas importantes. Outras pesquisas têm sido feitas de lá pra cá (uma recente foca nos Meninos, de 13 a 17 anos), e o tema passou a ser mais debatido em entrevistas, posts nas redes sociais, palestras em empresas e também em escolas. Vários grupos de homens foram criados, e uma das ferramentas que vejo ser mais bem sucedida é a promoção de rodas de conversa, que estimulam homens a se abrirem e aprenderem a dialogar entre si, quebrando os múltiplos não-ditos, criando referências positivas ombro-a-ombro em que eles possam se espelhar (se fulano passou por isso, eu também consigo!) e, idealmente, rompendo com hábitos e práticas nocivas.

Para mudar centenas de anos de uma cultura patriarcal, ainda há muito a ser dito, pesquisado e, principalmente, feito. Não acredito que existam soluções mágicas nem, tampouco, que exista linha de chegada. A palavra, perene, é compromisso.

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[1] Jornalista, fotógrafo, documentarista, palestrante e especialista em comunicação, Ismael dos Anjos coordenou o projeto O silêncio dos homens, pesquisa e documentário (2019).

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