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Freud e os não-europeus – convite à leitura

por Sílvia Nogueira de Carvalho[1]

 

(…) a clínica psicanalítica nunca esteve desenraizada. Ao contrário, a economia psíquica – cuja moeda é a libido e cujo lastro é a pulsão – não é sem relação com as estruturas normativas da sociedade, da cultura e da religião[2].

A interpretação crítica da modernidade marcou o empreendimento freudiano; para Joel Birman (2004, p. 23), sua maior contribuição para uma teoria da cultura se encontra no questionamento sistemático de qualquer concepção linear do processo de construção da civilização, ao sublinhar a tensão permanente entre os supostos registros do arcaico e do civilizado – tensão que se encontra no fundamento de suas elaborações sobre o inconsciente e o recalque. A resultante maior dessa crítica é registrada em O mal-estar na cultura (1930), que aborda o mal-estar ocidental produzido na modernidade como um desdobramento de nosso modelo civilizatório.

Através do termo não-europeu, o intelectual palestino Edward Said (2004, pp. 45-72) designa, antes de tudo, o mundo para além dos lugares em que Freud viveu e trabalhou – a Áustria e a Inglaterra. Said situa Freud em um lugar e numa época em que o interesse pelo Outro (que certamente é aquele que se encontra fora dos limites da razão, da convenção e da consciência) se dava sobre um Outro identificável (da tradição judaico-cristã; da cultura greco-romana), pois só de passagem o texto freudiano se refere à China e à Índia e os apontamentos etnográficos em torno das culturas do Pacífico (australiana e africana) se circunscrevem à argumentação em torno da universalidade da proibição do incesto (Totem e tabu, 1913). Neste sentido, seria possível dizer que Freud possuía uma visão eurocêntrica da cultura, num mundo que ainda não havia sido tocado pela globalização, pelas viagens rápidas e pela descolonização. Vale lembrar que ele viveu imediatamente antes dos deslocamentos populacionais em massa, que levariam indianos, africanos, turcos e curdos ao coração da Europa.

Num segundo sentido de não-europeus, politicamente mais carregado, Said se refere à cultura que emergiu no período pós-Segunda Guerra Mundial (após a queda dos impérios clássicos e a emergência de vários povos e Estados recém-libertados na África, Ásia e Américas), sentido este que o autor considera intensificar a radicalidade e a atualidade dos escritos freudianos sobre a identidade humana – que não se assenta em fundação sólida. Tal radicalidade se manifesta na interessante e desafiadora visão que Freud tem de Moisés – um personagem forasteiro, não-europeu (um não-judeu egípcio) fundador da comunidade (judaica) que o adotou como líder; um tratado em que não se encontram resolução e reconciliação, mas complexidade e disposição ao episódico, ao fragmentado, ao interminado – e que possibilita pensar o que foi historicamente deixado para trás se apresentando em comportamentos universais através do retorno do recalcado.

De todo modo, será algumas décadas depois que caberá ao antilhano Frantz Fanon (nascido na Martinica, colônia francesa, em 1925) destacar as relações entre “Guerras coloniais e desordens mentais”(escrito como apêndice ao livro Os condenados da terra, 1961), por exemplo ao anotar que, para os europeus, o mundo não-europeu contém apenas nativos: “as mulheres de véu, as palmeiras e os camelos compõem o cenário, o pano de fundo natural para a presença humana dos franceses” e constatar que tal nativo é diagnosticado pelo psiquiatra clínico europeu como um assassino selvagem que mata sem motivo. Assim, Fanon proclama:

Deixe essa Europa na qual nunca terminam de falar do Homem, mas matam os homens onde quer que estejam, na esquina de cada uma de suas próprias ruas, em todas as esquinas do globo… A Europa assumiu a liderança do mundo com ardor, cinismo e violência. Veja como a sombra de seus palácios se estende ainda mais longe! Cada um de seus movimentos rompeu as barreiras do espaço e do pensamento. A Europa declinou toda humildade e modéstia; mas também se voltou contra toda solicitude e ternura… Quando busco o Homem na técnica e estilo da Europa, vejo apenas uma sucessão de negações do homem e uma avalanche de assassinatos.

Mais uma vez, portanto, “a história posterior reabre e questiona o que parece ter sido a finalidade de uma figura de pensamento anterior, colocando-a em contato com formações culturais, políticas e epistemológicas com as quais jamais sonhou o autor, não obstante filiada a ele pelas circunstâncias históricas. Todo escritor é também, evidentemente, um leitor de seus predecessores (…) e a dinâmica muitas vezes surpreendente da história humana pode (…) dramatizar as latências numa forma ou figura anterior que de repente esclarecem o presente” (Said, 2004, pp. 55-56).

Tal inclinação amorosa sobre Freud[3] seria possível porque “Freud é um exemplo notável de um pensador para quem o trabalho científico constituía (…) uma espécie de escavação arqueológica do passado enterrado, esquecido, reprimido e negado (…) Freud foi um explorador da mente (…), mas também, no sentido filosófico, um inversor e remapeador de geografias e genealogias aceitas ou estabelecidas. Ele assim se presta de maneira especial a releituras em contextos diferentes, já que o seu trabalho é, todo ele, sobre como a história da vida se presta, pela memória, pesquisa e reflexão, a uma estruturação e reestruturação sem fim, tanto no sentido individual como coletivo. Que nós, diferentes leitores de diferentes períodos históricos, em contextos culturais diferentes, continuemos a fazê-lo em nossas leituras de Freud, me parece nada menos do que uma justificação do poder que o seu trabalho tem para instigar novos pensamentos, bem como para iluminar situações com que ele mesmo talvez jamais tenha sonhado” (Said, 2004, p. 57).

Por fim, na formulação de Jacqueline Rose (2004, p. 95): “Lê-se um autor histórico não pelo que ele deixou de ver, não pelas coisas que sua ideologia não conseguiu antever (…), mas pela história ainda-não-vivida, ainda-em-formação, que sua visão – o que compreende necessariamente as limitações daquela visão – parcialmente, experimentalmente, prevê e provoca”.

Referências:

Birman, J. “Freud e a política, entre judaísmo e judeidade” in: Said, E. Freud e os não-europeus. São Paulo: Boitempo, 2004.

Freud, S. (1912-1913) Totem e tabu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

________ (1930) O mal-estar na cultura. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

Rose, J. “Resposta a Edward W. Said” in: Said, E. Freud e os não-europeus. São Paulo: Boitempo, 2004.

Said, Edward. Freud e os não-europeus. São Paulo: Boitempo, 2004.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Ianinni, G. & Tavares, P. H. Para ler o mal-estar in: Freud, S. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos / Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 11.

[3] Cf. Nogueira de Carvalho, S. “De ouvidos e olhos bem atentos: para localizar O momento presente”. In Boletim Online 45, abril de 2018: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=45&ordem=18&origem=ppag

 

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