Sou senhor em minha própria casa
por Sylvia Fernandes[1]
Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte[2]
A morte veio aos montes, misturando as perdas. Se amontoaram sobre nós. Assim meio metades, meio mortos vivos, insistimos na vida.
E a cada ato de continuidade pudemos sentir algum alívio, às vezes até euforia, por sustentarmos a vida.
Assim, continuamos a escutar as pessoas que nos procuram, surpresos por ser possível.
E vieram aos montes. Os que já não vinham mais, pois seguiam suas vidas, os que achavam ser uma facilidade prescindir do deslocamento, os que não sabiam do que sofriam e buscavam um fio de vida. E a morte povoou as narrativas. Passado o tempo do susto, nos acostumamos.
Nos acostumamos aos pedaços de corpos, ao espaço móvel do outro, às invasões inusitadas na instável cena analítica, ao sujeito só voz, à ausência do silêncio acompanhado, aos espaços voláteis, à palavra da urgência, à presença fluída, à paisagem sem relevo…
E talvez, pelo artifício que estamos a inventar, e nos acostumamos, a vida pôde seguir…
Hoje, perplexos com a continuidade, com a vida que pulsa, nos perguntamos sobre o porvir.
Que mundo é esse que nos interroga? Que “novo normal” se anuncia? Vamos continuar nessa linha tênue de vida? Nesse on line importado de campos estrangeiros ao nosso?
A psicanálise sempre foi pouco afeita ao normal, ao fetiche do novo, à fluidez das conexões, à desumanização.
O inconsciente se estrutura como uma linguagem, mas para que se atualize em ato, numa cena analítica, carece da materialidade sensória. É a imersão no estranho, no espaço Outro, que faz a palavra desencarnada e vazia ganhar corpo. A cena analítica se dá na alteridade, longe de nossa morada.
Se o on line, enquanto modalidade de atendimento, pôde ser uma alternativa profícua para manter a relação transferencial nas psicanálises, disseminou as conexões como o eixo das interações, trazendo questões incontornáveis. No atendimento de uma criança, tal recurso exasperou sua angústia, pois não pôde perceber de que se tratava de sua analista falando com ela remotamente e não uma cabeça dentro de uma tela.
Não será a radicalidade da vivência dessa criança, assim como o saber dos loucos, ao denunciar o mal-estar de um modo de existência adaptativo à precarização da vida e das relações, que nos livrará do destino de mortos vivos, montes de corpos dessubjetivados com cabeças flutuantes errando numa terra plana?
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do ISS, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, coordenadora de Equipe clínica da Clínica Psicológica do ISS.
[2] Hugo Mãe, Valter. A desumanização.