Instituto Sedes Sapientiae

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Seminário Territórios Clínicos: descentralizar o saber psicanalítico

por Fernanda Almeida[1] e Tide Setubal[2]

 

“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”.
Ditado Iorubá[3]

 

No dia 15 de abril de 2023, aconteceu na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – EACH, popularmente conhecida como USP-LESTE, o “Seminário Territórios Clínicos”. Resultado de um trabalho de dois anos, no qual a Fundação Tide Setubal apoiou – tanto financeiramente como por meio de encontros de troca e formação – sete organizações: Amma Psique e Negritude, Casa de Marias, Margens Clínicas, Perifanálise, Roda Terapêutica das Pretas, Sur Psicanálise, Veredas Psicanálise e Migração.

Foram seis meses de intensa preparação, na qual a Comissão Organizadora, composta por representantes das entidades parceiras, construiu um trabalho participativo e de muita criação. Eram muitas as possibilidades de temas e composição para as mesas, assim como para o formato do Seminário.

Agulha, linha, tecidos, alinhavos, tal qual artesãs reunimos os insumos necessários para construção coletiva, nesse caso composta por: discussões, elaborações, chuvas de ideias, alinhamentos. Mãos e mentes que se entrelaçaram, desse modo o Seminário foi resultado de um trabalho coletivo, de esforço e dedicação das entidades parceiras.

O local para abrigar o Seminário exigia, igualmente, coerência quanto aos princípios fundantes do projeto.  Onde será? Des-centra-lizar! Sair do centro e deslocar. Estas foram as balizas ético-políticas para definição do espaço para realização do Seminário. De maneira simbólica – e talvez até real – a concentração territorial da psicanálise em São Paulo poderia estar georreferenciada na zona oeste da cidade, portanto, nos pareceu fundamental esse deslocamento. Não repetir os mesmos lugares e as mesmas exclusões. O campus da USP-LESTE surgiu como uma possibilidade interessante e coerente de romper com a centralidade. O campus periférico da maior universidade pública da cidade, ainda desconhecido pela maioria, embora tenha acesso relativamente fácil por transporte público e carro.

Por que vocês escolheram um lugar tão longe?”, muitos nos perguntaram. “Longe para quem, cara-pálida?”, nós respondíamos.

As distâncias, nesse caso, são sempre reais, mas não deixam de ser também simbólicas. Longe para algumas pessoas, perto para outras. A Casa de Marias, uma das entidades parceiras, por exemplo, fica a 15 minutos do campus USP Zona Leste. Descentralizar foi, de alguma maneira, propor a experimentação do deslocamento que uma imensa maioria da população faz todos os dias. Também nos pareceu adequado atrair novos sujeitos, trabalhadores, estudantes que moram nos arredores. Esse é um dos pilares do projeto Territórios Clínicos e que foi tomado como diretriz para definição do local para o seminário.

Não é demais ressaltar que tudo foi feito e pensado com muito cuidado. Da arte da comunicação visual à alimentação (café da manhã generoso, almoço caprichado, lanchinhos e quitutes saborosos) organizada pela cantina do campus para fortalecer os atores do território.

A abertura das inscrições aconteceu no dia 20 de março e foi um capítulo à parte.  Em uma semana, mais de 500 pessoas inscritas! Entre a alegria com o sucesso de acolhimento da proposta do Seminário e o susto pela rapidez da limitação das vagas, tivemos que tomar a difícil decisão de encerrar o recebimento de inscrições, pois o auditório tem capacidade para 300 pessoas.

O dia 15 de abril amanheceu chuvoso e cinzento. Grande preocupação nos tomou, nós da Comissão Organizadora. Será que as pessoas vão sustentar o desejo de estar conosco? A ansiedade era proporcional à quantidade de investimento de tempo, recursos financeiros e afeto por parte da equipe da Fundação e de todas as organizações parceiras no Seminário. Logo o friozinho na barriga foi substituído pela quentura do café, assim como pelos abraços calorosos na recepção do auditório. Em pouco tempo, o espaço foi todo tomado por pessoas provindas de diversas regiões da cidade. Um público colorido e diverso. Toda a gente preparada para refletir sobre os projetos apoiados, assim como sobre a intencionalidade da construção de novos saberes sobre a clínica e a psicanálise.

A mestre de cerimônias traz na abertura do Seminário a história da Colcha de Fuxico, aquela peça bem tradicional da cultura popular brasileira que remete à casa das avós. Ela cita que a palavra fuxico possui origem africana que significa remendo ou reparo. Conta que sua história remete às famílias de baixa renda que praticavam a técnica artesanal reaproveitando tecidos e retalhos. Relembra que as artesãs, em geral mulheres negras, recortavam os tecidos em forma de círculos, alinhavando suas extremidades até formar uma “trouxinha” de tecidos. A partir da história, ela pergunta ao público:

Quantas peças são necessárias para compor uma colcha de fuxico?   

A mesma quantidade de pessoas inscritas no Seminário, 520 pessoas. Naquela manhã chuvosa, cada um e cada uma era uma dessas pecinhas. Uma plateia jovem e majoritariamente negra foi convidada a compor, remendar e alinhavar cada peça com o comprometimento de que, ao final do dia de trabalho, uma linda colcha de fuxico pudesse ser produzida.

Desde a mesa de abertura até o encerramento, o palco esteve ocupado – predominantemente – por psicanalistas negros e negras, boa parte advinda da periferia, muitas mulheres, apresentando seus potentes trabalhos nos territórios. Dispositivos clínicos inovadores, uma psicanálise brasileira e, por que não, subversiva.

Além da mesa de abertura, o Seminário trouxe outros três grandes temas para a apresentação das pessoas convidadas e debate entre participantes.

  1. Entre as políticas públicas de saúde mental e as clínicas públicas – quais são os limites e possibilidades de articulação?
  2. Clínica, militância, formação – são impossíveis da psicanálise? A metapsicologia psicanalítica a partir das discussões de raça, classe e gênero.
  3. Clínica e Território: desafios e potências.

A densidade das apresentações e a contundência da participação por parte do público foi notadamente reconhecida por quem participou. Na melhor acepção do rapper Emicida, “tudo ali parecia ser pra ontem”. No dicionário Oxford a palavra descentralizar significa: 1) tornar mais independentes as autoridades locais, dando-lhes mais direitos e poderes. 2) separar ou dissociar do centro os elementos que neste lugar se encontram; afastar, dissociar, distanciar. Entre as pessoas participantes uma ideia pareceu ser uníssona, a de que o mais significativo deslocamento não foi o territorial, mas sim o simbólico e o epistemológico. De alguma maneira, diante da verdadeira ocupação daquele espaço por um público diverso e colorido, a psicanálise foi convocada a se repensar no fronteiriço rio caudaloso que margeia as bordas da cidade.

E a colcha de fuxico?

  • Todo Seminário foi gravado e, no mês de junho, esse material estará disponível em um link no Instagram da Fundação Tide Setubal.
  • Também como resultado do trabalho está previsto o lançamento de um livro com textos das e dos palestrantes além de outras pessoas convidadas, no primeiro semestre de 2024.
  • Em agosto de 2023, a Fundação Tide Setubal abrirá um edital público para a seleção de novos projetos que queiram participar do Territórios Clínicos 2, que acontecerá em 2024 e 2025.

 

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[1] Assistente social e psicanalista, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da FAPSS-SP. Atua na Rede Pública de Saúde (SUS) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Aluna do Curso Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste boletim online e da Comissão de Reparação e Ações Afirmativas. Integra o projeto Territórios Clínicos da Fundação Tide Setubal.

[2] Psicóloga e psicanalista, mestre pela Université Paris V, membra do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, do grupo O Feminino e o Imaginário Cultural Contemporâneo e do Conselho de Direção (2021-2023). Colaboradora deste boletim online. Coordenadora do Projeto Territórios Clínicos e conselheira da Fundação Tide Setubal.

[3] Ditado Iorubá que foi popularizado após ter sido citado pelo rapper Emicida no documentário AmarElo – É tudo para ontem.

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