O samba da transmissão
por Déborah de Paula Souza[1]
Diz o velho sambista:
entregará o seu anel de bamba
a quem mereça usar.
Eu quero esse anel.
Praticamente tudo o que tenho me foi ofertado. O que não foi, eu roubei. Ou então inventei minhas riquezas e faltas, com retalhos dos presentes e dos ferimentos. Eis um modo de possuir e aprender: receber a dádiva, devorá-la ou roubá-la. (Vale também para desditas e desastres que reverberam em toda gente, por gerações).
A transmissão – com seu prefixo trans, sua missa e sua missão – consiste numa espécie de circulação. Tem a ver com trânsito, transe, transação e código. Nem toda transmissão se decifra de imediato. Uma parte é DNA e ele foi decodificado. A ciência tem seus assombros. Mas agora alguém me explique: os olhos pretos, a avó portuguesa com olheiras, os mouros, a embarcação, a coruja com faróis amarelos vigiando a noite. Que sequência é essa?
Uma breve história familiar: enquanto meu avô trabalhava como operário na estrada de ferro sorocabana no interior de São Paulo, minha avó enxergou pequenos números lavrados a ferro na lateral da máquina de costura e jogou no bicho. Rezou e ganhou o jogo. Deste modo, conseguiu alimentar os filhos durante uma temporada. Depois, a avó tornou-se abstrata: enxergava bichos nas nuvens do céu, ganhou diversas quantias no jogo ao longo da vida. Nada muito exagerado. “Eu só ganho o necessário”, ela dizia, pois passou necessidades. Sou sua neta e também vejo bichos nas nuvens e até um santo, montado num dragão, na lua cheia. Porém não ganho apenas o necessário. Ganho mais. Afortunadamente, acumulo histórias, as minhas e outras que me contam, as do cinema, consultório, vizinhança, podcasts, viagens e por aí afora. (Aí afora são as minhas mil e uma noites, um modo de não morrer).
Para os místicos, a transmissão é de ordem iniciática. Na cabala, grande ênfase é dada à possibilidade de receber o que foi transmitido. Em muitas tradições, os oráculos têm a função de traduzir as mensagens dos deuses e dos sábios, para que elas cheguem aos destinatários. É com o dom das palavras que se constrói essa ponte hermética – ligada a Hermes, deus grego, ou Mercúrio, na versão romana. São eles os deuses mensageiros, que transitam entre mundos, padroeiros da comunicação, dos viajantes, ladrões e comerciantes. Mas a possibilidade de receber e absorver também aparece na perspectiva científica e profana, como assisti na live da nutricionista: não basta selecionar o bom alimento e comer, é preciso estar pronta para a absorção. Ah, como eu quero estar pronta para a absorção! Não falo só do cálcio do iogurte, fortalecedor do esqueleto, mas de conhecimentos que pudessem acolher meus ossos: conhecimentos da vida, do amor e da morte.
O gato no sol absorve o calor, a semente absorve a luz. A fotossíntese é natural. Tudo o que parece natural é na verdade um escândalo. Sei lá de onde absorvi essa ambição de pegar o anel do poeta que fez do amor de transmissão um samba popular: (…) “Antes de me despedir/deixo ao sambista mais novo/ o meu pedido final/ não deixe o samba morrer/ não deixe o samba acabar. (…) O meu anel de bamba/ entrego a quem mereça usar (…)”[2]
Uma pergunta: se eu me apoderar das palavras, ou desse modo de respirar de um poeta, encadeando e suspirando de outro jeito, aquilo tudo será meu ou dele? Não se herdam palavras como se herdam olhos castanhos e, mesmo quando isso acontece, elas não se revelam de imediato. (A letra viva é mais complexa do que o jogo de bicho, a etimologia das nuvens, o toró, a torah e o samba de breque). Imagine então a transmissão de uma língua. No céu da boca. Uma língua crua ou queimada. Da boca para fora e para dentro. Uma língua de beijo, de falantes, de mudos e de mudas. A língua-chama, chamada materna ou estrangeira. Mas não evocarei a mãe morta e sim a língua morta. As notícias do último falante dessa língua à míngua. Quase sempre um indígena. Agora alguém me explique o elo de transmissão que reverberou nos meus endereços na zona oeste de São Paulo: rua Tucambira, Cotoxó, Icoarana e Acopiara. Nós moramos nessa aldeia. No entanto, o que é preciso saber, qual cântico entoar para absorver esta palavra: genocídio. Não se absorve isso sem morrer. E essa parte que morre em nós, não sabemos o que fazer com ela.
Professores, poetas e garrafas no mar
Uma torrente de pensamentos traz meus professores e minhas professoras à beira desta crônica. Todos eles, desde os que me orientaram quando eu era criança até os recentes, os dos seminários online da pandemia, incluindo minhas professoras de corpo – elas que, há tantos anos, me preparam para a absorção do prana, do passo, do ritmo e do alívio da dor. Gente que sabe coisas de omoplatas e ísquios. Mas também outros mestres e a vertigem necessária para eu receber o impacto disto: o corpo docente. Sim, o corpo docente: que expressão é essa? Que idioma, que arrebatamento de amor. Sigamos assim. Na trans-missão do amor. A transmissão é um sim, é o OM dos hindus, com sua fumaça cheirosa fazendo mediação com os deuses de nomes sibilantes como Shiva, o bailarino, que fabrica, destrói e regenera o mundo enquanto dança. Eu queria saber ler e dançar o baile inteiro, eu queria saber absorver, eu queria agradecer a dádiva. O sagrado sempre me deixou quieta.
Quanto ao Freud, me deixa inquieta. Sinceramente, não sei como me transmitiram essas portas abertas para o mar. A terapia pela palavra, só posso assimilar em sonhos. Então é Isso. Vou sonhar que Freud tem um encontro marcado, não comigo, com nosso ancestral de barbas brancas, Walt Whitman, que nos disse: “Nenhuma palavra mais que não seja uma palavra de amor.” Os velhos e as velhas que eu amei, eu os amarei para sempre. Assim aprendi. Não me lembro com quem. Tem muita coisa de amor sem autoria. São conchas e algas e correntes marítimas. Aprende-se.
No arquivo mundano, sigo analógica e obtusa, mas não completamente. Testei o ponto do escriba. Recebi a transmissão e repasso a mensagem: a corrente, a notícia, a passagem, a garrafa no mar, o bilhete enovelado, a profecia dos mortos, a sequência do genoma, nosso parentesco com chipanzés e bonobos, sem contar aquele livro da antropóloga que, por sua vez, recebeu o beijo do urso. Ele arrancou um pedaço de sua mandíbula e, em troca, lhe deu parte de sua intuição farejadora de bicho[3]. A missão de transmitir/receber ocorre quando menos se espera. O acaso, seria ele também um professor?
Isso tudo, livros e mestres, ursos e símios, reúnem-se em volta da fogueira acesa das minhas lembranças, onde bailam como ciganos os professores que sempre souberam da sua missão e aqueles outros, que ensinam sem saber. Como é largo o rio do saber, a pulsão, o circuito da escuridão e do esclarecimento, a reverência à biblioteca e seus guardiões, como o escritor argentino que morreu cego vendo tudo, ou a brevíssima iluminação de um hai-kai: o máximo da condensação na grama do ideograma. Meu devaneio de aprendiz persegue um sonhador da Áustria com discípulos em Budapeste, um sábio da China, uma bruxa, um xamã, um animal de poder, um dialeto esquecido, os encantados da floresta. Meu devaneio de aprendiz persegue a nuvem da minha avó que leva à sorte da fortuna e sua roda que, aqui e agora, me ensinam: tudo absorver e tudo soltar, permanecer vazia como um pote na recepção da água, mimetizando insetos na operação de coleta e espalhamento de pólen, em suas conjecturas com o vento.
Recebo esta ventania. Transmite-se para que as coisas sigam nascendo.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste boletim online.
[2] Não deixe o samba morrer/ canção de Edson Gomes Conceição e Aloísio Silva.
[3] Referência ao livro Escute as Feras, de Nastassja Martin, Editora 34.