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Os mitos de Ewá como poéticas de encantamento da existência diante da angústia e do desamparo

por Simone Piñeiro Bressan Robles[1]

 

Céu de Ewá. Foto de Camila Flaborea

 

A proposição do presente artigo é realizar uma análise preliminar dos mitos de Ewá, Orixá Feminina do Panteão Nagô-Iorubá, à luz da psicanálise, buscando articulações para pensar a angústia e o desamparo e suas possibilidades de caminhos de cuidado, promovendo o encontro, na força da encruzilhada, de saberes dissociados pela colonialidade. Não há dúvidas que, em sua dimensão política, intersubjetiva e social, a violência colonial e patriarcal atravessa e marca a nossa sociedade e as subjetividades, instaurando diferenças epistemológicas, ontológicas, filosóficas, culturais, sociais, mitológicas entre os povos, categorizadas como superiores/inferiores, civilizadas/primitivas, reproduzindo lógicas de cisão e dominação, produzindo efeitos traumáticos no laço social e nas realidades psíquicas individuais e interpsíquicas, intergeracionais e transgeracionais. Lembremos que o trauma é o acontecimento originário da angústia e do desamparo.

Encruzilhada aqui não é pensada apenas como cruzamento de forças ambivalentes que impõe um dilema, um atravessamento e uma decisão que envolve uma superação, mas sim esse posicionamento ativo e desejante diante dos acontecimentos no curso da vida, encarnando nas encruzilhadas a força do vínculo, espaço intermediário potencial de transformação, onde todos os elementos invocam as matérias de composição para o que virá, ainda desconhecido e inesperado, lá onde nos precipitamos na beira do abismo que nos convoca a fazer pontes, escadas e, quem sabe, asas.

Promover o encontro entre o pensamento psicanalítico e a mitologia dos Orixás se inscreve na busca pela aproximação de campos de cuidado em saúde mental, de leitura e compreensão de mundo, de modos de subjetivação e organização social dissociados – pela tradição ocidental colonialista, na sua lógica de apropriação de alguns elementos da cultura negra –de suas origens, que foram demonizadas, subjugadas, violentadas pelo processo de dominação e (de)negação da violência, (re)produzindo dores e sofrimentos que nos compõem como sujeitos e como sociedade.

Vivenciamos esses aspectos negados como zonas inacessíveis, encriptadas, carregadas de angústia, uma vez que, como nos aponta Fanon, a lógica colonial opera identificações com o colonizador, introjeção do sentimento de inferioridade frente a nossas origens e seus símbolos, colocando em marcha afetos como a vergonha, a humilhação, a inferioridade, o não pertencimento e os sofrimentos da ordem do não reconhecimento das potencialidades e identificações com a própria origem, cultura e saberes ancestrais.

O campo do originário é fundamental em psicanálise, esse momento mítico e arcaico que nos constitui como sujeitos singulares e como humanidade, que nos escapa e nos determina, e instaura a dimensão inconsciente em seus aspectos econômicos, tópicos e dinâmicos, objeto primordial da psicanálise, que tem seus inúmeros pontos de confluência com as mitologias, e nesse caso, com as mitologias dos Orixás. A negação e a discriminação do originário e das origens na/da nossa cultura produzem importantes traumas narcísicos transgeracionais, materializados pelo racismo estrutural que atravessa todas as dimensões da nossa sociedade. No entanto, através da resistência negra, indígena e das políticas afirmativas, tais violências vêm cada vez mais sendo denunciadas e combatidas, ganhando visibilidade e, finalmente, espaço de transformação para a construção de uma sociedade que honra sua diversidade, multiplicidade, interculturalidade, revelando aí suas potências.

É desse mesmo campo do originário que vemos emergir também a problemática do desamparo, condição humana que nos lança de forma radical no encontro com o outro e funda a complexidade da vida psíquica e interpsíquica, num contínuo trabalho de lidar com as pulsões de vida e de morte que nos habitam, com a alteridade, com a singularidade das forças desejantes, com os lutos e renascimentos que vamos tecendo na trama da existência. Esse nosso tecido social tão desfiado pela violência colonial, pela violência de Estado, pela violência do patriarcado, que desde as populações expostas às mais duras vulnerabilidades sociais até às mais de 600.000 pessoas mortas na pandemia gerida por um governo genocida, e seus milhões de enlutados, provocou de modo tão intenso e sensível a força sombria da angústia e do desamparo.

É próprio das máquinas colonizadoras a produção de dissociações, cisões, separações, categorizações enrijecidas, que visam segregar mundos para melhor dominá-los. Também é próprio da modernidade seu projeto de ordenação, de divisão, de um excesso de conceituação, em uma busca incessante de apropriação do real, como nos aponta Maia. No entanto, não só de sofrimento e indeterminação vivemos como resposta pós-moderna, também investimos o lugar de encontro libertário entre o ancestral e o contemporâneo, implicado com a interculturalidade, a diversidade, a multiplicidade da existência.  Assim, reivindico aqui a ousadia e o atrevimento exusíaco, para articular na encruza saberes para promover a abertura e a liberdade do pensamento, tantas vezes interditos nas clausuras epistemológicas da lógica ocidental.

Exu, o mensageiro da Ética desejante

Para ativar a força da encruzilhada, de seus cruzos, da amarração entre psicanálise e as mitologias dos Orixás, e mais especificamente Ewá, é preciso primeiramente invocar Exu, orixá demonizado pela cultura colonizadora, por representar justamente aquilo que não é domesticável, aquilo que escapa a qualquer forma de subordinação, a força subversiva capaz de inventar mundos, por ocupar as frestas, romper com dicotomias, devir-boca antropofágica que tudo engole e devolve ao mundo investido de potência e força de criação. Exu é abertura para composição e encontro entre as diferenças. Exu evoca a própria força pulsional inconsciente a favor da existência, é pulsão de vida e pulsão de morte, em seus movimentos que afirmam a vida. É potência onírica que nos dá a conhecer as forças desejantes inconscientes por uma ética que propicia a nossa emergência enquanto sujeitos, resistindo a qualquer lógica de dominação das singularidades às coletividades. Exu mora nas encruzilhadas, encarna a força transgressiva que desloca, inverte, brinca, ginga, debocha com as lógicas, liberando os múltiplos sentidos encarcerados nos signos repressores e colonizadores. É o ato-falho, o chiste, o lapso que irrompe fissuras nas muralhas ordenadoras da consciência, abrindo novas passagens para que fluam os fluxos inconscientes represados. “O inconsciente surge nas lacunas do discurso consciente como o totalmente inesperado e o inteiramente outro”. (Zeferino, R. pag. 333)

No sistema mítico Nagô-Iorubá, por sua natureza de versatilidade e movimento, Exu é o mensageiro que transmite as mensagens entre o Orun (céu) e o Ayê (terra), ele é como uma força pulsional circulando em busca de sentido e ligação. Conta-se que ele fez o trabalho de escuta das narrativas das vicissitudes humanas, narrativas contadas por todas as formas de vida, nas múltiplas linguagens dos seres que habitam a Terra. Tal como o Inconsciente, Exu é polifônico. E traduz a polifonia dos múltiplos sentidos da existência no investimento da palavra entre-mundos, entre-corpos, entre-tópicas, habita o entre e ocupa as frestas através da pulsão e da palavra.

Exu representa a condição psíquica da subjetividade humana, força de encontro cruzado entre um e outro que faz brotar o singular, do vazio povoado e pulsional que é condição de existência, do vínculo que é espaço de emergência psíquica e continente dos processos de elaboração, metabolização, da genealogia que nos inscreve na cadeia de transmissão psíquica narcísica, dos espaços psíquicos intermediários, estabelecendo as negociações, as alianças inconscientes, as ligações, as conexões, as associações.

Desse trabalho de escuta incansável das vicissitudes humanas, Exu elabora um conjunto de narrativas míticas que abarcam e ancoram recursos polissêmicos para os humanos lidarem com as vicissitudes da existência, recursos de simbolização, historicização, de atribuição de sentido, e as entrega a Orunmilá, também chamado de Ifá, o adivinho, o destino. Essa divindade rege o oráculo de Ifá, operado pelo jogo de búzios pelos babalaôs ou pais de segredo. Trata-se de narrativas originárias, transmitidas pela tradição oral na cadeia transgeracional, que apoiam uma ética do bem-viver singular e coletivo.

Os mitos, também chamados de Itans, trazem em suas narrativas tanto a problemática vivenciada por aquele que o encontra através de Ifá, quanto sua solução, sua possibilidade de transformação, que envolve sempre uma oferenda aos Orixás, onde Exu é o agente libertário dessas trocas, transformações e necessária implicação com a alteridade.

Tal estrutura nos remete à lógica das formações inconscientes, desde a sua fundação, do desejo ao sintoma: junto do desprazer ou do sintoma reside também a sua potência de transformação, operada pelas trocas simbólicas em suas dimensões econômicas, dinâmicas e tópicas inconscientes.

“O desamparo infantil implica uma abertura desde o início do bebê para o mundo adulto. Esse encontro primordial inscreve-se definitivamente como processo de desejo. O desejo surge no mesmo lugar onde anteriormente tinham se manifestado o desamparo e a impotência.” (Pereira, p. 137)

Entre as inúmeras narrativas elaboradas por Exu, apresentamos três mitos da Orixá Ewa como potências poéticas para encantar a angústia e o desamparo, operadas especialmente pela sublimação.

Os encantos de Ewa e o campo do angustiante: possibilidades poéticas para pensar o desamparo.

A mitologia Nagô-Yorubá, tal como outras mitologias[2] (sendo a mitologia greco-romana a mais articulada com a psicanálise, especialmente os mitos de Narciso e Édipo, estruturantes simbólicos da teorização psicanalítica), abarca narrativas originárias, que visam dar conta e ancoragem simbólica de aspectos da experiência humana que tocam questões de ordem existencial, como os mistérios da vida e da morte, o imponderável e intangível da existência, os conflitos humanos internos e de sua relação com o outro, entre outras. Podemos considerar que os mitos cumprem uma função simbolizante e imaginária frente às angústias do real: o desamparo como condição humana, a radicalidade da morte, a impotência ante às fatalidades e contingências inerentes à vida, trazendo uma possibilidade de representação do que poderia ser experimentado apenas no campo do excesso pulsional, que justamente caracteriza o trauma em psicanálise. Esse resto de experiência não elaborado, que retorna por não se inscrever, que será definido Freud como compulsão à repetição operado pela pulsão de morte[3].

Na mitologia Nagô-Yorubá, os Orixás são Deuses e Deusas criados por Olorum, o Deus Supremo, que receberam “a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana.” (Prandi, 2001, p.20). Nesse sistema de organização cultural, social e religiosa, atravessados por uma ética do bem-viver, os Orixás, além de representações antropomorfizadas, são também encarnados como forças da natureza. Suas narrativas estão carregadas de situações que envolvem conflitos existenciais, éticos e morais, bem como mediações, trocas e negociações para enfrentar as vicissitudes que se apresentam no enredo.

A Orixá Ewá é descrita como uma mulher de rara beleza, exótica e sublime. Inteligente e guerreira, é associada às capacidades de vidência e intuição. Muitas vezes se apresenta também como cobra, que evoca as transformações nas trocas de pele e o rastejar do submundo à elevação na copa das árvores. Suas representações encarnadas no corpo da Terra são também as fontes de água, o rio Ewa situado na Nigéria (considerado seu santuário), a névoa, a bruma, o arco-íris e o entardecer, com suas cores rosadas, amarelas, avermelhadas. Ela faz a comunicação entre o céu e a terra, o pôr do sol e o crepúsculo, o dia e a noite, sustentando a penumbra e a passagem que nos permite acessar aquilo que está oculto à consciência. Por essas sutilezas poéticas, é também conhecida como a senhora dos disfarces e das infinitas possibilidades… Ewá tem o dom da sublimação.

A sublimação, embora articulada nos textos de Freud desde a primeira tópica, não foi um conceito com definição muito precisa. Talvez o próprio não acabamento do conceito revele a abertura desse movimento pulsional, mencionado e não desenvolvido em “A pulsão e seus destinos”, e que nas inúmeras passagens no decorrer da obra freudiana vai se delinear como desvio da pulsão sexual, tanto na meta quanto no objeto, se transformando em dessexualizada e investida de valor social e estético. É nesse campo que Freud situa as produções artísticas, filosóficas, literárias, prazeres de múltiplos sentidos que não encontram satisfação sexual direta.

Em um de seus mitos, Ewá justamente vivencia um intenso sofrimento diante do conflito promovido pelas projeções narcísicas carregadas por sua mãe Nanã, que deseja que a filha se case a qualquer custo. Após sua mãe pedir a Olodumare pelo casamento, muitos pretendentes começam a disputar a conquista da bela jovem e o resultado disso é guerra, mortes, terra arrasada. Ewá, muito angustiada com toda devastação, faz um apelo a Olodumare e então…

“Os ventos mudaram, os céus se abriram, o sol escaldava a terra
e, para o espanto de todos,
a princesa começou a desintegrar-se.
Foi desaparecendo, perdendo a forma,
até evaporar-se completamente e transformar-se
em densa e branca bruma.
E a névoa radiante de Ewá espalhou-se pela Terra.
E a névoa da manhã Ewá cantarolava feliz e radiante.
Com força e expressões inigualáveis cantava a bruma.”
(Prandi, 2001, p. 234)

Diante do conflito entre atender aos anseios maternos, às tentativas de dominação dos homens fascinados por sua beleza, e a impossibilidade de sucumbir às exigências dirigidas a ela, Ewá experimenta a angústia, o sofrimento, a desintegração. Entre a beleza exótica feminina que ela era e a névoa encantadora, incapturável e livre em que se transforma, há um hiato de indeterminação, de sustentação da angústia, de reconhecimento de uma dor e de uma suspensão egóica, onde a angústia de vida sinaliza um risco de despotencialização e apoia um processo de desterritorialização necessária a uma nova composição de existência e um novo território psíquico.

Birman, em seu Gramáticas do Erotismo, ao se debruçar sobre as formas de subjetivação e a feminilidade, irá justamente situar o feminino nesse desvio pulsional operado pela sublimação, na intensidade do fluxo libidinal não mediado pelo falo, na busca de um novo objeto para a pulsão, em uma ultrapassagem de limites que “permitiria também relativizar o lugar do falo na erogeneidade humana e nos descaminhos do desejo, redefinindo então as trilhas da sua errância.” (Birman, p. 243).

Pois se o falo é significante de poder, onipotência, completude, o feminino e a sublimação “indicaria as potencialidades humanas para a erogeneidade e para a experiência de criação, na qual se reconheceria implicitamente que a subjetividade seria, pois, imperfeita, incompleta, inconclusa e finita.” Encarnando-se então enquanto potência de devir no fluxo da vida, isso não é vivido sem angústia, por articular de forma tão radical o encontro entre a vulnerabilidade de se lançar ao desconhecido devir e a potência da abertura para encantamento de mundos e ultrapassagem de limites; afinal, uma das marcas da angústia é a indeterminação e o excesso pulsional que invade o psiquismo, sem defesas.

Muitas vezes, na clínica, acompanhamos esses movimentos com certo assombro, diante do mistério que Ewá sustenta da transição do peso à leveza, do excesso pulsional às suas transformações simbólicas, das passagens da circulação da pulsão de morte à pulsão de vida. Esse entre vazio indeterminado próprio da transitoriedade, que traz tanto a experimentação do desamparo quanto a potência do devir, quando é possível sustentar a angústia.

Em “A transitoriedade”, pequeno texto de 1916, Freud traz uma reflexão sobre o tempo, a vida, a efemeridade, a força do encontro no seu momento de fruição no presente que não se pretende durável, diante de uma conversa com um jovem amigo depressivo que não conseguia apreciar a beleza de uma flor, por saber de sua efemeridade.

“Quanto à beleza da natureza, ela sempre volta depois que é destruída pelo inverno, e esse retorno bem pode ser considerado eterno, em relação ao nosso tempo de vida. Vemos desaparecer a beleza do rosto e do corpo humano no curso de nossa vida, mas essa brevidade lhes acrescenta mais um encanto. Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não parecerá menos formosa por isso (…) se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado na nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela e, portanto, independe da duração absoluta. (Freud, Obras completas, v. 12)

Talvez esse seja um dos poucos textos ou mesmo o único que traz uma noção de repetição, de ciclos em Freud, que aponte para a vida, independente de suas construções metapsicológicas. E o mais interessante é que justamente na abertura da transitoriedade entre as repetições é que Freud localiza o sublime, nisso que evidencia aquilo que escapa, para a não captura, para o impermanente, para a beleza que representa Ewá.

Pois, a cada repetição, há também a repetição da diferença, algo que vai promovendo alargamento dos sentidos conforme vamos margeando as zonas traumáticas em busca de significação, sem conseguir ainda acessar alguma representação que libere o circuito da angústia. Talvez a clínica da angústia e do traumático resida justamente nesse lugar de enigma e potência da ampliação polissêmica do vivido, podendo a partir daí ser apreendido como experiência. Como diria o poeta Manoel de Barros, “Repetir, repetir, repetir/Até ficar diferente/Repetir é um dom do estilo.”

O conflito que Ewá nos apresenta é justamente sobre o deserto da conquista, do encarceramento da existência, como terra a ser conquistada e arrasada, como quer a lógica colonizadora disparadora das angústias depositadas no laço social da nossa sociedade e nas subjetividades advindas das violências de apropriação, dominação, segregação, desigualdade e vulnerabilidade social, vivenciadas ainda mais intensamente pelas mulheres racializadas e não-brancas.

Ewá é essa força de resistência que habita igualmente no laço social e nas subjetividades, que não se permite domesticar. Ewa não se submete às investidas da biopolítica e do biopoder (Foucault), esse dispositivo político e econômico de normatização dos corpos a serviço do sufocamento das liberdades. Ewá aponta para a abertura pela sublimação, para finalmente poder liberar o circuito pulsional mortífero imposto pelas lógicas violentas e dar passagem ao encantamento da vida, à poética da micropolítica cotidiana pela reterritorialização em um território incapturável, cuja potência reside na autonomia e na liberdade pela afirmação da vida.

Articulando com a clínica ampliada presente na política pública de assistência social, observamos o quanto as dimensões traumáticas do laço social estão atravessadas pelo racismo, pelo patriarcado, pela lógica e violência colonial e pelas transmissões transgeracionais. Ao mesmo tempo que se evidenciam as resistências micropolíticas que podem inventar contra essas violências a favor da Vida… a sublimação encarnada por Ewá ajuda a compreender como se operam essas invenções libertárias, esses encantamentos nas frestas, flores no asfalto, que podem produzir aberturas de sentido…

Trabalhando no CRAS há mais de 12 anos, atendendo populações em situação de vulnerabilidade, é nítido o retrato social da desigualdade brasileira, cujos rostos, corpos e almas são de mulheres, negras, com condições muito precárias de existência, mas também muita força de vida capaz de inventar mundos e saídas para suas necessidades, para o enfrentamento das situações de violência e exploração que podem se colocar nas situações de desamparo em suas mais variadas formas.

Desde que a assistência social se reorientou para uma primazia dos serviços socioassistenciais, para além dos benefícios assistenciais (igualmente fundamentais, mas facilmente capturados pela biopolítica), a dimensão do desejo, das potencialidades, da história, da memória, do resgate cultural e ancestral, da valorização dos territórios psíquicos, sociais, culturais e geográficos, do trabalho psicossocial com os vínculos familiares e comunitários, essa política pública, quando ofertada desde suas diretrizes e princípios, pode representar essa continência dos sofrimentos e angústias vivenciadas e buscar caminhos de ressignificação em uma poética e uma política de reescrita simbólica de suas trajetórias na articulação com suas origens, encantando novos horizontes rosados ao entardecer.

Em outro mito, Ewá aparece como a mãe de dois filhos, que coleta lenha no bosque, para vender no mercado e, assim, sustentá-los. Certa vez, Ewá e seus filhos se perderam e foram se embrenhando cada vez mais na floresta. Quanto mais andavam, mais eram invadidos pela sede e pela fome. Então, Ewá implorou auxílio a Olodumare, deitou-se ao lado dos filhos e se transformou em uma fonte de água. A água matou a sede das crianças e continuou jorrando, originando o novo rio Ewá. (Prandi, p. 232)

Embora não se trate aparentemente de dois bebês, podemos identificar aqui a problemática do desamparo e o papel fundamental de atenção e continência psíquica que representa a função materna no que diz respeito à condição existencial de desamparo. As necessidades do bebê devem ser atendidas por um outro que tem os recursos para auxiliar o bebê nessa situação de total dependência, atendidas não apenas de forma biológica, mas também investidas do desejo do outro, ao escutar o seu apelo. Desejo do Outro que é excessivo por definição, pois está sempre aquém de significação pelo bebê que o recebe de forma passiva, ainda sem dispor de um aparelho para interpretar.

Ewá encanta o desamparo quando ele quase encarna o desespero ao se transformar em rio, e o que se inicia como fonte que o sacia nesse momento originário e perdido, portanto mítico, se inscreve como o rio que acompanhará o sujeito no curso da vida, como ondas de assombro diante do seu desamparo e da complexidade de suas profundezas que sempre fazem escapar um resto não apreensível, revividos e irrepresentáveis nas situações em que experimenta a angústia. E ao mesmo tempo como condição de existência, de abertura, de navegação e saciedade nas águas da vida, onde o novo sempre faz brotar as forças de vida, ligação e transformação, afinal não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Como nos apresenta Zeferino, a angústia de desamparo que nos marca pelo limite, onde a morte figura como condição existencial, também nos apresenta a dimensão do possível, das infinitas possibilidades aí contidas, das contingências, da abertura radical que articula liberdades, separação e desamparo na beira do abismo.

Freud em sua teoria da angústia define dois tipos de angústia, a angústia sinal e angústia automática. A primeira, é aquela que prepara e defende o psiquismo para o excesso pulsional diante de uma situação potencialmente perigosa, a segunda deriva da angústia experimentada no nascimento vivenciado como traumático. Assim, a angústia sinal é fundamental para a preservação do delicado equilíbrio pulsional, psíquico e emocional.

Freud apresenta os afetos como originários dos traços mnêmicos das primeiras vivências da existência do bebê e o afeto de angústia, em especial, teria origem no trauma do nascimento, que no caso do bebê humano, que é naturalmente prematuro, o lança numa condição originária de radical desamparo, ou seja, de dependência absoluta de um outro que atenda as suas necessidades e do submetimento ao desejo desse outro, que atenderá a essas exigências implicado com sua própria subjetividade, que também lhe escapa. Esse é um momento mítico e modelo para a angústia, o trauma e a crise de angústia, e configura o mesmo encadeamento de repercussões no corpo e no psiquismo, frente a situações que nos expõem tanto ao desamparo material quanto ao desamparo psíquico.

“A angústia é, de um lado, expectativa do trauma, e de outro lado, repetição atenuada no mesmo. (…) Sua relação de angústia se liga à situação de perigo, sua indeterminação e ausência de objeto, à situação traumática do desamparo, que é antecipada na situação de perigo” (Freud, 2014, p. 116).

A neurose de angústia justamente ativa o circuito “angústia-perigo-desamparo (trauma)” na tentativa do sujeito se posicionar diante de um possível trauma, de uma forma ativa, buscando recuperar seu controle sobre o desamparo (re)vivido. Há algo nessa cena mítica de Ewá com seus filhos que aponta para esse lugar de função materna, de continência, de escuta do grito transformando em apelo e produção de sentido, que a clínica pode ousar encantar a impotência para a abertura de sentidos.

Finalmente, o terceiro mito que evocamos é aquele em que Ewá salva Orunmilá (o destino) de Icu (a morte). Conta-se que Orunmilá estava fugindo de Icu, que o queria pegar de todo jeito. Ele fugiu de casa, correu e na sua fuga encontrou Ewá lavando roupa em um rio. Ela percebeu o seu desespero e perguntou se ele fugia da morte e ele afirmou. Então Ewá escondeu Orunmilá embaixo de sua tábua de lavar roupas, que era um tabuleiro de Ifá. Logo chega a morte, esbaforida e putrefata, perguntando por Orunmilá. Ewá despista e diz que Orunmilá foi para outra direção e já deveria estar muito longe. A morte então desiste de sua empreitada, Ewá leva Orunmilá para casa, eles dormem juntos e ela engravida. Fez-se uma grande festa, onde todos cantavam que Ewá livra da morte. (Prandi, pp. 235-236).

Aqui temos o encanto (Ewá) dando amparo e proteção para que o destino (Orunmilá) possa escapar da morte (Icu). Orunmilá, sentindo a aproximação da morte, é tomado por intensa angústia, que o faz buscar uma defesa para essa invasão que coloca em risco o seu equilíbrio ou sua conservação, defesa que representa a fuga. Fugir é também reconhecer sua vulnerabilidade, suas limitações; e sua angústia o impele a se dirigir ao outro, a pedir apoio, a buscar ligação e ampliar suas possibilidades de existência. Da solidão e impotência que experimenta, abre-se para a alteridade, “o grito desesperado de ajuda lançado na direção do outro.” (Zeferino). Para ajudá-lo, Ewá o envolve em um tabuleiro de Ifá ao avesso, Ifá é também o nome de Orunmilá e seu tabuleiro é o palco onde se lançam as infinitas possibilidades, no jogo de búzios, desde a sua própria matéria, narrativas, linhagens, memórias, sonhos, destinos, apostas, sempre no encontro como outro. Ela oferta a sua própria pele psíquica ao avesso, desde uma perspectiva que ele desconhecia e talvez, se apropriando dela, tal como se promove na clínica, conseguir romper com o circuito da angústia e transformá-la em outras expressividades do desejo… E quem sabe, nesse encontro ao avesso na poética da sublimação, construir outras modalidades de ideal que possam acolher nosso desamparo desde um outro lugar, mais potente.

“Naquilo que Freud escreveu sobre a sublimação certamente se pode encontrar uma abertura, rica de imensas possibilidades, para outra modalidade de ideal que, sem ocultar a falta, os limites e as imperfeições, assegura a possibilidade de investirmos nossa libido em sonhos e projetos que se nutrem no movimento do nosso desejo e de nossas possibilidades criativas.” (Zeferino, pag. 338)

Ewá e a (po)ética feminista e decolonial frente ao desamparo político de nosso tempo.

Por toda essa potência feminista encarnada em seus mitos, não à toa o culto de Ewá foi se tornando cada vez mais raro em uma sociedade patriarcal e colonialista como a nossa. No culto aos Orixás, um rito a determinada Orixá só é realizado quando existem as filhas e filhos de santo na comunidade de terreiro e, através dos ritos, dos cultos, dos cantos, das danças os mitos são transmitidos oralmente e também na trama dos afetos, das memórias, da poética do cotidiano e do sagrado. Tenho a impressão que por sua natureza libertária, desobediente e enigmática, que ameaça a estrutura colonialista e patriarcal, de controle e dominação, Ewá foi deixando pouco a pouco de ter suas filhas e filhos de santo, condição para a transmissão dos mitos e ritos, que no Brasil foi se perdendo paulatinamente, sendo considerada uma Orixá rara, de pouca manifestação.

Mas a abertura feminista, decolonial e desviante da sublime ação promove rasgos nos tecidos conservadores e traz a emergência novamente de suas narrativas e enredos trazidos e sustentados pela resistência negra e abre para novas composições, tessitura de novas malhas vinculares transformando o tecido social, bordando a rebeldia, o sublime e as infinitas possibilidades da existência. Tal como defende Vergès, com seu feminismo de quilombagem:

“Chamo aqui de quilombagem e de quilombolas todas as iniciativas, todas as ações, todos os gestos, cantos e rituais, que noite e dia, escondidos ou visíveis, representam uma promessa radical. A quilombagem afirmava a possibilidade de um futuro mesmo quando ele era negado pela Lei, pela Igreja, pelo Estado e pela cultura (…) (quilombolas) desenharam territórios soberanos no próprio coração dos sistema escravocrata e proclamaram a liberdade. Seus sonhos, suas esperanças, suas utopias, e mesmo o motivo de suas derrotas, permanecem espaços de onde se pode tirar um pensamento de ação.” (Vergès, 2019, pp. 49-50)

Como guardiã dos sonhos, Ewá também nos convoca a fazer da angústia matéria de encantar mundos, reivindicar nossa posição como sujeitas/sujeitos desejantes e utopizar novos modos de vida que defendam a diversidade, nesses tempos desafiadores que estamos vivendo hoje, onde a sublime ação possa operar desvios e subversões ali onde o desejo está impedido e o desamparo instalado.

 

Referências bibliográficas:

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__________. Obras completas, volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos Lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917 – 1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

_________. Obras completas, volume 17: Inibição, Sintoma e Angustia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929).1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

_________. Obras completas, volume 18: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Kaës, R. As alianças inconscientes. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.

Kaës, R. Um singular plural. A psicanálise à prova do grupo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

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[1] Psicanalista, aluna do 2º ano do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea. Mestre em Psicologia Social pelo IPUSP, com especialização em Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura PUC/ COGEAE e em Psicanálise dos Laços Sociais pelo IPUSP.

[2] Que diferenças se operariam na teoria e na clínica psicanalítica caso fossem articuladas outras mitologias para pensar os processos de subjetivação e estruturação psíquica?

[3] Poderíamos inferir que os ritos, que vivificam os mitos, cumprem uma função de regulação pulsional e simbólica frente aos excessos de energia frente a essas angústias?

 

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