Reflexões psicanalíticas sobre políticas de tolerância[1]
por Grupo de professores do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea[2]
Tem sido frequente emergirem atitudes de intolerância e radicalismo em vários âmbitos da nossa vida cotidiana. Notamos que estas situações se passam em grupos conservadores, com atitudes racistas, xenófobas, mas também ocorrem em grupos que se constituem em torno de uma identidade que os une, como os das feministas, os dos negros, dos homossexuais etc. São grupos formados para reivindicar um lugar de reconhecimento num cenário de exclusão social. Temos nos perguntado sobre o que se passa nestes agrupamentos que visam combater a intolerância e que, muitas vezes, a reproduzem. Que leitura podemos fazer, a partir da perspectiva psicanalítica, destes acontecimentos de intolerância?
Como exemplo, em julho deste ano, durante uma reunião composta por uma comissão de professores e alunos de uma universidade pública de São Paulo, houve uma discordância entre um professor e uma aluna integrante de um coletivo negro. Ao sair da reunião, este professor é esperado por membros deste coletivo que o hostilizam, chamando-o de racista. Eles filmaram a situação e divulgaram o vídeo na rede social, onde vemos o professor pedindo a palavra várias vezes e sendo impedido de falar. Após esta divulgação a faculdade redige um manifesto de solidariedade ao professor, que também circulou nas redes sociais.
Estes grupos visam obter conquistas que se relacionam à incrementação de políticas que assegurem um espaço cultural de não discriminação; também reivindicam maior segurança para situações de fragilidade social. Há uma busca legítima e necessária de conquistas em defesa de direitos negados pela situação de exclusão. Vladimir Safatle[3] analisa o surgimento destes grupos como uma resposta compensatória à insegurança social e civil que vivemos, ou seja, como uma reação à falta de direitos igualitários a todos os sujeitos.
Seguindo Freud, ele analisa que estes agrupamentos, que se ligam pela via das identificações no estabelecimento de laços amorosos, inevitavelmente giram em torno da questão da tolerância/intolerância, com seus efeitos de violência. É este um dos motivos que o faz pensar que a noção de identidade deveria ser usada por eles somente de forma estratégica e provisória.
Retomando a leitura freudiana sobre a constituição dos grupos pela via das identificações, Safatle enfatiza que a consequência desta ligação pelo amor cria, necessariamente, um campo de igualdade e outro de diferença, estabelecendo-se a criação de um nós e um eles. Com isto, surge a constituição de diferenças intoleráveis que são localizadas fora do grupo, na criação deste exterior a ser atacado: o inimigo. Ocorrem então embates identitários numa “dinâmica frágil de tolerância”[4], por se tratar de formações defensivas que se definem pela lógica da oposição, e, portanto, da exclusão.
Vemos então que formações grupais que se estabelecem em torno de vínculos amorosos seguem uma lógica binária: amor e ódio; iguais e diferentes; nós e eles.
Safatle também nos alerta para o risco de adotarmos uma política baseada na tolerância, pois: “é uma política que constrói um campo de diferenças toleráveis, o que alimenta o fantasma perpétuo da ‘diferença intolerável’”[5]. A questão que aqui se coloca, então, é a da diferença que precisa ser suportada.
A própria identidade é o que guia a visão do que é o diferente no outro. Cria-se um estranho que se localiza fora, em oposição a um mesmo, a um “idêntico”. É o que Freud nomeia como o narcisismo das pequenas diferenças.
Freud utiliza a noção do narcisismo das pequenas diferenças para pensar a tolerância/intolerância em suas formas individuais e coletivas. Concebe esta noção como sendo constitutiva da formação do eu, cuja função é a de preservar o narcisismo da unidade em relação ao estrangeiro. Portanto, é da ordem do inerradicável. O narcisismo das pequenas diferenças se manifesta como angústia frente a uma pequena diferença no outro que é vivenciada como o estrangeiro inesperado. Betty Fuks analisa que “quando levado ao paroxismo, desemboca na segregação e no racismo, expressões máximas da intolerância ao outro e tolerância ao mesmo.”[6]
Nesta medida, a tolerância é o outro lado da moeda da intolerância, motivo pelo qual Safatle entende que as políticas baseadas na tolerância não têm a capacidade de ser uma força transformadora. Assim, pensamos que ela tem a função de encobrir o conflito.
E como podemos então encontrar uma saída para a intolerância e sua consequente violência? Freud nos situou muito bem em relação ao funcionamento das massas, mas também sabemos que existem outros tipos de formações grupais, cujas diversidades e singularidades podem ser contidas no interior do próprio grupo.
Safatle sugere que o próprio Freud aponta uma possibilidade de saída deste impasse através da noção de desamparo:
“Freud pôde nos mostrar como uma política realmente emancipatória, de certa forma, funda-se na capacidade de fazer circular socialmente a experiência de desamparo e sua violência específica, e não de construir fantasias que nos defendam dela. Pois a política pode ser pensada enquanto prática que permite ao desamparo aparecer como fundamento de produtividade de novas formas sociais, na medida em que impede sua conversão em medo social e que nos abre para acontecimentos que não sabemos ainda como experimentar.”[7]
Como sabemos, se Freud concebe o desamparo, no início da sua obra, como situação objetiva de insuficiência psicomotora do recém-nascido que necessita da entrada do outro, a teorização avança no sentido de pensar o desamparo como uma condição do próprio psiquismo em sua falta de garantias, que não pode ser superada.
Na leitura de Mario Eduardo Costa Pereira[8], Freud desacidentaliza a noção do desamparo ao dissociá-lo do evento traumático e situá-lo como algo necessário, não acidental, intransponível – e, também, fundamental do funcionamento psíquico. Assim, o desamparo diz respeito a um inesperado, um desconhecido, na medida em que implica em algo que não está pré-determinado, algo do não-representado.
Safatle introduz a ideia de que o alargamento da esfera política pode dar-se pela forma produtiva de lidar com o desamparo, neste enfrentamento da indeterminação. E é por esta via do desamparo que o autor propõe que a experiência política pode se dar como algo renovador. Diante dele o sujeito é convocado a lidar com algo que não se liga ao seu repertório conhecido. Frente a ele pode-se ter várias respostas: por um lado, a paralisia e o pânico, mas, por outro, uma resposta nova e criativa. Como Safatle diz:
“A compreensão de tal produtividade do desamparo permite que, dele, apareça um afeto de coragem vindo da aposta na possibilidade de conversão da violência em processo de mudança de estado. Algo dessa coragem anima a experiência psicanalítica.”[9]
Esta forma produtiva de lidar com o desamparo implica na acolhida do estranho a uma identidade determinada, à ordem do inédito, aquilo que não depende de um predicado do ser, como por exemplo: “ser estudante”. Em uma entrevista com um estudante secundarista, lhe perguntam quem ele é, e ele diz; “eu não sou ninguém”, apontando que ele se guia por outra direção. Assim, ao estar despossuído do predicado, cria-se uma igualdade de outra ordem. É uma aposta na política que não se apoia nas diferenças culturais, mas sim na abolição das diferenças, na sua igualdade radical, numa potência de despersonalização. Safatle propõe, assim, um outro tipo de reconhecimento, que seria o antipredicativo, como diz:
“Falar em ‘reconhecimento antipredicativo’ só́ faria sentido se pudéssemos afirmar a necessidade de algo do sujeito não passar em seus predicados, mas continuar como potência indeterminada de força de indistinção.”[10]
Nesta linha sugere que haja uma des-institucionalização que vise à criação de campos de indiferenças culturais. Como exemplo disto, pensa na des-institucionalização do casamento que se daria pela eliminação da legislação sobre os vínculos afetivos. Acredita que o tipo de laço matrimonial não é de ordem jurídica, somente o que diz respeito às questões econômicas seriam pertinentes a esta.
Para ele então, “…a verdadeira política está sempre além da afirmação das identidades, sejam individuais ou coletivas. Ela se inscreve em estruturas sociais amplas, modalidades antipredicativas de reconhecimento que encontram sua manifestação em dimensões sociais da linguagem e do desejo[11]. (…) “Trata-se aqui de defender a hipótese de que a política des-identifica os sujeitos de suas diferenças culturais, ela os des-localiza de suas nacionalidades e identidades geográficas, da mesma forma que ela os des-individualiza de seus atributos psicológicos.”[12]
Mas será́ que é viável, em termos práticos da vida, a eliminação do predicativo? Este reconhecimento de ordem antipredicativa?
A filósofa política Chantal Mouffe[13] nos aponta um caminho nesta direção. Ela critica a forma como a democracia se estabelece na busca do consenso racional. Afirma que a sociedade democrática vive em dissenso e a atual teoria política dominante não capta as diferentes formas de antagonismos. Considera que a ideia do estabelecimento de uma democracia plena é impossível, indicando que a consequência de uma democracia estabelecida pela busca de um consenso é necessariamente a exclusão e silenciamento das vozes dissidentes.
Para ela, é inevitável que se crie, em termos políticos, um nós e um eles. A questão central é a forma de lidar com esta dualidade, sem tomar o eles como inimigos, mas sim como adversários. A distinção entre inimigo e adversário se dá pelo fato de que o inimigo precisa ser destruído e o adversário é aquele com quem luto, mas a luta é de ideias e reconheço a legitimidade de o adversário defender suas ideias. Assim, para ela, há uma outra forma de lidar com estas diferenças que não somente pela lógica da oposição. Pensamos que ela introduz uma outra lógica que não só́ admite a contradição, mas parte dela como uma condição. Como ela nos diz:
“Aceitar que apenas o hibridismo nos cria como identidades separadas pode contribuir para dissolver o potencial da violência que existe em cada construção de identidades coletivas e criar as condições para um verdadeiro ‘pluralismo agonístico’. Tal pluralismo está ancorado no reconhecimento da multiplicidade de cada um e das posições contraditórias a que esta multiplicidade subjaz. Sua aceitação do outro não consiste meramente em tolerar as diferenças, mas em celebrá-las positivamente porque admite que, sem alteridade e o outro, nenhuma identidade poderia se afirmar”.[14]
Se pensarmos no movimento dos estudantes secundaristas iniciado em São Paulo, podemos observar que eles não são guiados pelo predicado de “serem estudantes” e sim estão norteados por um projeto mais amplo de ocupar um lugar de cidadãos. Lembramos que este movimento se iniciou como protesto ao anúncio de reorganização escolar estabelecido pelo Governo do Estado de São Paulo, sem prévia consulta dos envolvidos, dentre eles os principais interessados, os alunos. Agora este movimento está em outras localidades do Brasil.
Logo após o recente episódio da morte de um aluno em uma das escolas ocupadas no Paraná́, a Assembleia Legislativa recebeu representantes de um movimento estudantil contrário às ocupações e no dia seguinte recebeu a estudante paranaense Ana Júlia Ribeiro, de 16 anos que defende a ocupação. Ela começa sua fala dizendo que está lá́ para conversar com os deputados sobre o movimento de ocupação nas escolas e inicia seu discurso perguntando de quem é a escola. Parte daí para afirmar a legitimidade do movimento dos estudantes que lutam por um ideal, que é o da educação e do conhecimento. Relata as dificuldades deste processo e dá o seu testemunho de que deixaram de “ser meros adolescentes, para se tornarem cidadãos’. Faz menção ao velório do colega morto na escola e diz que a sociedade, o Estado e a família têm responsabilidade sobre os jovens. Convida a todos os deputados a visitarem a escola, para conhecerem de perto as suas propostas.
Vemos como se produz aí um ato político no qual a luta tem seu lugar num dizer que se apropria de suas ideias e ideais. Aqui vemos que ocorre na prática o que Chantal nomeia de uma luta entre adversários.
Para Peter Pelbart, os secundaristas estão vivendo uma experimentação que vai muito além das reivindicações de melhoria de ensino, analisando como “seus protestos tangenciaram uma recusa da representação (ninguém nos representa, ninguém pode falar em nosso nome, nem sequer alguém de nós que pretendesse ser nosso representante)”[15] mas, segundo sua leitura, eles buscam também novas formas de vida que não as dominantes e determinadas. Portanto, podemos apontar que é uma experiência criativa e nova que surge no cenário político.
Pelbart também analisa como para além das reivindicações, que podem ou não ser satisfeitas, surge um desejo coletivo de ter bens comuns. Como diz:
“Falamos de um desejo coletivo, onde se tem imenso prazer em ocupar coletivamente um espaço antes policiado, em ir à rua juntos, em sentir a pulsação multitudinária, em cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos, e apreender um ‘comum’ que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a conexão produtiva entre os circuitos vários, com a inteligência coletiva, com uma sensorialidade ampliada, com a certeza de que a escola deveria ser o coração de uma sociedade, e não seu apêndice agonizante. Assim como em 2013 alguns sustentaram que o transporte em São Paulo deveria ser um bem comum, assim como na Turquia os jovens consideraram que o verde da Praça Taksim em Istambul era comum, assim como o deveria ser a água, a terra, a internet, as informações, os códigos, os saberes, a cidade, de modo que toda espécie de privatização e enclosure na sua versão atual constitui um atentado às condições da produção contemporânea, que requer cada vez mais o livre compartilhamento do comum.”[16]
Abre-se espaço para o desejo de que a política possa se afirmar como conquista do bem comum, na sua igualdade radical, igualdade política de todos terem acesso ao bem comum independentemente de quem são. Assim esta igualdade que é para todos comporta as singularidades.
Se concebermos que o desejo coletivo se afirma a partir do desamparo, como podemos sustentar esta perspectiva desejante convivendo com as identidades culturais, considerando que as identidades mais estabelecidas nos separam?
A identidade cultural pode manifestar-se ao mesmo tempo em que exista uma abertura do campo político para uma igualdade comum, mas como algo que se mantém num conflito permanente. Como exemplo disto, Mouffe[17] sustenta que o feminismo precisa estar articulado à construção de um projeto mais amplo, articulado a outros grupos que visam à igualdade de direitos. Vemos que esta articulação já é realizada em alguns movimentos de mulheres que vão além dos grupos feministas, para se manifestarem como a “população de mulheres”. Por exemplo, como aconteceu recentemente com as mulheres na Islândia, que paralisaram seu trabalho no dia 24 deste mês para protestarem contra a desigualdade salarial em relação aos homens. Ou como na passeata das mulheres na Polônia que protestaram contra a lei total do aborto e conseguiram um recuo na legislação ou também na marcha conjunta de mulheres palestinas e israelenses pela paz e mais tantos outros movimentos que também ocorrem no Brasil.
Seguindo então a proposta de Safatle de que a ação política se dá a partir do desamparo e de uma ‘ação de desabamento’, entendemos que a saída para o binômio tolerância/intolerância se dá pela criação destas experiências coletivas inéditas que geram novos possíveis no campo da reflexão e da ação.
Outubro 2016.
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[1] Trabalho originalmente apresentado por Adriana Morettin no evento entretantos de 2016.
[2] Curso do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, cujos integrantes são: Adriana Victorio Morettin, Aline Eugenia Camargo, Ana Lúcia Panachão, Helena Albuquerque, Márcia de Mello Franco, Mario Pablo Fuks (coordenador), Mania Deweik, Marli Vianna, Nayra Ganhito, Tatiana Inglez-Mazzarella. Psicanalistas, membros do Departamento de Psicanálise.
[3] Safatle, V. O circuito dos afetos, São Paulo: Cosac Naify, 1ª edição, 2015.
[4] Idem, p. 349.
[5] Idem, p. 350.
[6] Fuks, B. B. O pensamento freudiano sobre a intolerância, Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol.19, n.1, p.59-73, 2007, p. 61.
[7] Safatle, V., op. cit., p. 67.
[8] Pereira, M. E. C. Pânico e desamparo: um estudo psicanalítico. Editora Escuta, 2008.
[9] Safatle, V., op. cit., p. 74.
[10] Idem, p. 358.
[11] Idem, p. 364.
[12] Idem, p. 354.
[13] Mouffe, C. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. Revista Política & Sociedade, n. 3, pp.11-26 – outubro de 2003.
[14] Idem, p. 19.
[15] Pelbart, P. Tudo o que muda com os secundaristas. http://outraspalavras.net/brasil/pelbart-tudo-o-que-muda-com-os-secundaristas, 13/05/2016, p. 3/4.
[16] Idem, p. 4/4.
[17] Josadac Bezerra dos Santos, Chantal Mouffe e a filosofia política. Revista Cult, edição 133.