Que interrogantes as chamadas psicopatologias contemporâneas trazem ao campo da psicanálise?[1]
por Equipe do curso Psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea[2]
Hoje fazem parte do grupo de professores do curso: Adriana Morettin, Ana Lucia Panachão, Ana Maria Leal, Helena Albuquerque, Mario Fuks (coordenador), Mania Deweik, Marli Ciriaco Vianna, Nayra Cesaro Penha Ganhito, Renata de Azevedo Caiaffa, eu (Márcia de Mello Franco) e Aline Camargo Gurfinkel, que acaba de se juntar ao grupo. Falo em nome do grupo através deste texto que elaboramos conjuntamente.
Nosso curso foi criado no final da década de 90 a partir do entrecruzamento de diversas linhas de questões.
Na época oferecíamos no Sedes o curso Psicoses: concepções teóricas e estratégias institucionais. Neste curso, pudemos acompanhar junto com nossos alunos o desmonte de equipes de trabalho e redes que proporcionavam o processamento da clínica com as psicoses e outras formas de grave sofrimento psíquico. As práticas em Saúde Mental implementadas em São Paulo no início da década de 90, na gestão Erundina, que se viam ameaçadas naquele momento, eram marcadas pela valorização do trabalho coletivo e de modos coletivos de processar a clínica.
Nós nos perguntávamos então sobre as consequências nos tratamentos das mudanças nas políticas públicas, o que nos levou a refletir sobre os efeitos dessubjetivantes da redução dos espaços grupais.
Por outro lado, observávamos a insistência com que compareciam na clínica e ganhavam destaque na mídia uma sintomatologia agrupada e nomeada pela psiquiatria como Síndrome do Pânico, Depressões, Transtornos alimentares, Distúrbios do Sono e Toxicomanias. Tais figuras clínicas eram apresentadas como “novidades” diagnósticas e psicopatológicas. Para nós as chamadas “psicopatologias contemporâneas” suscitavam questões sobre em que medida estes quadros expressavam novos modos de produção de subjetividade ou consistiam em novas roupagens para problemáticas já́ estudadas na psicanálise. Buscávamos formas de articular os modos como se apresentava o sofrimento psíquico e as rápidas transformações que então atravessavam a vida social, o que significava incluir em nossa reflexão o impacto do desenvolvimento tecnológico, do capitalismo avançado e os novos laços sociais presentes na sociedade de consumo e do espetáculo.
Entendíamos ainda que o destaque que adquiriam estas patologias relacionava-se com o avanço de práticas psiquiátricas medicalizantes amparadas na lógica do DSM. Nesta corrente, hoje hegemônica na psiquiatria, as questões do sujeito ficam eclipsadas e o sofrimento psíquico é de certa forma naturalizado ao ser considerado como de origem orgânica.
Não podíamos deixar de escutar que o que acontecia no modo de pensar as psicopatologias e no funcionamento da vida cotidiana apontava para mudanças no laço social com efeitos dessubjetivantes.
Esses interrogantes eram fundamentais para nos posicionarmos na contramão do objetivismo pragmaticista, que esvaziava e ainda esvazia cada vez mais o pensamento psicopatológico tão caro à psicanálise. Trabalhando de forma complexa os campos a que se referem essas patologias, concebemos um curso que implicasse na formulação de hipóteses a respeito do funcionamento psíquico subjacente às manifestações estudadas, recolocando a importância do pensamento psicopatológico psicanalítico e sua metapsicologia. Este modo de trabalhar nos exigiu, e exige, debruçarmo-nos sobre as manifestações fruto dos processos dessubjetivantes desta época. Isto requer um trabalho de re-leitura dos conceitos já́ existentes e a criação de novas articulações teóricas a que estes novos tempos nos remetem. A leitura atenta de psicanalistas contemporâneos está por isso no dia a dia de nossas ocupações. As patologias do ato, por exemplo, assim como as que se referem ao “protótipo sadio” da época, nos desafiam em nossa clínica cotidiana e no trabalho que escutamos de nossos alunos nos serviços públicos, privados institucionais ou práticas de consultório.
Montamos o curso nos valendo de algumas figuras clínicas que predominam no discurso psiquiátrico. Nós as tomamos, no entanto, não como entidades nosológicas naturais, mas como representantes do mal-estar da época, para recuperarmos o pathos, entendido como o sofrimento que, ao ser escutado, pode ser transformado em experiência.
Procuramos ainda criar um curso cujo funcionamento fosse condizente com nossas preocupações, dando ênfase aos espaços coletivos de elaboração, tanto com os alunos quanto entre os professores.
Um desafio que encontramos em nossa tarefa de transmissão refere-se ao fato de que, embora o critério de admissão dos alunos seja que tenham experiência clínica e percurso teórico prévio em psicanálise, sua condição costuma ser bastante heterogênea. Alguns alunos têm pouco tempo de formados e outros já́ realizaram uma formação psicanalítica que mobiliza seu interesse na temática do curso. Entre aqueles com maior percurso na psicanálise, encontramos ainda distintas perspectivas teóricas. Isto exige de nós um constante esforço de criação de uma linguagem compartilhada e de estratégias para dar conta, ao mesmo tempo, da complexidade da proposta do curso e dos subsídios necessários para sua abordagem.
Trabalhamos com uma série de módulos teóricos e um espaço de supervisão durante todo o curso. Os módulos teóricos partem de uma dada “entidade nosológica” nomeada como tal pela psiquiatria, mas nosso trabalho é de desnaturalização e desconstrução dessas formas de sofrer, aliás sempre tomadas no plural: depressões, anorexias, toxicomanias, etc. No primeiro ano o curso se inicia com o módulo Demanda Clínica e Psicopatologia Psicanalítica, sendo seguido dos módulos sobre Depressões e Pânico. No segundo ano são oferecidos os módulos sobre Distúrbios do sono, Toxicomanias e Anorexias e Bulimias.
No primeiro módulo partimos do modelo da compreensão dos sintomas que surgiu com a abordagem da histeria e que deu origem à psicopatologia freudiana baseada nos conceitos de conflito e defesa, para depois problematizar a questão das chamadas “psicopatologias contemporâneas”. O conceito de narcisismo nos parece imprescindível na reflexão sobre as patologias que vão além do campo de abrangência inicial da psicanálise. Tomamos ainda o conceito de ideal como um ponto da teoria que permite articular as dimensões coletivas e individuais da subjetividade.
Este movimento de retomar conceitos fundamentais da psicanálise para avançar na reflexão sobre as patologias que estudamos e, ao mesmo tempo, problematizar o instrumental teórico de que dispomos, está presente ao longo dos demais módulos. No módulo de Anorexias e Bulimias, por exemplo, o percurso que tem sido feito as situa como manifestações que podem acontecer no campo das neuroses, das neuroses narcísicas ou das psicoses. Para tanto, a escuta clínica é fundamental. Nosso estudo passa pelos textos freudianos sobre a sexualidade feminina, sobre o complexo de Édipo e sobre os conceitos de oralidade, incorporação, acting out e passagem ao ato. Uma inquietação que todo ano nos ocupa é conseguir transmitir o trabalho sobre as questões do primário e do arcaico que não de forma desenvolvimentista. Outra inquietação são os desafios que a clínica tão atravessada por acting out e passagem ao ato nos traz, requerendo rigor de teorização e criatividade nos manejos transferenciais.
Estes questionamentos acerca das patologias do ato estão presentes também no módulo das Toxicomanias. Estes quadros, em que temos que nos haver com a materialidade dos efeitos das substâncias químicas no corpo, situam-se aparentemente nas bordas do campo psicanalítico, mas, dependendo do enfoque, nos trazem interrogações importantes sobre as questões das passagens (somático/psíquico; dentro/fora; eu/outro) e podem ser situadas num contexto de fracasso destas passagens. O estudo das toxicomanias oferece, portanto, um rico campo de investigação de aspectos importantes da teoria psicanalítica. O conceito de pulsão, sendo concebido por Freud como exigência de trabalho ao psíquico com fonte somática (Freud, 1915,1980), torna-se nesta perspectiva um conceito fundamental na articulação teórica e no trabalho de transmissão com os alunos. Para avançar na reflexão retomamos este conceito já́ trabalhado em outros módulos sempre com a ênfase na importância do outro na montagem da pulsão e dos circuitos pulsionais. Pensando ainda na questão das passagens, detemo-nos nos conceitos de incorporação, introjeção e identificação, já́ abordados desde o primeiro módulo e que ganham relevo nos módulos de Depressões, Transtornos alimentares e Toxicomanias.
Com relação à supervisão, o trabalho é desenvolvido por um mesmo professor ao longo do ano. O material trazido pelos alunos pode provir tanto da prática em consultório como também de um contexto de clínica ampliada, seja ela institucional ou não. Nosso foco na supervisão está na escuta do que trazem os alunos e não na preocupação de ilustrar com os casos aspectos da teoria abordados nos módulos.
Temos encontrado uma enorme riqueza no material trazido pelos alunos, o que reflete a complexidade e diversidade do campo atual de trabalho (além do trabalho em consultório, encontramos, por exemplo, trabalhos de AT, trabalhos junto a estratégia de saúde da família, trabalho em brinquedoteca, trabalhos em ONGs voltadas para população em situação de rua etc.). A experiência de supervisão grupal tem nos possibilitado ainda acompanhar o enriquecimento da capacidade de escuta dos alunos, o que é bastante gratificante.
O momento de apresentação dos trabalhos escritos, elaborados pelos alunos ao final de cada ano, tem se mostrado também bastante proveitoso ao possibilitar que sua produção seja compartilhada e discutida pelos colegas e professores.
Durante esses anos fomos de diferentes formas tentando construir possibilidades de interlocução entre nós e com outros psicanalistas do Departamento. Temos uma prática no grupo de professores em que um professor pode assistir ao módulo do outro e com isto fornecer uma interlocução e aprender com seu colega. Podemos também convidar outros professores, do nosso corpo docente ou outros colegas do Departamento, para ministrar alguma aula específica nos módulos teóricos.
O espaço privilegiado de trocas entre nós é, entretanto, a reunião semanal dos professores. Nossas reuniões se configuram como um espaço de planejamento e organização do curso, mas também como um espaço de estudos e elaboração de nossa experiência. Este modo de funcionar vem desde o curso de Psicoses e acreditamos ser uma especificidade de nosso grupo. O grupo de professores funciona para seus pares como uma espécie de espaço de ressonância para o que se passa nos grupos de alunos e também com relação a nosso grupo de pertinência, o Departamento de Psicanálise. Contamos com os colegas para processar, por exemplo, algum conflito surgido em um dos grupos de trabalho do curso ou mesmo para pensar em estratégias que favoreçam o desenvolvimento da tarefa. Da mesma forma, é neste espaço que compartilhamos nosso espanto e nossa reflexão acerca de acontecimentos presentes na cena social e que tomamos como analisadores do que se passa na contemporaneidade.
Com o objetivo de compartilhar e ampliar a reflexão dos temas que estudamos junto a outros colegas do Departamento, criamos, em 2001, o grupo de trabalho e pesquisa Psicanálise e Contemporaneidade. Com o passar do tempo este grupo, que já possuía um funcionamento horizontal, foi tomando um rumo próprio e autônomo em relação ao curso.
Nosso esforço de realizar um trabalho coletivo no processamento das questões que a temática do curso aborda diz respeito a nossa preocupação de sermos éticos em relação àquilo que propomos e da importância que conferimos ao trabalho grupal como favorecedor dos processos de subjetivação. Tentarmos colocar para conversar, por exemplo, Freud, Winnicott, Lacan, Green, entre outros autores, não é tarefa fácil. Procuramos processar as diferenças entre os autores e também entre nós para que diferenças não resultem em cisões, verdades absolutas e modos autistas de funcionar.
Justamente por isso, agradecemos aos idealizadores desta iniciativa que também põe para conversar os diferentes trabalhos existentes neste conjunto de psicanalistas plural e rico que temos no nosso Departamento. Agradecemos também a feliz escolha do nome Entretantos.
Referências bibliográficas
Freud, S. (1980) O instinto e suas vicissitudes. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 14, p.142). Rio de janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).
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[1] Trabalho originalmente apresentado por Marcia de Mello Franco no evento entretantos de 2014.
[2] Adriana Victorio Morettin, Ana Lucia Panachão, Ana Maria Siqueira Leal, Helena M. Albuquerque, Márcia de Mello Franco, Mario Pablo Fuks, Mania Deweik, Marli Ciriaco Vianna, Nayra Cesaro Penha Ganhito e Renata de Azevedo Caiaffa. Coordenador: Mario Pablo Fuks.