Uma passagem de bastão em tempos de atordoamento: memória e futuros possíveis – aula inaugural 2022
por Márcia de Mello Franco
Boa noite a todas e todos! Meu nome é Márcia de Mello Franco e quero, em primeiro lugar, dar as boas-vindas aos alunos que iniciam hoje o primeiro ano do curso e àqueles que retornam para cursar o segundo ano.
Preciso dizer a vocês, alunas e alunos do primeiro e segundo anos do curso, que nós, do grupo de professores, vivemos hoje um momento importante na história do curso, momento que é particularmente especial para mim. Depois de 5 anos coordenando o curso Psicoses, concepções teóricas e estratégias institucionais e 24 anos coordenando o curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, Mario Fuks deixa a coordenação do curso. Ele sai da coordenação, mas continuará, de diferentes formas, contribuindo com a equipe de professores. É com satisfação e, também, lisonjeada, que conto para vocês que Mario me passa neste ano o bastão da coordenação. O modelo de passar bastão, tal como numa corrida de revezamento, surgiu em uma reunião em que discutíamos essa mudança e decidimos iniciar uma prática de revezamento da função de coordenação após alguns anos de trabalho (que não serão mais tantos!!!).
Eu fazia parte do primeiro grupo de colegas que criou os cursos de Psicoses e de Psicopatologia. Meu aprendizado como professora foi muito favorecido pelo fato de termos criado um curso em que os professores têm, além do trabalho direto com os alunos, um trabalho bastante intenso de trocas numa reunião semanal da equipe. Nesta reunião, conversamos sobre os conteúdos teóricos a serem desenvolvidos no curso; buscamos elaborar a experiência vivida com os alunos; refletimos sobre as formas de transmissão e, ainda, sobre o contexto institucional (Sedes e Departamento de Psicanálise), social e político em que ela ocorre. Além da reunião semanal, contamos também com o recurso de assistirmos às aulas de outros professores para que possamos, de fato, desenvolver um projeto juntos. As características, tanto da forma de coordenação exercida pelo Mario, que sempre compartilhou conosco as decisões a respeito do curso, quanto dos dispositivos que criamos, trouxeram contribuições fundamentais para minha formação como psicanalista e como professora e criaram as condições para a transmissão da função do coordenador dentro da equipe. Então, em primeiro lugar, queria agradecer ao Mario e aos colegas do curso que participaram e ainda participam do meu processo de formação[1].
Todo ano iniciamos o curso com uma aula que chamamos de inaugural e que se destina aos alunos dos dois anos. Vou apresentar a vocês a atual equipe de professores para depois entrar no conteúdo específico da minha aula:
Ana Lucia Panachão
Ana Maria Siqueira Leal
Marcelo Soares
Mara Selaibe
Marcia de Mello Franco
Mario Pablo Fuks
Mania Deweik
Roberta Kehdy
Tatiana Teixeira Inglez-Mazzarella
Começo relatando uma situação vivida há quase 30 anos, ocorrida provavelmente em 1994. Eu havia concluído o Curso de Psicanálise do nosso Departamento havia pouco mais de 2 anos. O próprio Departamento de Psicanálise era, na ocasião, relativamente novo. Na época, eu trabalhava como psicóloga na rede municipal de saúde e compartilhava a satisfação de colegas do Sedes por estarmos vivendo, durante a gestão de Luiza Erundina na cidade de São Paulo, a implantação de uma rede de saúde mental substitutiva ao modelo manicomial. A luta antimanicomial, que havia ganhado corpo no país na segunda metade da década de 80, produzia então frutos muito importantes e era o pano de fundo para um momento bastante criativo com relação às práticas de saúde mental.
No mesmo período, um grupo de psicanalistas do Setor de Saúde Mental e Instituições do Departamento de Psicanálise do Sedes participou de um importante movimento de formação dos trabalhadores da rede municipal de saúde mental. O grupo do Sedes integrava um conjunto de profissionais contratados pela prefeitura para dar supervisão às equipes dos novos serviços que eram criados. Parte destes psicanalistas do Departamento de Psicanálise criou, no Sedes, um curso denominado Psicoses, concepções teóricas e estratégias institucionais, cujo objetivo era oferecer um espaço de reflexão teórica e clínica voltado para profissionais destas equipes. Como já disse, Mario Fuks era o coordenador do curso e, também, quem reuniu o grupo de professores. Ingressei neste grupo com a intenção de trazer como contribuição específica minha experiência em saúde pública.
A cena que quero compartilhar com vocês ocorreu quando presenciei Mario discutindo com os alunos uma situação clínica ocorrida dentro de um Hospital Dia (HD), dispositivo que veio a se transformar no que hoje chamamos de CAPS. Uma aluna, que trabalhava no HD, relatava um episódio muito difícil vivido com um paciente. Infelizmente não me lembro do que se tratava, mas era uma situação em que ela fizera uma intervenção junto ao paciente e relatava isso de forma muito constrangida, pois temia que sua intervenção fosse considerada uma “heresia” pelos psicanalistas.
Mario perguntou a ela o que acontecera depois desta intervenção e, então, vieram novos dados que configuraram um relato muito rico e surpreendente da situação. Depois Mario esclareceu que era assim que funcionava o raciocínio clínico: havia uma hipótese, algo era introduzido a partir desta hipótese e só poderíamos saber a posteriori, ao observar o que acontecia no campo a partir daquela intervenção, se isso fizera sentido ou não e se havia sido uma boa intervenção. Mario esclarecia ainda que uma boa intervenção era aquela que punha algo em movimento e que poderíamos acompanhar esse movimento formulando novas hipóteses, que poderiam se transformar em novas intervenções e dar lugar a outras observações. Em síntese, Mario ressaltava para os alunos a importância da ideia de processo no trabalho clínico.
O que estou contando pode não conter em si grande novidade, mas o efeito desta intervenção na aluna e em mim, que me formava ali como professora, foi algo bastante significativo. Atualmente, eu ofereço um conjunto de aulas para o segundo ano em que discuto a questão dos dispositivos clínicos. A ideia de processo dentro da clínica me é fundamental, bem como um pensamento sobre o que favorece transformações e passagens de uma forma de funcionamento a outra.
Roussillon (2019), autor com que trabalho no segundo ano do curso, define a prática clínica psicanalítica justamente como a que “situa o vértice da realidade psíquica e dos processos da sua transformação simbolizante no seu centro, a partir de um método centrado na atenção dirigida à associatividade dos processos psíquicos e seus diversos modos de expressão” (p. 23). Para esse autor, simbolizar está intimamente ligado à problemática da apropriação subjetiva da realidade.
No segundo ano do curso, temos trabalhado muito com a questão da passagem do irrepresentável para a possibilidade da simbolização em suas múltiplas formas. Em psicanálise, pensar nisso implica em refletir sobre passagens de muitos níveis. Mencionarei 3 destes níveis com o objetivo de mostrar a importância das ideias de passagem e de transformação na teoria e na clínica psicanalíticas:
1. A passagem do somático ao psíquico: o conceito de pulsão é um conceito central na teoria freudiana e está relacionado a esse nível de passagem. Em 1915, no texto A pulsão e seus destinos, Freud define pulsão como um “conceito limite entre o somático e o psíquico, como representante psíquico das excitações oriundas do interior do corpo que chegam ao psiquismo, como uma exigência de trabalho que é imposta ao psíquico em consequência de sua ligação ao corporal” (p. 142). Esse será um conceito que abordaremos ao longo de todo o curso, quando terão mais oportunidade de pensar nas vicissitudes desta passagem.
2. Um segundo nível de passagens que recorto refere-se ao processo de simbolização e à sua relação com o funcionamento do aparelho psíquico, concebido por Freud como um aparelho que opera transformações. A passagem da percepção para a simbolização, no interior do aparelho psíquico, envolve um processo em que as marcas deixadas no psiquismo pela percepção são investidas e articuladas constituindo complexas representações psíquicas que, por sua vez, necessitam ser articuladas a palavras para que algo possa ser simbolizado. Segundo a metapsicologia freudiana, a passagem de uma parte a outra do aparelho psíquico, como a passagem de um conteúdo inconsciente para a consciência, envolve transformações que resultam em algo novo após essa passagem. Um exemplo do que estou falando é o conceito freudiano de sintoma neurótico. Freud concebe o sintoma neurótico como uma formação substitutiva que, ao mesmo tempo, revela e oculta o conteúdo recalcado. Vias associativas levam do conteúdo recalcado à formação do sintoma e vice-versa, mas ele é algo novo que se produz de forma que aquele conteúdo possa ser admitido na consciência.
A questão da construção do aparelho psíquico está presente em todo o curso, mas é abordada particularmente no módulo do narcisismo, que ocorre no primeiro ano, e nas aulas sobre sono e sonho que são dadas no segundo ano.
3. Cabe ainda destacar um terceiro nível de passagens e transformações, o dos complexos mecanismos de interiorização que possibilitam que alguém torne seu algo vivido na experiência com o outro. Sem a mediação de um outro, o sujeito não se constitui. Trata-se de pensar na passagem entre fora e dentro, duas categorias também a se construir junto com a constituição de um espaço psíquico interno e de um Eu que possa situar o sujeito em relação a isso.
Em alguns dos quadros clínicos que estudamos ao longo do curso, o que podemos observar é justamente o efeito do fracasso ou da dificuldade de que alguma passagem ocorra. A melancolia, por exemplo, conforme o modelo freudiano estudado no primeiro ano do curso, diz respeito ao fracasso na simbolização do objeto perdido. De acordo com esse modelo, por não poder se separar do objeto, o sujeito vive um tipo de identificação com o objeto perdido em que esse é incorporado ao Eu, resultando numa divisão dentro do sujeito em que uma parte do Eu dirige ataques a outra parte identificada ao objeto perdido.
Considero ainda as toxicomanias, que estudamos no segundo ano do curso, uma figura clínica paradigmática neste sentido. Por não poder realizar uma verdadeira experiência com o objeto, em que esse possa transformá-lo a partir das marcas deixadas pela relação com o objeto, o toxicômano é condenado a repetir o ato de se drogar, ficando preso a uma substância que precisa ser re-apresentada, concretamente, a cada vez.
(Se o que estou dizendo não puder ser compreendido por vocês, não se importem, pois são apenas um anúncio de questões que estudaremos ao longo do curso).
Ao ressaltar a importância que têm as passagens e transformações na teoria psicanalítica, busco traçar para vocês algo que diz respeito à criação de um curso que visa resgatar a especificidade da psicopatologia psicanalítica. A psicopatologia psicanalítica, tal como a entendemos, busca pensar as problemáticas que se apresentam na clínica numa perspectiva de complexidade. O pensamento psicopatológico implica em formulações de hipóteses a respeito do funcionamento psíquico subjacente às manifestações estudadas e para isso a metapsicologia psicanalítica é convocada. Ao propormos esse curso, acreditávamos ainda que era preciso articular os modos como se apresentava o sofrimento psíquico às rápidas transformações que atravessavam a vida social, o que significava incluir em nossa reflexão o impacto do desenvolvimento tecnológico, do capitalismo avançado e os laços sociais presentes na sociedade de consumo e do espetáculo.
Na época, havíamos acompanhado no curso Psicoses, concepções teóricas e estratégias institucionais o esvaziamento dos espaços coletivos de elaboração da clínica desenvolvida nos serviços criados em substituição ao modelo manicomial. Paulo Maluf e Celso Pitta haviam feito um desmonte sem precedentes das equipes de trabalho, implantando um Plano, ironicamente chamado PAS, baseado numa primeira tentativa de terceirização da gestão dos serviços de saúde dentro do SUS. Paralelamente, observávamos a insistência com que compareciam na clínica e ganhavam destaque na mídia sintomatologias agrupadas e nomeadas pela psiquiatria como Síndrome do Pânico, Depressões, Transtornos Alimentares, Distúrbios do Sono e Toxicomanias. Entendíamos que o destaque que adquiriam estas patologias relacionava-se com o avanço de práticas psiquiátricas medicalizantes apoiadas na lógica do DSM. Nesta corrente, ainda hoje hegemônica na psiquiatria, as questões do sujeito ficam eclipsadas e o sofrimento psíquico é de certa forma naturalizado ao ser considerado como de origem orgânica. Conforme aponta Birman (1999), ao se voltar para as neurociências a psiquiatria buscava alcançar o estatuto de ciência que lhe era, por vezes, negado dentro das ciências médicas. Desta forma, a psiquiatria se afastava de um pensamento dinâmico, que se nutria dos conhecimentos da psicanálise, e focava sua terapêutica no uso da medicação. Ao nos propormos a estudar esses quadros recortados pela mídia e pelo discurso psiquiátrico, a ideia era tomá-los, no entanto, não como entidades nosológicas naturais, mas como representantes do mal-estar da época, para recuperarmos o pathos, entendido como o sofrimento que, ao ser escutado, pode ser transformado em experiência. Aquilo que um sujeito diz – ou mesmo mostra a um analista a respeito de seu sofrimento – contém em si uma esperança de transformação. Se puder ser escutado pelo psicanalista, o sofrimento do sujeito porta algo singular e remete também ao mal-estar daquela época, solicitando um esforço de construção metapsicológica. Deste esforço podem surgir novas ferramentas teóricas que contribuem para a escuta na clínica deste e de outros sujeitos e por aí segue o desenvolvimento do campo da psicanálise…
Assim como as histéricas apontaram, para Freud, o caminho para a compreensão da etiologia sexual das neuroses num contexto social de forte repressão da sexualidade, o que poderiam nos ensinar os deprimidos, panicados, toxicômanos, anoréxicas e outros sobre o sujeito na contemporaneidade? Os instrumentos de que dispõe a psicanálise seriam suficientes para pensar essas problemáticas? A que outras ferramentas precisaríamos recorrer? A própria metapsicologia psicanalítica precisaria ser revista? Em que aspecto?
Essas são algumas das indagações que nos guiam dentro de uma perspectiva que visa desenvolver um pensamento crítico a partir da psicanálise, levando em consideração a dimensão histórica, portanto social e política, do sofrimento psíquico. Nossa reflexão pretende abarcar, ainda, o questionamento das condições que podem ser mais ou menos favoráveis à elaboração daquilo que produz dor e sofrimento na atualidade. Mario Fuks (1998/99) aborda essas questões em um artigo intitulado “Mal-estar na contemporaneidade e patologias decorrentes”. Segundo Fuks (1998/99), “as políticas neoliberais resultam em fragmentação social e rupturas dos laços de sociabilidade e intersubjetividade, comprometendo os recursos elaborativos disponíveis para enfrentar as ameaças e carências que estas mesmas políticas impõem” (p. 63). Desta forma, Mario Fuks ressalta ainda que vivemos hoje num mundo em que os espaços coletivos são esvaziados, os espaços de encontro reduzidos, os vínculos são precários e prevalece um modo de vida solitário, isolado, com ausência de ideais e projetos compartilhados.
As condições históricas que conduziram à criação do nosso curso em 1998 permanecem presentes e algumas até se intensificaram como o avanço das políticas neoliberais e o desmonte das políticas do Estado de bem-estar social. As condições que davam alguma sustentação para os cidadãos se fragilizaram muito nos últimos anos junto com a precarização das condições de trabalho e o avanço da tecnologia. Voltando a Roussillon (2019), este autor postula que os dispositivos institucionais ou sociais têm sua função na regulação psíquica e na gestão das angústias. A esses dispositivos Roussillon atribui um papel de conter, sustentar ou atrapalhar outros dispositivos em que transformações simbolizantes podem ocorrer[2]. Uma política pública é, no meu entender, um desses elementos que favorecem ou obstaculizam o funcionamento de dispositivos com potencial de promover processos simbolizantes. Um exemplo é o que aconteceu com os serviços de saúde mental nos diferentes tipos de gestão, em que puderam ser mais ou menos potentes conforme fossem mais ou menos sustentados por uma política pública coerente.
“Se o mar já não estava para peixe”, isto é, se as condições já não estavam favoráveis no fim do século passado, o que dizer do atual momento em que, a essas condições, se somam uma crise climática que coloca o planeta em risco, uma grave crise sanitária acompanhada de crise econômica e política e, ainda, uma guerra (da Ucrânia) eclodindo no continente europeu? Para nós, brasileiros, o cenário torna-se ainda mais ameaçador por termos um governo que se pauta numa política de ódio de caráter claramente fascista. Neste contexto, a pandemia escancara, ainda mais, a profunda desigualdade social existente no país.
Nos últimos anos dois anos temos vivido, no Brasil, a atordoante experiência de conviver com uma constante ameaça de morte representada pelo avanço da pandemia de Covid, ao mesmo tempo em que vivemos imersos, como aponta Birman (2021) em um contexto produtor de confusão mental. Essas ideias são desenvolvidas por Tatiana Inglez-Mazzarella e Ana Lucia Panachão, professoras do curso, em um texto apresentado por elas numa mesa da FLAPPSIP no XXXIII Symposium AEAPG realizado em 2021. Apoiando-se nas formulações de Birman, as autoras demonstram que, se o próprio desenvolvimento da pandemia seria, pela natureza do problema, algo incerto e gerador de angústia, o contexto comunicativo em que se deu alimentou as incertezas, produzindo o efeito de cisão psíquica resultante de um sistema de comunicação caracterizado pela dupla mensagem das autoridades. Diante do discurso negacionista do Estado e das mensagens que, se processadas, seriam contraditórias, não sabemos ao certo no que acreditar. Somado a isso, as autoridades, de quem o sujeito cidadão espera amparo e segurança, são aquelas cujas escolhas constituem expressão do que Achille Mbembe (2018) denomina necropolítica, isto é, uma política que distingue aqueles que podem viver daqueles que devem morrer. Neste contexto, como ressaltam nossas colegas Tatiana Inglez-Mazzarella e Ana Lucia Panachão, “o sujeito fica exposto à invasão traumática e sofre graves consequências psíquicas que podem levar ao desamparo e ao desalento”. (Terão oportunidade de estudar essas questões com a Tatiana no módulo do primeiro ano sobre o campo do angustiante e as questões do traumático).
A capacidade de pensar diz respeito à possibilidade de efetuar novas ligações entre aquilo podemos representar e transformar. Pensar requer sustentar contradições e enfrentar conflitos. O contexto que descrevi, em que prevalece a cisão e a recusa mantém afastadas as representações que seriam contraditórias, é muito pouco favorecedor do pensamento. Neste período, Birman (2021) aponta a exacerbação de quadros de pânico, de quadros depressivos e melancólicos, compulsões alimentares, transtornos de sono, abuso de medicações, álcool e outras drogas.
Ana Lucia Panachão, professora do curso, apresentou-nos um artigo de jornal[3] em que Vieira (2021) abordava o languishing, termo cunhado pelo sociólogo Corey Keyes para descrever um quadro “novo” surgido em função da pandemia. Languishing pode ser traduzido por definhamento ou abatimento e trata-se de um quadro caracterizado pela ansiedade, pela incerteza em relação ao futuro, depressão pela perda de amigos e familiares queridos, preocupação pelos planos adiados, esgotamento diante das notícias sobre o avanço de uma doença pouco conhecida. Uma outra característica deste quadro seria o fato de que haveria uma ausência de emoções claras para qualificá-lo sendo mais definido pelo estado emocional do vazio e pela apatia. Esse artigo traz ainda a opinião de Marina Pinheiro, psicóloga que aponta que a pandemia nos colocou em uma dimensão de sobrevivência e que é importante sairmos da clausura de estar entre a vida e a morte e recuperar, com a arte ou outras práticas, algum encantamento.
O último filme a que assisti no cinema antes da pandemia foi Você não estava aqui, filme de 2018, dirigido por Ken Loach. Neste filme, um trabalhador ao perder o emprego submete-se a condições muito ruins para trabalhar como “empresário de si mesmo” fazendo entregas com uma van. Assistimos no filme à degradação das condições materiais e de saúde do personagem, bem como à degradação dos vínculos agravada pela falta de tempo para as relações familiares. Um dos poucos momentos de distensão no filme se dá quando, ao início de uma refeição compartilhada, toca o telefone da mãe e ela precisa sair para socorrer uma velhinha de quem era cuidadora. A solução surge do filho, adolescente desajustado, que sugere que fossem todos juntos levar a mãe para o trabalho na van do pai, quando poderiam, então, cantar no caminho. Não se tratava de uma saída maníaca, mas de uma saída possível de resgate dos vínculos e da alegria quando tudo parecia ruir. O desenrolar do filme não é otimista e não chega a se esboçar nele um projeto de futuro. A cena a que me referi, entretanto, é daquelas cenas de cinema que eu não esquecerei. Ela nos apresenta uma brecha para o encontro e o compartilhamento. Isso curiosamente se dá no mesmo “espaço van” que é também o espaço onde se dá a exploração do trabalho do pai. Não sei quais serão as saídas que encontraremos, mas acredito que, se algo novo puder surgir, isso ocorrerá com a possibilidade de resgate de espaços compartilhados. No filme, isso vem do jovem desajustado que tem também uma ligação com a arte urbana do grafite…
Outro dia eu me lembrei também de uma frase que dá título a um livro publicado originalmente em 1982, Tudo que é sólido desmancha no ar. O autor estadunidense, Marshall Berman, retira essa expressão de uma frase contida no Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848). A obra de Berman apresenta uma história crítica da modernidade a partir da análise de trabalhos de diversos autores que marcam o pensamento desse período. Ele se detém, por exemplo, em Goethe, Marx, Baudelaire, Dostoievski, Nietzsche e artistas de vanguarda do século XX. A frase de Marx e Engels (1848) que dá nome à obra de Berman é a seguinte: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.
Se Marx e Engels pretendiam apontar, numa perspectiva dialética, que o modo de produção do capitalismo ruiria por si mesmo, a frase por eles escrita pode ser ressignificada num contexto em que a vivência de transformação que caracteriza a modernidade conduz a uma vivência de mundo desconstruído e sem rumo. Atualmente, quando o que é sólido desmancha no ar, surge muitas vezes a vertigem diante das enormes incertezas em relação ao futuro.
Busco enfatizar, nesta aula, a importância da noção de processo tanto na vida dos sujeitos quanto na teoria psicanalítica. Processo e temporalidade são duas noções que caminham juntas. Cabe lembrar ainda que a psicanálise dispõe de uma noção de temporalidade bastante peculiar. A potência da clínica psicanalítica está ancorada, no meu entender, no pressuposto de que as marcas do passado podem ser rearticuladas ou mesmo inscritas a partir da experiência vivida com o analista no presente. A clínica psicanalítica propicia, portanto, condições para que o passado possa ser historicizado e ressignificado e para que surjam novas possibilidades de futuro para aquele sujeito.
Retomando o artigo de Mario Fuks (1998/99) que já mencionei, ele descreve o sujeito hoje como aquele que busca habitar um aqui e agora instantâneo, ao mesmo tempo que eterno. Eu poderia acrescentar que é um sujeito que tem muita dificuldade de se haver com a noção de processo. Para Fuks, vivemos num mundo acelerado em que “história e projeto como mediação simbólica e regulação narcísica vão desaparecendo.” (p. 70).
Seguindo ainda com Mario Fuks (1998/99), os ideais possibilitariam “abrir uma dimensão temporal em que a satisfação narcísica atualmente frustrada se visualizaria como realizável no futuro” (p. 65). O futuro se mostraria capaz de reparar as injustiças do presente. Quando nos é impossibilitado sonhar um futuro melhor, quer seja no âmbito dos indivíduos, quer seja no âmbito da coletividade, que efeitos isso teria?
De uma outra forma, Alain Badiou, filósofo francês, também toma a questão da temporalidade para abordar revoltas populares que surgiram nos últimos anos na Ucrânia e no Egito. Quando ele ofereceu, em 2014, o seminário a que tive acesso através de um artigo (Badiou, 2022), a Rússia ainda não havia declarado guerra à Ucrânia opondo-se à entrada deste país na OTAN. Ele trata do contexto histórico anterior à guerra. Para este autor, propaga-se que a revolta ucraniana é estática, na medida em que surgiu do nada e pretendia caminhar para algo que já existia, uma Europa livre e democrática. Segundo ele, poderíamos falar num presente genuíno quando ele tem passado, história e algo novo pode ser declarado para o futuro. Em suas palavras:
“Para que aconteça uma invenção da história, uma criação – isto é, algo dotado de uma verdadeira infinitude – é preciso que haja uma nova forma de declaração, estabelecendo uma aliança entre os intelectuais e grande parte das massas. Essa nova aliança não estava presente nas praças públicas[4]. Todo o problema é inventar uma modernidade diferente do capitalismo globalizado, e fazê-lo por meio de uma nova política”. Por infinitude, Badiou (2022) entende o infinito do “possível conjunto de horizontes da humanidade”. Por isso, para ele, a figura fundamental da opressão contemporânea é a finitude, o que eu penso que esteja relacionado à restrição do porvir conforme já apontado aqui através do trabalho de Mario Fuks.
A psicanálise não pode permanecer isenta do efeito de atordoamento que toma o campo social. Se, na passagem do século passado para o atual, emergiram as indagações que deram origem ao nosso curso e que se mantém vivas até os dias atuais, que reflexos as mudanças vividas no campo social trazem hoje para o campo da psicanálise? Indo além, qual seria a contribuição da psicanálise para que possa ocorrer uma verdadeira criação que amplie o conjunto possível de horizontes, num contexto em que o vivido possa ser narrado e historicizado?
O Departamento de Psicanálise do Sedes edita uma revista chamada Percurso. Convido vocês a visitarem a versão digital do número 66, publicado em junho de 2021. Creio que esse número da revista é bastante significativo a respeito do que ocorre no campo psicanalítico hoje. Entre os artigos da revista estão:
Identificação e transidentidade: noções para uma psicanálise intergênero e inter-racial, de Mara Caffé;
A linguagem do racismo e a psicanálise: falar com e falar sobre, de Tânia Veríssimo;
Édipo e Feminismo: tensões para serem sustentadas pela psicanálise, de Maria Carolina Accioly.
Neste número da revista há ainda uma entrevista com Patrícia Porchat que aborda os desafios que trazem à psicanálise as identidades trans.
Esse pequeno levantamento dá alguma ideia de como estão sendo incluídos no campo de intervenção e estudo da psicanálise temas que até há pouco tempo não eram seu objeto de reflexão. Se em 1998, ao criarmos o curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, este marcava, a partir da psicanálise, um posicionamento político e ético para fazer frente ao movimento dessubjetivante representado pelo avanço da psiquiatria medicalizante, hoje não podemos ignorar as denúncias a respeito da violência historicamente sofrida pelos negros, mulheres, povos originários e por aqueles que buscam novas formas de ser e de viver e não se encaixam nos padrões da heterossexualidade normativa. A psicanálise é convocada atualmente a pensar sobre os efeitos dessas formas de violência tanto na subjetividade daqueles que as sofrem como daqueles que as perpetuam.
Na história da psicanálise, no período entre guerras, uma agenda de justiça social já esteve bastante presente e ocupou um lugar importante dentro das instituições formadoras. Havia uma preocupação de ampliar o acesso à formação e ao tratamento psicanalítico, bem como um interesse de criar outras formas de contribuição da psicanálise no campo social. Essas iniciativas foram silenciadas e permaneceram ignoradas por muito tempo na história da psicanálise. Para quem tiver interesse na questão, sugiro a leitura do livro As clínicas públicas de Freud escrito por Elizabeth Ann Danto em 2005 e publicado aqui em 2019. Essa historiadora revela que, principalmente no período entre guerras (de 1918 a 1938), surgiram em diferentes Sociedades de Psicanálise, como nas de Viena, Budapeste e Berlim, uma série de iniciativas muito inventivas para possibilitar a formação de quem não pudesse custeá-la e para criar o que se denominam Clínicas Públicas. Só para terem uma ideia, chegou a ser inventada uma moeda interna, um voucher, que um candidato a analista recebia para atender pacientes não pagantes na Clínica Pública. Com essa moeda, de circulação interna, o analista em formação pagava sua análise e supervisão. Alguns analistas que não poderiam contribuir com seu tempo, poderiam contribuir doando dinheiro para a clínica pública. Quer dizer, inventavam ali um princípio novo de circulação de valores.
Voltando aos tempos atuais…
Miriam Debieux Rosa (2021), psicanalista de São Paulo, em carta lindíssima que passarei a vocês, dirige-se às/aos jovens psicanalistas hoje dizendo caber a elas/eles estarem atentas/os aos impasses subjetivos, sociais e políticos de sua época.
Para Debieux, a clínica é crítica, política e tem em seu cerne a transformação. Em consonância com o que estamos aqui dizendo, a clínica remete, para ela, a um “modo de operar no presente ressignificando o passado e mirando uma abertura para o futuro de cada sujeito e de cada sociedade”. Para ela, cabe ao psicanalista atual estar atento aos efeitos traumáticos causados pela distribuição desigual de lugares na estrutura social, bem como de bens materiais e culturais. Ao incluir esses elementos em sua escuta, o seu trabalho será de barrar a repetição monótona, automática e sem história desses traumatismos. Só a experiência temporalizada na relação com o analista, testemunha de seu sofrimento, possibilita que algo se transforme em uma marca passível de articulações – inscrição que permite reinventar a vida. Para isso, segundo Debieux, é necessário enfrentar os silenciamentos, os impasses à fala e à escuta para fazer dos marca-dores sociais marcas psíquicas que possam ganhar novos destinos diferentes daqueles escritos pelos mecanismos de poder, de submissão e de morte…
A proposta de “fazer dos marca-dores sociais marcas psíquicas” é ousada e requer sair de qualquer zona de conforto possível. Para nós, psicanalistas que trabalhamos com formação de psicanalistas, mesmo que tenhamos sido formados dentro de uma visão progressista na psicanálise, implicada com as questões de seu tempo, isso representa um enorme desafio. Assim, a partir de uma posição ética e política dentro da psicanálise, acreditamos que faz parte do projeto de transmissão que desenvolvemos convidar nossos alunos a pensar conosco nestas questões. A vivência de que tudo que é sólido se desmancha no ar é constante e é preciso apostar na possibilidade de criação, mesmo que nos sintamos perdidos em meio a isso. Acho que os jovens poderão ter um papel muito importante nesta construção. A interlocução com vocês, alunos, pode trazer-nos algum arejamento.
Além de encontrarmos formas de cantar em nossas próprias vans, podemos ter que ficar juntos em silêncio em alguma praça até que algo novo surja, ou podemos ir abrindo novos caminhos. Mas, para inventar futuros possíveis, é preciso levar em consideração o passado. Para dar um passo à frente, contamos com o pé que nos apoia atrás e, melhor ainda, se pudermos avançar de mãos dadas. Por isso resolvi incluir na aula de hoje referências à história do curso, assim como a contribuição de vários colegas e, em particular, aquelas do trabalho que Mario Fuks desenvolveu nos anos em que coordenou o curso.
A psicanálise que pensamos e praticamos tem um compromisso ético e político com seu tempo, mas a luta política requer outras ações fora do estrito âmbito da clínica. Indo nesta direção, neste ano o Sedes apresenta uma importante iniciativa no campo da política de reparação e ações afirmativas e inaugura uma proposta de cotas raciais. A proposta ainda é tímida, mas representa uma abertura de caminhos e está disponível para os alunos que ingressam neste ano. Cada curso conta com uma cota, podendo chegar a duas caso alcance o número máximo de alunos previsto. Tal proposta é fruto da busca de práticas políticas concretas que favoreçam a inclusão, a permanência e o desenvolvimento da população afrodescendente em lugares de saber e poder reservados quase exclusivamente a brancos. Constitui-se, portanto, como uma tentativa de quebrar o ciclo que faz perpetuar a distribuição desigual de poder, saber, oportunidades e renda.
Assim eu encerro por hora a minha fala ressaltando a importância de participarem do evento Políticas de cotas e letramento racial: uma questão para as instituições de formação psicanalítica, organizado pelo Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar (GTACME), grupo que vem estudando os efeitos do racismo nas relações intra e intersubjetivas e propondo ações de reparação no Sedes e no Departamento. O evento será realizado online, nos dias 18 e 19 de março de 2022.
15 de março de 2022
Referências Bibliográficas
Badiou, A. Falta um presente – a menos que a multidão declare (2014) in Lavraplavra, 3 de março de 2022. https://lavrapalavra.com/2022/03/03/falta-um-presente-a-menos-que-a-multidao-se-declare-alain-badiou-sobre-ucrania-egito-e-finitude/
Berman, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Birman, J. “A psicopatologia na pós-modernidade: as alquimias do mal-estar na atualidade”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, Vol II no.1 III/1999.
Birman, J. O trauma na pandemia do coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
Danto, E. A. As Clínicas Públicas de Freud: psicanálise e justiça social. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019.
Debieux Rosa, M. Carta aos/às jovens psicanalistas hoje. Revista Lacuna. 12 de dezembro de 2021. https://revistalacuna.com/2021/12/14/n-12-06/>
Freud, S. (1915) O instinto e suas vicissitudes. S.E.B. Rio de Janeiro, Imago, 1976. vol. XIV
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Marx, K. e Engels, F. (1848). O manifesto comunista. São Paulo: Paz e Terra, 2021
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Vieira, A. L. Languishing: o que é essa sensação de apatia que cresceu durante a pandemia? https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/06/10/languishing-o-que-e-essa-sensacao-de-apatia-que-surgiu-durante-a-pandemia.htm
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[1] Sou grata, também, pelo que aprendi sobre psicanálise, psicossomática, transmissão e trabalho em equipe, aos colegas do Curso de Psicossomática Psicanalítica do Sedes, com quem trabalhei entre 1996 e 2003, sendo sempre bem acolhida por um grupo muito generoso.
[2] Talvez seja possível aproximar essas ideias de Roussillon ao conceito de meta enquadre de René Kaës (2007).
[3] Languishing: o que é essa sensação de apatia que cresceu durante a pandemia? (2021).
[4] O autor referia-se às revoltas populares que ocorreram no Egito em 2011 e na Ucrânia em 2014.