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Uma conversa com e sobre Anne Dufourmantelle e
suas tradutoras,  do livro Inteligência do sonho[1]

por Daniela Athuil[2]

 

Nas margens de um rio, ou na areia de alguma praia, você caminha contemplativa num percurso não planejado, liberando os pés e a mente da tarefa de levá-la a algum lugar pré-estabelecido. Seu caminhar é o próprio ponto de encontro com o sonho. (sonho/poema para Anne Dufourmantelle)

Anne Dufourmantelle escreve como quem antecipa um movimento essencial, uma espécie de pré-escrita. Escreve com os sentidos do corpo antes que o texto se torne palavra. Ave Palavra, diria Hilda Hilst. Ave Sonho, diria Dufourmantelle.

Trazer para o campo da linguagem essa escritura voadora requer uma percepção e um sentir muito mais amplos do que nosso pensamento é capaz de informar. É preciso dilatar a palavra, estranhar o próprio pensamento, fechar os olhos para assim emergir o ser que sonha.

Anne Dufourmantelle faz de seu mergulho nas águas do sonho, um livro. Uma escrita poética e erudita que impressiona pela fluência com que transita pelos saberes filosóficos, psicanalíticos, literários e mitológicos.

Paula e Danielle fazem de seu encanto pela autora, tradução. Traduzir, diz o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, é desenhar uma escultura. Equilíbrio fino entre ler, sentir, pensar e escolher as palavras sem fixá-las demais. E nesta noite nos convidam à celebração desse trabalho.

“O sonho é pura Inteligência. O que pode o sonho é imenso. Sonhar é uma promessa”. Assim propõe a autora neste livro, interrogando e explorando todas as dimensões do sonho.

A verdade fundamental da psicanálise, a verdade do desejo, é um enigma a ser decifrado; o psicanalista, aquele que suspeita; o sonho, sua estrada principal, nos disse Freud em A Interpretação dos sonhos. Todas as noites o sonho nos interpela radicalmente acerca da verdade de nossos desejos. Mas é o sonho também que com sua inteligência nos informa sobre o real, ao mesmo tempo que anuncia que alguma coisa está chegando, numa operação que descostura o passado para que ele seja habitado de outra maneira. A essa outra temporalidade inaugurada pelo sonho, Dufourmantelle nomeou “futuro anterior” (p. 16). Pensar o sonho depois de Freud, continuar essa aventura por suas vias régias, eis o convite de Inteligência do sonho.

Mais do que a realização alucinatória do desejo, o sonho é também portador desse continuum de vida, experiência criativa, reparadora, apaziguadora, mas também aterrorizadora. O sonho nos dá sinal de que algo se anuncia, e embora não seja propriamente um presságio, também não se trata somente do retorno do recalcado. Ele assim “não estaria somente escondido, mas vivo organicamente em nós” (p. 67). O sonho é criador, lugar de uma possível metamorfose de si. Desvela e inventa “outras proposições, outras figuras inéditas que o sonhador não conhece ainda” (p. 66).

Sequestrado pela máquina de produção e consumo do capitalismo globalizado e pela indústria farmacológica, o adormecer deixa de se constituir como experiência subjetiva, ao preço do empobrecimento da vida. Perde-se assim, pouco a pouco, esse lugar e tempo de encontro do sujeito com seus sonhos. Tal redução do espaço do sonho, essa desconexão não teria como efeito aquilo que o xamã Yanomami Davi Kopenawa, denominou “modos curtos de sonhar e pensar” dos napë (brancos)?

Um outro além do sonho freudiano reside na sua força de ser compartilhado, na abertura de suas fronteiras com outros sujeitos, no espaço onírico comum. “O que contar para aceitar estar junto?” Indaga Dufourmantelle: “Sonhos” (p. 17). O sonho é pensado pela autora como força viva. Produzimos futuro sonhando, e “os indígenas sabiam disso” (p. 56), nos relembra Dufourmantelle.

Os povos originários, para os quais o sonho é uma experiência coletiva, sabem que sonhar é resgatar nossa ancestralidade para conectarmos com possíveis saídas para o futuro. Um deslocamento da temporalidade, um sinal de que algo foi e, ainda que fugidio, de que algo será. Uma anunciação.

No capítulo Intercessores: gênios, daemom e anjos, Dufourmantelle nos fala dessas arquiteturas simbólicas que portam o indizível, aquilo que excede nossa capacidade de pensar. Seriam os gênios poéticos, assim como o sonho, essas figuras de intercessão que nos permitem dizer o mundo? Freud, em Escritores criativos e devaneios, já se referia a esse segredo mais íntimo dos sonhadores diurnos, os poetas e escritores. Dufourmantelle revisita esse caminho freudiano com habilidade rara, aproximando-nos dessa misteriosa narrativa, que pela voz do gênio, do anjo ou do sonho, o sujeito fala a si mesmo de um outro lugar.

Nosso guardião insiste e sussurra ardida ou docemente ao sonhador. Cuidemos, nas palavras da autora, “daquilo que em nós é capaz de sonho” (p. 56).

Teria tanto a dizer sobre o que me causou a leitura do livro, mas deixo ao leitor a delícia de descobri-lo com os próprios sentidos.

No mais, Inteligência do sonho realiza para mim a força de uma declaração de amor ao sonho. Agradeço a Paula Francisquetti e a Danielle Blanchard por essa revelação e por esse encontro.

 

Breve apresentação para o lançamento do livro de Anne Dufourmantelle Inteligência do sonho – fantasias, aparições e inspiração

por Paula Francisquetti[3]

 

“Não nos refazemos da surpresa de estar no mundo”
Anne Dufourmantelle

 

Nesses tempos de inteligência artificial e de fim do sono, momento em que o sonho está ameaçado, queremos celebrar o livro de Anne Dufourmantelle sobre a inteligência do sonho, lindo elogio à dimensão onírica do mundo.

A tradução do livro nasceu de um duplo encanto, da Danielle Blanchard e meu, com a escrita de Anne Dufourmantelle. A autora nos surpreendeu com sua sensibilidade, ética, liberdade, erudição, escrita poética e intimidade com o mundo dos sonhos. Ela faz a psicanálise dialogar sobretudo com a filosofia, mas também com a literatura, a história e a antropologia. Notamos alguém que cultivava outra forma de inteligência, aquela que vem da noite, um saber que só se aprende de si mesmo no compartilhamento com outros. Ela chamou essa forma de inteligência de vida dentro da vida.

A cada semana seu livro nos levava a lugares surpreendentes, o que renovava nosso encanto e nos convidava a oferecer hospitalidade aos nossos próprios sonhos. Para ela um sonho não acolhido, não escutado, é como uma carta que não chegou a seu destinatário e isso teria um preço para o sonhador. Ela frisa: sem a inteligência do sonho seríamos como o cego andando à beira do abismo.

No decorrer do livro, a autora nos lembra de inúmeras civilizações que puderam se pensar através do sonho, fazer dele o berço no qual repousa o mundo. E, ainda, que o sonho humano seria destinado à narração, ao laço social, ao compartilhamento; ele anuncia algo da vida individual e coletiva, processa traumas individuais e coletivos, como guerras. Tem uma dimensão histórica-mundial, como tem o delírio para Deleuze. Charlotte Beradt, no livro em que documenta os sonhos do momento da ascensão do Terceiro Reich, nos mostra inúmeros exemplos de sonhos que apontam para essa dimensão histórica, dentre eles alguns sonhos que alertavam aos sonhadores para saírem da Alemanha naquele momento.

Dufourmantelle insiste que para além de nos apresentar a cifra do desejo recalcado, o sonho seria uma forma de inteligência com o real que se dá através das imagens do sonho. O novo é inicialmente figurado antes de ganhar a palavra. Resulta de uma conversão, de uma metamorfose, de uma mudança de estado. O sonho desenha o que ainda não pôde ser pensado, “é o revelador daquilo que começa a vir a se fazer presente para nós mesmos” (Dufourmantelle, 2025, p. 14). Pode até mesmo salvar uma vida, mudar o destino de alguém, se houver porosidade, sensibilidade, ao que vem na noite nos visitar quando a razão adormece.

O sonho não seria algo alheio ou distante da realidade que nos cerca, mas é real, um acontecimento que nos escapa, um ato não autorizado por nossa consciência e um instrumento capaz de desdobrar o mundo, ao possibilitar outra percepção do presente. Ele não tiraria nossos pés do chão, como propõe o senso comum, mas ao contrário, tem a potência de nos ajudar a fincar os dois pés no chão na direção do desejo, de intensificar nossa relação com o mundo.

O mundo é sonho e o sonho, mundo, como vimos na apresentação inicial. Queremos convidá-los à leitura desse livro que nos faz reavivar essa vida dentro de nossa vida. Vida que, como diria Anne Dufourmantelle, apaga-se, devora-se, se esquece de si, escapa-nos e nos desperta, nos impulsiona através dos elementos do passado, do visível e do invisível, ao presente, na direção do futuro.

 

Bibliografia

Dufourmantelle, A. Inteligência do sonho – fantasias, aparições, inspiração. São Paulo, SP: Estação Liberdade, 2025.

Beradt, Charlotte. Sonhos no Terceiro Reich – com o que sonham os alemães depois da ascensão de Hitler. São Paulo, SP: Três Estrelas, 2017.

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[1] Texto apresentado no lançamento da tradução do livro, realizada por Danielle Ortiz Blanchard e Paula Francisquetti, publicado pela Editora Estação Liberdade, no dia 18 de agosto de 2025, na Livraria da Travessa.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, articuladora da área de Publicações e Comunicação no Conselho de Direção, integrante da equipe editorial deste Boletim online e da Comissão de Reparação e Ações Afirmativas do Departamento de Psicanálise.

[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise, integrante da Comissão de Reparação e Ações Afirmativas e do GTACME.

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