Instituto Sedes Sapientiae

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Apontador azul

por Anne Egídio[1]

 

aula inaugural

 

Bem, boa noite a todas e todos!

Gostaria de agradecer ao Departamento de Psicopedagogia e a todas e todos os seus integrantes por tão honroso convite, que espero poder contribuir um pouquinho.

Gostaria de dar as boas-vindas às novas e aos novos alunas e alunos, obrigada e sejam bem-vindas e bem-vindos!

Quando recebi o convite para falar nesta aula inaugural, o primeiro pensador que me ocorreu buscar apoio foi Paulo Freire.

Por que Paulo Freire?

Bem, sou formada em Letras e, apesar de nunca ter me inserido de forma formal no campo educacional, eu dei aulas como Alfabetizadora de Adultos em Canteiro de Obras, meu primeiro emprego como professora numa empresa de Engenharia Civil. Não foi em uma universidade que tive a oportunidade de ler e estudar Paulo Freire, não sou especialista nisto, mas vou contar um pouco de como se deu esse encontro entre mim e a obra de Paulo Freire.

Fui selecionada por uma empresa de engenharia civil para dar aula em canteiros de obras, eu não sabia quase nada sobre o projeto, mas tive uma professora na graduação que dava aula em canteiros de obras e ela nos trazia notícias deste trabalho, a meu ver, muito legal.

A psicóloga da empresa fez a seleção, ao final soubemos que havia duas obras e foram contratadas duas professoras – uma delas era eu. A psicóloga foi nossa coordenadora, vamos dizer assim, nos reuníamos periodicamente no escritório da empresa na Berrini, e lá estudávamos Paulo Freire. Isto foi em 1995 e nossa metodologia deu tão certo que nossos alunos foram levados a fazer prova na Rede Oficial e todos foram aprovados.   O objetivo principal, que era a construção da cidadania desses profissionais, ajudá-los a se deslocarem do lugar de objeto para o de sujeito do processo, foi alcançado com êxito tão grande que fomos demitidas, porque estes funcionários passaram a questionar acerca de seus direitos enquanto trabalhadores.

Pensar através de Paulo Freire é pensar em mudar de perspectiva: é pensar em escuta; é pensar em não produzir o silenciamento; é perceber que tem um outro e mais outros. É, também, permitir o deslocamento de contextos que reforçam as estruturas perversas de nossa sociedade e possibilitar o pensamento decolonizado.

Estou aqui, pensando com vocês, porque a história da educação no Brasil corre em paralelo com a história do Brasil e elas são contadas como se fossem histórias desarticuladas uma da outra.

Por exemplo, em uma aula para formação de professores recebi uma imagem de power point, referindo-se à uma Lei de Diretrizes e Bases de 1827 (quiçá a primeira); dentre outros tantos slides, gostaria de destacar este, a lei:

  • “DETERMINA QUE EM TODAS AS VILAS, CIDADES E LUGARES MAIS POPULOSOS DEVE HAVER UMA ESCOLA DE PRIMEIRAS LETRAS;
  • DEFINE MÉTODO DE ENSINO E FORMAS DE CONTRATAÇÃO DE PROFESSORES;
  • DETERMINA MODELOS PARA OS EDIFÍCIOS ESCOLARES.”

 

A professora, no exemplo acima, não contextualiza a população escravizada, que ficou de fora das escolas por muito tempo por serem proibidas de ter acesso a ela.

Este modus operandi de ensinar é o que Paulo Freire irá problematizar em Pedagogia do Oprimido; ele discorrerá acerca de como se produzem ou se mantêm, a meu ver, essas criptas, os não-ditos na própria história da educação brasileira e na sociedade como um todo.

Antes, porém, gostaria de contar uma história para vocês.

Uma garotinha negra de cerca de 8 anos de idade, moradora da periferia de São Paulo, lá pelos idos de 1968, 80 anos do pós-abolição.

Aluna de escola pública, naquele dia, feliz da vida porque sua mãe conseguira comprar o restante de seu material escolar. Dentre eles havia um objeto muito importante para aquela menininha que, ao chegar à sala de aula, coloca sobre a carteira seu caderno, lápis e um apontador, lindo: quando fechado era uma bola azul e com suporte para resíduos, de modo que ela não precisaria se levantar e ir até a frente para apontar seu lápis – a menininha sentia um incômodo neste simples ato, de modo que o apontador era uma espécie de metáfora para “proteção”.

O objeto atrai a curiosidade da coleguinha de trás, uma menina branca, de família importante no bairro, adulada pelos professores, que pede para ver o apontador e não quer devolvê-lo. Então a menininha pretinha se vira e tenta arrancar seu apontador das mãos da coleguinha. Momento em que a professora se vira da lousa e diz à aluna negra:

“Devolve o apontador para ela, seu moleque do morro.”

Antes de prosseguir com a história, vamos recordar o que é educação bancária:

Paulo Freire define a educação bancária como “um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador, o depositante” (Freire, 2017, p. 80). Na concepção bancária de educação, o saber é uma doação, uma transmissão de conhecimento, em que os alunos recebem o depósito do conteúdo. Diante disso, não há reflexão, não há criatividade, não há transformação e não há saber.

Nesse sentido, o professor detém o saber e o conhecimento e somente transmite para o aluno, que então passa a detê-lo também. O aluno não interage com o professor e não tem conhecimento prévio sobre o tema a ser estudado. A educação bancária nega a educação como um processo de busca pelo conhecimento.

Nas palavras do educador, a educação bancária “é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos” (Freire, 2017, p. 82). Não se reflete sobre a sociedade em que se vive. O aluno é meramente um depósito, bem como ocorre na atividade bancária.

Voltando a história do apontador azul, o que restou a garotinha negra de 8 anos fazer?

A criança assustada deixa o apontador com a colega e, ao chegar em casa, relata à sua mãe o ocorrido.  A mãe escuta sua filha e no dia seguinte vai à escola, para garantir que o objeto era de sua filha, que este lhe fosse devolvido e que sua filha não era ladra.

A garotinha, só observando sua mãe e a sua professora dialogando. A mãe, ao indicar a liberdade de sua filha (ela não é ladra e não será e estou aqui para reconhecer a violência de seu ato dirigido à uma criança e também a sua omissão diante da outra criança que se apossou de algo que não lhe pertencia, apenas porque uma criança é negra e a outra, branca), pode ter produzido na professora essa inversão, em que o opressor se converte no oprimido. Como no dizer de Freire, que nos conta: 

“Mas o que ocorre, ainda quando a superação da contradição se faça em termos autênticos, com a instalação de uma nova situação concreta, de uma nova realidade inaugurada pelos oprimidos que se libertam, é que os opressores de ontem não se reconheçam em libertação. Pelo contrário, vão sentir-se como se realmente estivessem sendo oprimidos. É que, para eles, “formados” na experiência de opressores, tudo o que não seja o seu direito antigo de oprimir significa opressão a eles. Vão sentir-se, agora, na nova situação, como oprimidos porque, se antes podiam comer, vestir, calçar, educar-se, passear, ouvir Beethoven, enquanto milhões não comiam, não calçavam, não vestiam, não estudavam nem tampouco passeavam, quanto mais podiam ouvir Beethoven, qualquer restrição a tudo isto, em nome do direito de todos, lhes parece uma profunda violência a seu direito de pessoa”. (Freire, 2017, p. 61).

Já a educação libertadora ou problematizadora estimula o aluno a participar ativamente na hora de aprender e principalmente a questionar a realidade. Na prática, o professor promove diálogo, debate e aproxima o mundo teórico do dia a dia dos alunos. É a chamada educação ativa.

Dentro do Departamento de Psicanálise, departamento ao qual estou vinculada, foi criado, em 2018, um grupo chamado Grupo de Trabalho (estudo, pesquisa e intervenção) A Cor do Mal-Estar: da invisibilidade do trauma ao letramento. Este Grupo emergiu a partir da inquietação de uma aluna negra com a ausência de negros no processo de formação, tanto como alunos ou alunas como também da ausência de professores negros na formação, à época.

E mais, a ausência de questões acerca da violência fundante da nação, que foi a escravidão e o genocídio dos povos originários. O encontro desta aluna com uma supervisora que não só escutou a angústia desta aluna, mas que se colocou na posição, no dizer de Freire, de romper “com esquemas verticais da educação bancária, superando a contradição educador e educando”, viabilizando o diálogo com sua supervisionanda e desta com a instituição, colaborou para produzir processos importantes nos elementos do grupo e do grupo com a instituição, o que estamos tentando conceituar como letramento.

Relendo Paulo Freire, e sua Pedagogia do oprimido, comecei a pensar que o movimento por ele proposto a partir da educação libertadora e problematizadora, que tem como eixo principal o diálogo, está contido naquilo que, enquanto psicanalistas, nos propusemos dentro do grupo A Cor do Mal-Estar, que é a sustentação do mal-estar, do negro ou do branco: tentar sustentar o diálogo para lidar com o negativo, sempre que ele emergir, exercitar a alteridade.

Temos que trabalhar em todas as frentes na desconstrução de uma estrutura educacional que fomenta a opressão, que pode ser a base do racismo estrutural, que pode ter sido patrocinado por uma educação bancária que destitui aqueles que não possam ser legítimos representantes de um status quo, fortemente marcado por um pensamento colonizador e escravocrata. Machismo, sexismo e tantos outros “ismos” são fomentados por este modelo ou método educacional.

Para Freire, este método é necrófilo, porque é estático e carrega um grau enorme de opressão. Quem quer que esteja na posição de educar ou de transmitir conhecimento a quem quer que seja, e incluo nisso a transmissão psicanalítica, por mais progressista que se possa acreditar, há que abrir espaço para poder dialogar. No entanto, seria bacana ficarmos com estas reflexões de Paulo Freire acerca do diálogo:

Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade. A pronúncia do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante.

O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, se rompe, se seus polos (ou um deles) perdem a humildade.

Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim?

Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros, meros “isto”, em quem não reconheço outros eu?

Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os que estão fora são “essa gente”, ou são “nativos inferiores”?

Como posso dialogar, se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua deterioração que devo evitar? Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido com ela? Como posso dialogar se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro e definho? (Freire, 2017, pp. 111-112).

 

Referência bibliográfica:

Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do GTACME. Mestranda em Psicologia Clínica pela PUC-SP.

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