Instituto Sedes Sapientiae

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Na cidade, o museu de uma língua[1]

 por Miriam Chnaiderman[2]

 

Chegar ao Museu da Língua Portuguesa, em plena Estação da Luz, em meio à mítica Cracolândia é uma grande aventura em que somos obrigados a entrar nas vísceras desse São Paulo abandonado e triste. É preciso percorrer a Av. Duque de Caxias, passar pela praça Santa Isabel, onde acontecia todo o tráfego do craque, ver os restos, o que sobrou desses amontoados esfomeados e esquálidos buscando um esgar de força. Depois, passar em frente à atual imponente Sala São Paulo, cercada de cheiradores de cola, em meio a refugiados e imigrantes com suas roupas coloridas esgarçadas e muitas vezes até turbantes. Em seguida, a passagem pelo antigo Departamento de Ordem Política e Social, onde aqueles que se insurgiram contra a ditadura nos anos 70 foram presos e torturados. Hoje abriga o Museu da Resistência. Dali enxergamos o Parque da Luz e a Estação da Luz. Na viradinha, vários mendigos, pessoas correndo com suas marmitas, falas e gritos desconexos e desesperados. Aí, aliviados, chegamos à avenida que, depois de passar pela Estação da Luz, nos leva ao Museu da Língua Portuguesa e, do outro lado, à Pinacoteca do Estado com suas colunas onde cartazes anunciam as exposições. Até a Pinacoteca, as grades que separam a calçada e o Parque da Luz.  Grades cercando parques? O Museu da Língua Portuguesa é como que um oásis em meio a tanta dor. E a Pinacoteca também.

E no oásis, o oásis do sonho possível.

Sonhei em português é o lindo nome da exposição temporária que hoje habita o primeiro andar do Museu da Língua Portuguesa. Qual é a língua do sonho? A língua falada seria sempre um sonhar acordado. Pensar a língua como sonho. O manifesto de infindas determinações das quais pouco sabemos. Na busca do que não sabemos e que se articula em nossa fala, essa exposição homenageia as várias línguas que nos habitam nesses e em outros tristes tempos em que populações inteiras são obrigadas a deixar suas casas em busca da possibilidade de continuar vivendo. Vivendo e sonhando.

Em uma das paredes da exposição lemos:

“É como o beduíno, onde tem água ele vai”.

Beduínos são os povos nômades habitantes das áreas desertas do Oriente médio e norte da África… É um nome derivado das palavras árabes al bedu (habitantes das terras abertas) ou al beit (povo da tenda). As terras abertas demandam tendas, espaço de aconchego e descanso. O museu e a cidade.

Essa exposição procurou a obra nômade de cada um no seu cotidiano… A obra andarilha. A transitoriedade que nos habita.

Rousseau já nos ensinou que é preciso perambular para devanear. Para pensar criativamente. Para inventar.[3]

Os avessos reivindicam seus direitos

Essa é uma das frases colocada em uma das vitrines onde objetos de imigrantes são expostos. Sim, para que uma língua exista, o contato com o outro tem que estar presente. “Eu sou um outro”, é a contundente frase de Rimbaud, tão cara a Lacan. O Outro como avesso de nós mesmos.

Qualquer processo de identificação só pode se dar no reconhecimento da alteridade, e não é possível falar de identidade sem pensar em processos de identificação. Todo processo de criação de identidade é um processo de reconhecimento da alteridade, Freud já introduzira a existência de uma alteridade na interioridade – somos muitos. O Eu é definido como o conjunto de identificações que cada sujeito vai fazendo no decorrer de sua vida. Ou seja, somos portadores de várias identificações.

Há “um olho mítico”, onde vemos primeiramente nosso eu fora de nós. É o olhar de um outro que permite a constituição de uma imagem unitária. Um eu sempre mediado pela relação com um outro. O sujeito se vê como é visto por seus semelhantes. É essa a alienação fundante do sujeito psíquico.

Ver e olhar passam a ser movimentos intensivos constituintes da subjetividade.

Ver é ver o mundo que está diante de nós. É no campo da visão que emerge o olhar.

O eu se constitui a partir da imagem percebida.  O eu é a imagem percebida.

É no espaço do Outro que se situa o ponto de onde o sujeito se olha.

O olhar é uma ação, o olhar fisga.  O olhar produz imagens que pouco têm a ver com o percebido, com a visão.

O olhar é esse lampejo que fascina e desmonta petrificações estancadas de um mundo sem paisagem.

Na exposição Sonhei em português é a própria constituição da língua portuguesa que fica tematizada. A existência de outros reafirmando uma existência sempre múltipla.

O olhar das bordas – o estrangeiro

Vernant, no livro Com a morte nos olhos,[4] conta-nos de Artêmis, a deusa dos confins, das zonas limítrofes, das fronteiras onde a alteridade se manifesta no contato que, com ela, temos permanentemente. Artêmis é fronteira entre o selvagem e o civilizado, permeáveis e ao mesmo tempo distintos, sendo através dela que os homens conseguem domar sua selvageria. O mundo de Artêmis não é fechado em si mesmo, fechado em sua alteridade. Ele se abre, diferenciado. É a divindade das margens.

Artêmis e Dionísio são deuses vindos de fora, são estrangeiros. Quando Artêmis estrangeira se faz grega, ela passa a traduzir a capacidade que tem a cultura de integrar nela o que lhe é estrangeiro… O Mesmo se define na multiplicidade dos outros. No Mesmo não há pensamento possível.

Vernant relata que se o olhar de um mortal cruzar com o olhar de Górgona, seu olhar ficará preso à máscara de Górgona. Górgona é o radicalmente outro especular, uma imagem em espelho que, em lugar de remeter à aparência, funde-se a quem nela se mira, levando-o a tornar-se pedra. Górgona é o olho que é a negação do olhar.

Em nosso mundo, o contato com a fome e a desigualdade vem nos deixando “medusados”. Há bordas em pleno centro, bordas interiores da cidade vivida, cotidiana, atravessada, investida… Que Artêmis nos ilumine, pois é preciso transformar as margens em possibilidade de criação.

Para pensar um museu de uma língua – Sonhar em português

Em que língua sonhamos? O sonho tem nacionalidade?

Marielle Macé[5] nos conta que siderar vem do latim, sidus, sideris, a estrela: trata-se de sofrer a influência nefasta dos astros, de ser acometido de estupor. Tem a ver com todos os verbos da imobilização no espetáculo do terror: medusar, aterrar, petrificar… Mas havia também desiderare, desejar, querer intensamente… E havia cosiderare que nomeava a contemplação dos astros, uma vez que os astros devem ser olhados com intensidade, escrúpulo, potência. Designa essa disposição em que se conjugam o olhar (o exame pelos olhos ou pelo pensamento) e o respeito, o acolhimento sério daquilo que devemos fazer esforço para manter sob os olhos…

Diante de acontecimentos tão violentos quanto aqueles que vislumbramos no percurso até o Museu da Língua Portuguesa, a reação mais imediata é deixar-se siderar. O museu introduz a possibilidade da consideração.

Trazer a questão da migração para suas salas de exposição, dando dignidade a histórias de exílio, implica trabalhar considerando e não siderando.

Broch, citado por Renato Mezan[6], fala do poder tranquilizador dos museus. “… o museu, com sua disposição tranquilizante, em que as obras coexistem umas ao lado das outras, protegidas do público por suas molduras e cordões de isolamento, pode ser igualmente visto como o lugar em que a arte é neutralizada…”. O poder desestabilizador do que exposto fica anulado.

Mas, e quando o que é exposto é a língua portuguesa?  Fica transposto para o espaço do museu algo que cerca nossos caminhares onde o olhar fica obnubilado por nossa cegueira cotidiana. O museu passa a produzir o efeito de resgatar a perplexidade, de propor a passagem da visão para o olhar. Artêmis resgata seu poder de deusa das margens. Passamos da sideração para a consideração.

Sonhar em português fala da uma pertinência conquistada mas nunca finalizada. É preciso um esforço para sonhar em português. Mas, o sonho leva à possibilidade de transformar uma história dolorida em projeto de vida.

Situado num lugar de passagem, sendo parte da estação de trem, o Museu da Língua Portuguesa aponta para outros mundos e caminhares possíveis, para movimentos desejantes.  O museu passa a ser lugar de bordas e histórias, mostrando formas de vida que driblam o instituído e sobrevivem, fabricando formas de uso do espaço que são alternativos… São essas histórias que nos são contadas nos vídeos e objetos na exposição Sonhei em português… O que está em jogo é uma apropriação ou uma reapropriação da língua por locutores. Táticas múltiplas.

Instaurando um olhar, caminhando pelo museu, somos surpreendidos e desestabilizados. E resgatamos a perplexidade e horror diante de um mundo onde a resposta para os avatares da modernidade tem sido o racismo e exclusão. Daí a imensa importância de sonhar em português. Ou em árabe, ou em ídiche, ou em senegalês… Afinal, como lemos em uma das vitrines da exposição, “a terra é aqui dentro”.

 

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[1] Este texto surgiu de uma palestra no Museu da Língua Portuguesa, em dezembro de 2021.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora no Curso de Psicanálise.

[3] J. J. Rousseau. Os devaneios do caminhante solitário. Editora Universidade de Brasília/ HUCITEC, 1986 (tradução de Fúlvia Maria Luiza Moretto).

[4] Jean-Pierre Vernant. A morte nos olhos, figurações do outro na Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991 (tradução Clóvis Marques).

[5] Marielle Macé. Siderar, Considerar. Belo Horizonte: Bazar do tempo, 2018 (tradução Marcelo Marques de Moraes).

[6] Renato Mezan, Freud pensador da cultura. São Paulo: Cia das Letras, 1985 (sétima edição, 2005, p. 40).

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