Instituto Sedes Sapientiae

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Homenagem a Mario Fuks: recuperando lembranças de sua história

por Ana Maria Sigal[1]

 

Queridos amigos, estamos aqui reunidos para recordar e homenagear Mario Fuks, um guerreiro inteligente, perspicaz e sensível que dedicou sua vida a lutas que deixariam marcas em sua história e na nossa.

Ao se perder um grande amigo, um companheiro de vida, um irmão de coração, se perde um pedaço nosso, mas não se perde uma história. Recordar significa manter vivo seu legado; é por isto que trago algumas lembranças das raízes do trabalho de Mario na Argentina, antes de chegar ao Brasil, que explicam sua inserção no Sedes e no Curso de Psicanálise. Vou fazê-lo a partir do conhecimento de partes de sua história, derivado de um caminho e de trabalhos que compartilhamos e que desenvolvemos juntos.

Minha história com Mario tem duas vertentes: nós nos conhecemos em 1966, há 57 anos. Desde essa época nos uniram duas grandes paixões, a Psicanálise e a Política. Mario tinha uma formação marxista e isso o levou a assumir papéis políticos na história de nosso país, mas também o defrontou com a exigência de questionar a psicanálise, que sempre pensou como um saber vivo e em permanente mudança, comprometida com seu momento histórico. Em psicanálise se dedicou à política da clínica, à política da teoria e à política da formação. Na clínica pensava em como usar seu conhecimento para criar novas formas de inserção a serviço de uma população mais ampla, desenvolvendo politicas públicas; na teoria, a refletir sobre o modo como os laços sociais marcam questões epistemológicas e metapsicológicas do texto freudiano e, na política de formação, questionando estruturas hierárquicas e antidemocráticas presentes nos institutos de ensino. A psicanálise nos permite captar o homem na sua singularidade, mas esta é a singularidade de sua existência histórica e de sua inclusão como ser social. Mario não se furtou delas. Nenhum produto humano que se rege pelo desejo pode ser neutro, ainda que os lugares de militância tenham sua especificidade. Era militante na cidadania e militante na especificidade de seu ofício.

Nos anos 70 trabalhamos nas “equipes político-técnicas”: grupos de superfície do movimento Juventude Peronista, que pertencia à esquerda do peronismo revolucionário. Nestas equipes se inseriam profissionais de todas as áreas, oferecendo seu conhecimento para promover maior justiça social; em seu caso, se dedicou às políticas públicas relacionadas à saúde mental e à luta antimanicomial. Este braço do peronismo encampou muitos trabalhos na universidade e além de atender companheiros entrosados na luta política, que não pertenciam à superfície, apoiava trabalhos nas favelas, nos cortiços, nas unidades básicas e nos hospitais. Mario tinha uma inserção importante nos hospitais gerais e nos hospitais psiquiátricos. O hospital Lanús foi um lugar fundamental de pertencimento para Mario, tanto no trabalho político quanto psicanalítico.

Assumiu funções na cadeira de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires, onde me convidou a trabalhar. Criou-se ali uma marca histórica, ao se oferecer o atendimento vespertino no Hospital das Clínicas, que funcionava das 19 às 22 horas para possibilitar que os trabalhadores não precisassem pedir dispensa do trabalho para serem atendidos, o que evitava a estigmatização do sujeito como doente mental num tempo em que esse diagnóstico se aplicava a todos os que buscavam a psicanálise para enfrentar seus conflitos. Também se ensinava psicanálise para sensibilizar a escuta dos médicos e usar a relação entre médico e paciente como ferramenta fundamental para entender o doente, mais além de sua doença.

A ditadura avançava nos porões e, com o golpe de Estado de 24 de março de 1976, foi possível trabalhar por apenas mais alguns meses exilados no nosso próprio país, pois no meio do ano esta possibilidade se fez insustentável e tivemos que nos exilar. Cheguei ao Brasil em julho de 1976, Mario chegou com Lucía em maio de 1977, quando eu já estava em contato com Regina, Miriam e outros colegas brasileiros. Nos encontramos por acaso em um bar que ficava na avenida Angélica com a rua Maranhão e a alegria foi grande ao nos sabermos vivos, pois a ditadura dizimava nossos grupos de trabalho e a ameaça às vidas tinha uma cotidianidade iminente. A América Latina estava sendo tomada pelo imperialismo que se propôs à sistemática tarefa de desarticular os movimentos de esquerda que tinham se desenvolvido; a esta altura, a ditadura civil-militar brasileira se encontrava em vias de arrefecimento. Depois desse encontro convidei-os a conhecerem Regina e o Sedes e eles se somaram ao novo projeto que estava se gestando. Posteriormente uniu-se a nós Silvia Alonso, que chegou ao Brasil em dezembro de 1976, e se incorporou ao nosso curso em 1979, assim como foram se aproximando com o tempo outras colegas exiladas, como Isabel Vilutis e Cristina Ocariz. Todos trazíamos uma origem comum de militância e de participação nos movimentos que questionavam a psicanálise nas suas estruturas de poder. Vínhamos de uma relação crítica com a Sociedade de Psicanálise e suas estruturas formais e pensávamos na possibilidade de formação de analistas fora dos marcos tradicionais. Mario trabalhou no grupo de Docência e Investigação, grupo que dependia da Federação de Psiquiatras dirigido por Emilio Rodrigué e que depois se transformou no grupo de Trabalhadores da Saúde Mental, fundamentalmente dando supervisão e formação – espaço que também compartilhávamos. Ali se desenvolviam trabalhos clínicos e institucionais engajados em projetos sociais e políticos das populações periféricas. Outros colegas que se uniram a nós aqui no Brasil vinham de experiências semelhantes desenvolvidas em outras instituições. Silvia trabalhava com Armando Bauleo no serviço de Psiquiatria e Psicohigiene de uma maternidade pública, aprofundando-se nas questões da feminilidade e se dedicava à formação de analistas; Lucía trabalhava com Mario no hospital Lanús, importante centro de atendimento e formação e referência em Buenos Aires, onde se conheceram e formaram uma vida em comum. Silvia e Lucía se conheciam desde a Argentina, onde juntas participaram do EPSO, instituição criada por Gregorio Baremblit dedicada à transmissão. Esses projetos que todos trazíamos tiveram sua continuidade em nosso engajamento no Sedes. Acontecia então o enfrentamento feito ao poder da IPA pelos grupos Plataforma e Documento, movimento encampado por nossos analistas, supervisores e colegas de trabalho com os quais Mario compartilhava a realidade desse período histórico. José Bleger, Marie Langer, Emilio Rodrigué, Diego Garcia Reinoso, Gilou Garcia Reinoso, Fernando Uchoa, Gregorio Baremblit, Armando Bauleo, Tato Pavlosky foram alguns de nossos grandes companheiros; Pichon-Rivière era referência de todos eles.

Nessa época já existiam ligações entre brasileiros e argentinos que compartilhavam um pensamento comum. Helena Vianna, expulsa da Sociedade de Psicanálise por denunciar um torturador psicanalista que apoiava a ditadura, encontrou apoio nos movimentos argentinos que a ajudaram a avançar e a se defender nesta investigação. No Brasil também estavam acontecendo grandes mudanças na política e na psicanálise, o que proporcionou a Mario “um bom encontro” na sua chegada. Foi aberta e amorosamente recebido por Madre Cristina e Regina Schnaiderman, articuladas com Roberto Azevedo e Isaias Melsohn na organização de um curso de formação abrangente, que abrisse espaço para acolher grande número de profissionais inseridos no campo da saúde mental e desejosos de aprofundar sua formação em psicanálise. Aqui encontrou ainda teóricos que vinham trabalhando estas questões e esse contato com Helio Pelegrino, Eduardo Mascarenhas, Jurandir Freire Costa, Chaim Katz e outros lhe permitiu aprofundá-las ainda mais e conhecer mais profundamente o percurso de psicanálise no Brasil. O curso que estava se criando recebeu muitos colegas mais jovens que vieram a formar parte deste nosso espaço de compromisso político com a psicanálise, alguns dos quais foram se incorporando posteriormente como professores.

Sem dúvida vocês podem conhecer mais desta história através do livro da História do Departamento de Psicanálise. O que quero enfatizar é a atuação de Mario, engajada e fundamental. Ele também tinha excelente formação teórica e de militância, formou parte de grupos de estudo com Sciarretta, professor que formou muitos de nós em Marx e Lacan. Mas ele tinha sobretudo uma capacidade de análise que ajudava a encontrar caminhos profícuos. Nosso curso e nosso departamento sofreram muitas dificuldades e Mario sempre foi uma luz que ajudava a encontrar caminhos: agudo, inteligente e perspicaz.

Sentiremos saudades, mas a luta continua. Salve, Mario, você estará sempre na nossa memória! Foi um privilégio ter percorrido com você uma história, foi uma alegria ter você no curso e no Departamento de Psicanálise para seguir sua história e construir a nossa.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise e co-coordenadora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.

 

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