Em memória de Cecilia Hirchzon
por Janete Frochtengarten[1]
Lembranças que esta foto da amiga acolhe e guarda. Foi em 2018. Estávamos passando uns dias em uma praia tranquila. Entre leituras e papos, partilhamos as cores e os sons do mar e as imprescindíveis caipirinhas, é claro!
Risos sem fim, qual duas adolescentes que, durante horas, se falaram e se contaram. Continuo a achar espantoso que, mesmo em uma amizade longa, de décadas, uma pequena temporada possa criar um emergir de surpresas, um inédito no se dar a conhecer. Duas mulheres amadurecidas através de tantas coisas vividas, reencontrando-se em algum novo lugar onde os afetos moram.
Pouco tempo depois, Cecilia entrou em um processo de vários adoecimentos. Durante os meses que se seguiram, houve alternância de períodos de relativo bem-estar, com períodos sofridos e angustiantes. Nestes, eu dizia: “está faltando aquela caipirinha, é isto!”. Praia com caipirinha e com pássaros vindo bicar frutas, pertinho, pertinho, era só silenciar. E, uma ou outra vez, eu lembrava da foto-testemunha, aceno para um dia… Um sorriso um tanto descrente era a resposta. A descrença venceu. Não mais a praia.
Memórias ficam. Quando a amizade se iniciou, a amiga estava casada, eu também. Assim como aconteceu conosco, os respectivos maridos, de imediato, se entenderam, em uma cumplicidade na qual o humor intervinha esperto, ágil. Tempos bons! Depois veio a viuvez, primeiro para Cecilia e, passados anos, para mim. Tempos de dor; a amizade trazia vida onde a ausência era tristeza só.
Amizade na qual a Psicanálise era um forte elo a mais. Grupo de estudos com Regina Schnaiderman no qual Freud nos era trazido com uma paixão que, se antes já estava, aí se incandescia; grupos de estudos sobre Winnicott, intercalados com trocas pessoais de textos, de dúvidas e do prazer peculiar de novos sentidos descobertos. Cecilia havia estudado particularmente Bion, que conhecia bastante bem e que era uma de suas referências. Quando foi entrando em contato com a obra de Winnicott, foi se engajando mais e mais. Radical apaixonada, beirava a intransigência. Assim era a amiga quando sentia que encontrava interlocução, recepção para seus anseios. Discutimos, brigamos, quando Ci disse, com alto teor de veemência, que Freud era “ultrapassado”. Não! Oras, Ci, assim não! Não!! Freud, sim, e Winnicott também sim, com seus bem-vindos encontros e desencontros. Depois da exaltação, esta sim com data vencida, tínhamos, ambas, aprendido com nossos argumentos agudamente estimulados.
Havia outro campo em que nossos bate-bocas ficavam pertinho de explosões: a política. Estávamos do mesmo lado, irmanadas no entusiasmo com o PT. Mas, se eu esboçava alguma crítica…
Saudades destas brigas, Ci! Que perda, esta interrupção de uma troca rara, a de continuar a nos conhecer, conhecendo uma a outra!
Agora é adeus. Sem mais praia.
Conseguirei apagar o whats com uma mensagem tua escrita um dia antes de morrer? Conseguirei tirar teu nome da lista de contatos, onde um leve estremecer me espera a cada vez que meus olhos distraídos o encontra?
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.