Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Psicanalistas que falam – Para além das quatro paredes

por Quelany Vicente[1]

A psicanálise é um ofício que costuma ocorrer entre quatro paredes, numa relação íntima entre analista e paciente e por isso de maneira bastante privada.

Para que esse campo de conhecimento fosse desenvolvido, organizado e divulgado sempre foi necessária generosidade. Seja na própria prática de se abrir ao outro e escutá-lo da maneira mais aberta possível, até o compartilhar das experiências e a elaboração em técnicas e métodos.

Estudar psicanálise é então quase um desvendar – de saberes consolidados ou do dia a dia da clínica. E por isso a importância de projetos de difusão desse conhecimento.

Este é o principal objetivo de Psicanalistas que Falam: democratizar o conhecimento da área. Em uma série que traz, a cada episódio, um psicanalista falando em associação livre sobre algo de seu desejo. Em geral são as próprias trajetórias atravessadas pela psicanálise, resultando na apresentação da psicanálise atravessada por essas trajetórias.

Um espaço para estudantes e atuantes refletirem sobre o ofício, numa posição irreverente, em que se ouve daqueles que justamente costumam ser apenas ouvintes. Aqui os ouvintes deles somos nós.

Criada por Heidi Tabacof e Lúcia Lima em 2016, a websérie conta atualmente com nove episódios, todos completamente abertos e acessíveis (disponíveis em www.psisquefalam.com).

Heidi, mesmo sem a presença da companheira Lúcia (falecida em 2020), seguiu na direção e produção do projeto, fazendo convite a pares com quem tivesse alguma transferência – parceiros de vida, de projetos, de espaços.

Com eles forma-se um mosaico de diferentes psicanálises, abordagens, percursos.

Começamos com Antonio Lancetti (episódio #1), experiente pelo trabalho em clínicas, hospitais, iniciativas públicas, que já questiona as possibilidades de setting:

“É preciso meter o pé na lama, entrar onde ninguém te chama, atravessar o limiar entre a liberdade e a demanda (…) Você pode criar dispositivos analíticos em qualquer lugar, porque é só o cara ir lá e ressignificar a sua história que você está fazendo análise”.

Suely Rolnik (episódio #8), com a força e irreverência de saberes diversos – da esquizoanálise, passando pela biologia, cultura indígena, artes até a filosofia e a política – também reforça:

“A potência política própria do dispositivo psicanalítico – que é uma potência micropolítica, porque é nesse campo que ele interfere – ela nos fornece um dispositivo capaz de intervir nesse campo que vai muito além do consultório. E com isso eu não tô querendo dizer do além do consultório com classe média alta que serve também pra outras populações. Mas é uma perspectiva de leitura e intervenção na realidade em todos os planos da vida social”.

Por suas múltiplas vivências, tanto como psicanalista quanto como escritora e com isso comunicadora da psicanálise, Maria Rita Kehl (episódio #3) também articula pensamentos particulares de suas experiências (de consultório, trabalho em rádio, em assentamento etc.): seja em um livro sobre ressentimento ou na observação sobre sua participação na Comissão da Verdade:

“Por um lado, que bom que, finalmente, uma presidente, que foi torturada, conseguiu aprovar uma Comissão da Verdade. Mas, que pena que demorou (…) E que pena que nós tivemos uma anistia pros dois lados (…) Mexer nesse vespeiro pro Brasil acostumado com o jeitinho, com o “deixa disso”, com “não vamos falar naquilo que incomoda”, foi tão pesado que eu acho que não foi à toa que nas passeatas contra a Dilma havia um ou outro – é pouco, mas nós, que somos psicanalistas, sabemos que os sintomas às vezes se manifestam num detalhinho – pedindo intervenção militar.”

Ao longo da série vai ficando cada vez mais presente a ideia do sujeito ecoando no coletivo, por isso não é apenas em settings com esse viés que o aspecto político surge. Oswaldo Ferreira Leite Netto (episódio #7) traz lutas e particularidades numa narrativa de sutilezas, partindo de sua “vocação” médica de atenção ao outro:

“Talvez a minha trajetória, como pessoa, como homem, envolva a psicanálise bastante. E o que a psicanálise representa pra mim é sempre no sentido de ampliar, abrir, conquistar espaços, conquistar territórios. Liberdade, né? E eu acho que a minha vida que se liga à psicanálise vem desse processo que acho que é de atravessar fronteiras”. Fronteiras das portas e armários que ele abriu, principalmente no campo das sexualidades: “A gente não transa pra reproduzir. Quer dizer, temos essa questão do prazer, da busca, da necessidade e da imaginação, das fantasias. É aí que eu acho que tem uma ruptura que é fantástica, é fascinante e não pode ser ignorada. Então eu combato muito qualquer normatização e também a patologização dessa área (…) Porque pra mim, a psicanálise é revolução, é subversão, é ruptura epistemológica com a medicina, com os princípios da medicina”.

Outro exemplo é Maria Lúcia da Silva, (episódio #6), que traz o tema da negritude, indissociável de sua figura, de sua história e seu trabalho. Como ela mesma coloca: “falar de mim é fundamentalmente falar da minha ação no mundo, do meu ativismo”. E para isso a psicologia se tornou mais um instrumento:

“Ampliar a escuta é uma tarefa de psicólogos, seja de qual pertencimento for, porque o sofrimento precisa ser reconhecido por todos. E mais do que isso, a minha questão era: ‘Como é possível eu não ser reconhecida na minha particularidade, se a psicanálise trabalha com isso, trabalha com o sujeito, o sujeito com a sua história e inserido numa história mais ampla, seja do seu país, seja do seu grupo étnico’… Então essa sempre foi uma questão para mim”.

Isildinha Baptista Nogueira (episódio #9) também fala da negritude, mas num viés completamente diferente. Com uma formação extraordinária, fruto e semente de ideias profundas e sensíveis, compartilha um pouco do seu percurso pessoal, acadêmico e clínico:

“Foi nessas coisas todas, nesse mergulho profundo em mim mesma que eu comecei a pensar, a pensar nessa gênese da formação do inconsciente, como seria essa formação psicológica do negro, de como ele nasceria. E eu entendi que a gente já nasce nesse lugar. Já nasce de uma mãe e de um pai que desejam a brancura e nós não correspondemos a isso. Eu acho que o corpo do bebê é tão negro quanto eles e, de repente, também é uma frustração. Não que eles não nos amassem, mas nós não correspondemos a esse desejo, né? A criança negra não corresponde a esse desejo. E acho que começa aí, porque o desejo de toda criança é ser branca, o desejo de todo adulto negro é poder se livrar desse corpo negro que cerceia e que elimina, que mata”.

Experiências pessoais e profissionais, também levaram Christophe Dejours (episódio #5) a elaborar uma reflexão para além do trabalho clínico:

“A emancipação continua sendo uma questão totalmente essencial, tanto do ponto de vista da psicanálise, ou seja, do ponto de vista do desenvolvimento psíquico individual, no fundo, de uma trajetória de vida. E, por outro lado, acho que a emancipação é uma verdadeira questão”. Para ele, isso pode se dar na questão da loucura e tentativa de fuga dessa condição; na própria constituição do Eu, a relação do bebê e seus cuidadores – “Essa relação de dependência não incompatível com a capacidade da criança de se libertar, justamente de se emancipar dessa dependência primeira em relação ao adulto”. Ou ainda na questão do trabalho como fator de emancipação:

“Há uma centralidade do trabalho primeiramente em relação à saúde mental. Não há neutralidade do trabalho no tocante à saúde. Se o trabalho pode gerar o pior hoje, ou seja, ele pode ser tamanha fonte de sofrimento nas condições existentes, nas modalidades de organização do trabalho, com a adoção do modelo gerencial, com os novos métodos de organização introduzidos pelos gestores, chegamos agora até o suicídio no local de trabalho. O trabalho pode gerar o melhor do ponto de vista da saúde mental, pela razão muito precisa de que se pode identificar, graças ao qual, pelo trabalho, consigo entrar num processo de autorrealização”.

O que vai ficando mais marcado no somatório dessas narrativas é a postura do analista, de como aproveitam distintas formações e conhecimentos para se abrirem ao outro. Caso de Chaim Katz (episódio #2), que reconhece sua intelectualidade nômade e deslizante, que vai da experiência da resistência em tempos de golpe militar, passando por aulas em cursos e universidades até sua vivência clínica:

“Até hoje eu atento pra aquilo que o outro é (…) esse outro que me incomoda dentro de mim, eu converso com ele o tempo todo e eu o atendo”.

Fabio Landa (episódio #4), que além da formação acadêmica robusta, a vida em instituições e de uma prática intensa em settings diversos, acrescenta:

“A psicanálise não vive de provas. As provas em psicanálise elas são efetivamente um estorvo, porque elas não provam nada, elas apenas interrompem uma conversa. Aquilo que conta pra psicanálise é o testemunho. (…) Aquilo que conta é o choque e o encontro: eu e uma pessoa na minha frente, que vem me dizer alguma coisa com princípio e que a princípio eu não entendo absolutamente nada. E esse choque de não entender nada estabelece uma relação de humildade, de modéstia, de medo diante daquilo que está acontecendo”.

Por isso que a escuta desses psicanalistas que falam também é um encontro, uma forma de presenciar psicanalistas virando protagonistas, sujeitos virando história – a história da psicanálise brasileira.

Psicanalistas sempre falarão e que oportunidade poder ouvi-los!

 

_______________

[1] Cineasta e estudante de psicanálise, aluna do 2º ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, Quelany Vicente é também integrante da equipe de Psicanalistas que falam e espectadora assídua.

 

uma palavra, um nome, uma frase e pressione ENTER para realizar sua busca.