Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Primeira Infância: intervenção e cuidado

 

Texto apresentado no Congresso Institucional de psicanalistas
latino-americanos em diálogo – FLAPPSIP[1]

 

por Yone Rafaeli[2]

 

O Grupo de Intervenção e Pesquisa Clínica: da gestação à primeira infância, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, foi criado a partir de inquietações com questões da primeira infância e suas possibilidades de intervenção nas comunidades vulneráveis. A partir de discussões teóricas e clínicas, foi firmada, em 2011, uma parceria com o Serviço de Psicologia do PEC-P, dentro do Programa Einstein na comunidade Paraisópolis, ligado ao Hospital Israelita Albert Einstein. Este programa oferece aos moradores da comunidade atividades relacionadas à saúde e à educação de forma integrativa.

Desde que nossa parceria foi firmada, temos acompanhado uma série de mudanças internas, redesenhando a inserção do PEC na comunidade, à medida que eles nos convocam como interlocutores nesse novo projeto institucional.  Inclusive nos anos da pandemia, momento em que muitos protocolos institucionais foram modificados, nosso grupo passou a receber e incluir atendimentos além das demandas de pacientes da área materno-infantil.

A proposta do nosso grupo é intervir e pesquisar, a partir da clínica psicanalítica, as possibilidades interdisciplinares de promoção de saúde mental ao acolher as demandas das gestantes, pais, crianças, mães e bebês. Experimentamos a potência da escuta psicanalítica na desmontagem de sintomas e afetos que impedem a essas mães de encontrarem a capacidade de cuidar de seus filhos, a potência em lidar com as angústias do gestar, parir e criar um filho, considerando as adversidades psíquicas, socioculturais e econômicas.

Nós nos surpreendemos com a capacidade de elaboração de alguns pacientes e com a reverberação do atendimento individual em toda a família. Também convivemos com a nossa impotência frente a síndromes e diagnósticos irreversíveis, histórias e sofrimentos provenientes de todos os pontos do país. Estamos sempre repensando a métrica do nosso envolvimento, colocando nossa normopatia sob vigilância ativa, desenhando nossos contornos enquanto grupo, enquanto psicanalistas e como cidadãos em espaço social ampliado.

Os limites que vivemos diante dos entraves sociais, econômicos e culturais nos fazem pensar em como abordar a dramaticidade e promover reflexões e interrogações que apontem possibilidades de mudanças subjetivas, quer com saídas particulares ou coletivas, com palavras ou atos.

Sendo assim, a prática clínica em Paraisópolis tem trazido inúmeros desdobramentos que a complexificam e a singularizam. Citamos, entre outras, as questões sobre a relação entre subjetividade e pobreza e subjetividade e violência. A violência dos homens, enquanto companheiros, pais ou padrastos é tema recorrente entre as mulheres atendidas. Esta se apresenta muitas vezes, tanto pela agressão física quanto pelos efeitos morais causados pelas mais diversas formas de ameaças.

O modo como estas mulheres consideram e administram seus efeitos também varia muito. A tensão psíquica também está no conflito entre patrões e empregados, quando uma paciente critica a licenciosidade dos pais-patrões, que pedem que ela não diga NÃO a uma criança de 3 anos; ela também sofre por não conseguir deixar a sua casa tão impecável quanto a deles. Ou quando uma jovem mãe, competente babá de profissão, se percebe sem forças para sair da cama e cuidar de seu próprio bebê, mas cria forças para vir à consulta e trazer seu bebê “impecavelmente vestido”.

Um dos desdobramentos dessa intervenção foi iniciarmos em 2017, dentro dos Cursos de Expansão Cultural do Instituto Sedes Sapientiae, um curso gratuito voltado aos Cuidadores de Bebês – Cuidando de quem cuida –, com o objetivo de incrementar a qualificação de pessoas que se dedicam ao cuidado de bebês e crianças, de ampliar seus conhecimentos e afinar a percepção e sensibilidade no trabalho junto a crianças e seus familiares.

Oferecemos espaços de discussão para que estes cuidadores possam entender a função constitutiva da qual eles participam ao estimular as competências das crianças e estarem atentos aos processos de subjetivação e desenvolvimento na infância, atentos para não criarem estigmas ou sentimentos de desvalia que venham a perturbar a constituição psíquica e o desenvolvimento da criança como cidadão, de forma integral. O curso está sendo oferecido duas vezes ao ano, com carga horária de 20 horas, no formato online.

Desde seu início, o curso já formou 7 turmas, totalizando 164 alunos. Com a pandemia, as aulas, que eram presenciais, passaram ao formato online, o que acabou possibilitando o acesso de pessoas de outras cidades e estados. Em nossa seleção, priorizamos participantes que já se dedicam ao trabalho com a primeira infância, seja em creches, abrigos ou babás de casas de família.

Vale dizer que essa experiência tem sido enriquecedora, tanto pelo retorno que temos dos participantes, quanto pela constatação da existência de uma demanda por esse conhecimento especial, em que se abre um espaço de interlocução face às aflições e angústias que esses profissionais enfrentam na relação com a criança e seu entorno, valorizando a potência dos cuidados com a primeira infância na constituição de um sujeito, à medida que os cuidados e atenção à infância se multiplicam, através de cada um dos participantes, em seus espaços de trabalho junto as crianças, tanto nos abrigos e creches, quanto nos espaços escolares.

Em abril de 2021, a partir da visualização do nosso curso de Cuidadores de bebês – Cuidando de quem cuida, recebemos a proposta de criar uma nova parceria junto ao PIM (Primeira Infância Melhor), um programa criado por uma política pública intersetorial de desenvolvimento integral na primeira infância do governo do Rio Grande do Sul, e que está presente em 209 municípios. Em um trabalho ainda em construção, dois membros de nosso grupo se propuseram a realizar a escuta de um destes grupos que atua no município Alvorada.

Com esta experiência clínica e de transmissão, temos refletido sobre a importância de criar dispositivos que venham a ampliar o acesso ao conhecimento teórico para que esses profissionais adquiram novas ferramentas para o desempenho de suas funções. Ao abrirmos espaços de escuta do sofrimento em comunidades vulneráveis, esperamos que a palavra, ao circular, traga um repertorio de criação e alternativas de ação para além da alienação social a qual assujeita a todos os cidadãos, cujos efeitos se potencializam  em situações de vulnerabilidade, à medida que interfere no tempo futuro da infância, em seus familiares e seus cuidadores.

Apostamos que a extensão de uma ação clínico-formativa possa criar ou afirmar a implicação de cada indivíduo para demandar tanto políticas públicas, que são deveres do estado na promoção de saúde e garantia dos direitos de cada cidadão, quanto  como dar a cada indivíduo uma possibilidade de avaliar e valorizar seus atos no laço social.

Este texto foi elaborado e compartilhado no Grupo de Intervenção e Pesquisa clínica: da gestação à primeira infância, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Membros do grupo:

Anna Mehoudar, Eva Wongtschowski, Daniela Athuil, Anna Amaral, Gisele Sene, Gisela Haddad, Marcia Arantes, Silvia Ribes, Yone Maria Rafaeli e Rubia Zecchin.

 

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[1] www.flappsip.com

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

 

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