Instituto Sedes Sapientiae

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Mundos indígenas: é urgente sermos semente

por Camila Junqueira[1]

 

Para Eduardo Viveiros de Castro o povo brasileiro é muito mais indígena do que supõe. Mas o que afinal vive em nós? Foi sobre essa pergunta que a equipe da seção Debates da revista Percurso, da qual faço parte, na companhia de Gisela Haddad, Vera Zimmermann, Cristiane Abud, Thiago Majolo e Ivy Semiguem, se debruçou ao longo de mais de um ano, até que a pergunta se tornou uma afirmação: sim, vive em nós! Mas como (re)conhecer esse estranho familiar que retorna apenas pelas brechas?

Dar visibilidade a essa herança tem se tornado cada vez mais urgente.

Poderíamos dizer que o trabalho funcionou na base do aldeamento, pois mobilizou um grupo considerável de pessoas, e colocou a psicanálise em diálogo com a saúde pública, a biologia, a sociologia, a educação, a antropologia, as artes visuais. O fruto mais recente de nosso mergulho foi um debate on line promovido em junho deste ano, do qual participaram a jornalista Renata Tupinambá (Rádio Yandê), o roteirista e cineasta Luiz Bolognesi e a antropóloga Juliana Rosalen, com mediação da psicanalista Lucila de Jesus Gonçalves. O evento teve transmissão ao vivo e está disponível no YouTube.

Essa conversa dá continuidade ao pensar sobre, desde a publicação de quatro artigos para a edição 66 (junho/2021) da revista Percurso, também organizado pela seção Debate, além de uma entrevista com Eduardo Viveiros de Castro na edição seguinte, a de número 67 (dezembro/2021), organizado pela seção Entrevista. Todas estas ações derivam das perguntas que seguimos nos fazendo: como nos (re)apropriamos e usufruímos disso que vive em nós?

De diferentes lugares, com diferentes entonações, todas essas pessoas que se engajaram nesse pensar conosco puderam nos dizer: não conhecemos e negamos a nossa história. O indígena não é esse personagem que o colonizador criou para submeter os corpos, tomar as terras, afirma Renata Tupinambá. Embora não exista, a ideia dele como um estranho homogêneo se perpetua em nosso imaginário. Isso nos impede de ver o que ele é, em sua familiaridade e multiplicidade.

Entretanto, nosso olhar eurocêntrico, etnocêntrico e genocida, conta Emerson Guarani, segue determinando a forma como nos relacionamos com os povos indígenas. De acordo com o Censo 2010, a maior população indígena em contexto urbano do Brasil habita as franjas de São Paulo, a maior cidade do Brasil e do continente sul-americano, seguida de São Gabriel da Cachoeira (AM), Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ), Boa Vista (RR), Brasília (DF), Campo Grande (MS), Pesqueira (PE), Manaus (AM) e Recife (PE). As políticas públicas seguem falhando em garantir direitos básicos.

É urgente interrompermos o genocídio em curso. Iniciado com a chegada dos portugueses, mas agravado à época da ditadura civil-militar (1964-1985), conforme nos contou Maria Rita Kehl, e seguido pelas mortes por descaso, por planos de tomadas das terras ou arma de fogo. Nossas reações nas mídias sociais não são uma resposta à altura do fato de que é o Estado o principal inimigo do modo de vida indígena, falhando em garantir o direito à vida, à terra, à saúde e à educação, dentre tantos outros. Que não apenas desossou a Fundação Nacional do Índio, como faz vista grossa para a violência dos fazendeiros, dos garimpeiros, dos pescadores, dos grileiros, do agronegócio.

A cada vida ceifada, se aproximam um tanto mais da morte os seres não humanos, as matas, as águas. E também nós, os não-índios, estamos em extinção. O cineasta Luiz Bolognesi é enfático quando diz: a resistência indígena empreendida por povos tão diversos quanto os pataxós e os guaranis-kaiowás é hoje o epicentro da resistência e da transformação desse mundo em desencanto. É junto deles que poderemos experimentar outras formas diferentes de estar em relação com o outro, a natureza, o trabalho, a infância, os mais velhos, os sonhos, o adoecimento, a morte. Que poderemos criar outras políticas de existência.

Assim, esperamos ter deixado sementes no solo fértil do Departamento de Psicanálise e do Instituto Sedes! Convidamos todos a cultivarem essas sementes, a seu modo, nesse caminho de reencontro.

::. Edição 66 da revista Percurso (junho de 2021):
http://revistapercurso.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1436&ori=edicao&id_edicao=66
Diga sim aos povos indígenas: pelo direito à terra, à vida e ao bem viver, texto de Emerson Guarani
Entre múltiplos “modos de existir”, transformações e devires, texto de Juliana Rosalen
Tudo vive em nós, texto em coautoria de Lucila de Jesus Mello Gonçalves, Priscila Ambrósio Moreira e Thiago Barbalho
Índios, as maiores vítimas das ditaduras, texto de Maria Rita Kehl

::. Edição 67 da revista Percurso (dezembro de 2021):
http://revistapercurso.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1454&ori=edicao&id_edicao=67
Pergunte aos indígenas, entrevista de Eduardo Viveiros de Castro, por Ana Claudia Patitucci, Bela M. Sister, Cristina Parada Franch, Danielle Melanie Breyton e Silvio Hotimsky

::. Debate Mundos indígenas: o que vive em nós (junho de 2022), com Renata Tupinambá, Luiz Bolognesi e Juliana Rosalen e mediação de Lucila de Jesus Mello Gonçalves. Transmitido on line e disponível no link
https://youtu.be/Qtru-_YQEsk.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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