Corpos em presença, falas encarnadas
por Maria de Fátima Vicente[1]
Aceitei, com gosto, a sugestão de uma colega para escrever sobre o evento ocorrido em 05 de agosto de 2023, no auditório do Sedes, o Famílias brasileiras subindo a rampa – cada uma delas existe e é importante para nós, pois fui, desde a plateia, uma participante emocionada[2]. Tive um pouco de receio em não conseguir transmitir o evento à altura de sua abrangência, mas concluí que valia a pena escrever mesmo com esse risco, apostando que meu entusiasmo possa ser um convite aos leitores a irem buscar assisti-lo em sua gravação na íntegra, disponível no canal do departamento no YouTube. O que segue, portanto, é um relato a partir dos pontos que fizeram relevo para mim.
Idealizado e levado a efeito pelo Grupo de trabalho Famílias no século XXI, o evento teve por proposta questionar a pretensa universalidade da família brasileira, universalidade construída hegemonicamente por meio de discursos e práticas autoritárias, segregativas, presentes em nossa sociedade historicamente colonizada. Para a realização dessa empreitada o grupo proponente do evento escolheu tratar desse sintoma social na interseccionalidade de raça, classe e gênero, uma vez que essa tomada de posição possibilita abordar a violência, a desigualdade e a exclusão que incidem sobre as condições de ser família, ter família, fazer família e as consequências disso nesta sociedade.
Foram propostas duas mesas de apresentação de reflexões e de experiências clínico-políticas. A primeira delas se efetivou com a participação de Antonio Cerdeira Pilão, antropólogo, e de Marília Campos Oliveira e Telles, advogada e mediadora, articulando os saberes dessas duas áreas; a segunda, concentrou as apresentações dos trabalhos desenvolvidos pelas colegas psicanalistas Cristina Rocha Dias, Margarida Soibelmann Melhem, a Kika, e Isildinha Baptista Nogueira, que trouxeram as perspectivas de classe social, gênero e raça, respectivamente.
As exposições de Antonio e Marília nos possibilitaram ter a perspectiva do quanto os discursos e suas práticas são condições importantes nos processos de segregação, mas, mais que isso, por meio de suas experiências como pesquisadores e profissionais, ela e ele evidenciaram as possibilidades de resistência à tal opressão. Resistência que se faz com as ações diárias de sustentação das brechas da lei, no campo jurídico, por meio das ações em que o desejo de reconhecimento do outro em sua dignidade cidadã é fundamento e no campo da investigação científica, por meio do modo de constituir um projeto de pesquisa em que sua realização leve em conta a voz do objeto pesquisado, de tal sorte que aquele adquire o estatuto de sujeito de sua fala e de sua historicidade.
Pudemos reconhecer por meio das práticas desses colegas de outros campos que, nem mesmo o discurso jurídico e o acadêmico, que tantas vezes se apresentam como se fossem completos, têm a possibilidade de dominar tudo, de totalizar a experiência. Com alívio, resgatamos a lembrança de que conforme a ética que comanda as pequenas ações cotidianas se pode fazer – e ela e ele o fazem diariamente – grande diferença. Foi, portanto, uma feliz escolha a de cruzar saberes ao modo interdisciplinar, para questionar essa supostamente existente “família brasileira”. Definida historicamente em termos de direitos somente para alguns que se encaixam nessa fôrma, as famílias fora dessa caixa terão tido a visibilidade assegurada, a voz ouvida e a legítima existência confirmada por meio das práticas ali compartilhadas nessas exposições.
Como se sabe, as famílias que escapam e transgridem libertariamente a rigorosidade dos preconceitos a que estão submetidas e que, muitas vezes, tão somente devido ao simples fato de insistirem em existir, denunciam o aviltamento dos direitos em privilégios como política de morte de nossa sociedade, muito raramente têm a oportunidade de se dar a ver no espaço público em suas reais condições de cidadãos cuja dignidade está aviltada. Como se sabe também, elas são o objeto preferencial das ações daquela necropolítica e, nesse sentido, a proposta do grupo Famílias no século XXI se deu a ver, nessa ocasião, em sua densidade, pois colabora para que estas famílias construam condições emancipatórias que as retirem da posição de alvos a que são lançadas.
Isso ganha uma nova dimensão quando da segunda mesa, em que a efetivação dessa potência de não àquilo que está imposto pelo discurso dominante se realiza por meio da clínica psicanalítica e se faz presente por meio do testemunho de seus praticantes. Assim, se na primeira mesa ouvimos sobre a família trisal, a família poliamor, as famílias ditas legítimas e as ditas ilegítimas, em que se destacam as fontes imediatas sociopolíticas produtoras de sofrimento e de segregação, nesta segunda mesa ouvimos as falas de Isildinha, Cristina e Kika, por meio das quais pudemos nos aproximar da incidência que as práticas diretamente relacionadas ao interpessoal familiar, sob certas condições de convívio ou devido sua ausência ou precarização, imprimem na possibilidade de um sujeito singular advir, ou levam a seu apagamento. Será dos efeitos sobre os corpos, sobre os toques, sobre os afetos sob essas condições conjunturais e estruturais que essas psicanalistas nos falarão.
Os relatos clínicos, reflexivos e testemunhais das três expositoras tiveram início com a fala de Isildinha, psicanalista, pesquisadora acadêmica, engajada na transmissão da Psicanálise, que nos conta sobre a realidade das famílias das pessoas negras. Daquilo que se instituiu por meio da escravização dessas pessoas, um dos pilares vergonhosos da História deste país, que fez nascer famílias que não podiam vingar. Pois, enquanto escravas, a criança e sua genitora não se podiam fazer, prioritariamente, criança e mãe. Àquela mulher escravizada era destinado o lugar de ama de leite da cria do senhor e será dessa cria que essa presença negra fará advir uma criança, tornar-se-á a mãe preta da criança branca de seu explorador. Um terrível modo de violência que lhe impede a construção de uma família para si e para seus filhos, violência que, sob outros formatos e efeitos, subsiste até hoje, seja por meio das marcas transgeracionais presentes nos corpos negros e nos afetos sintomáticos dos brancos em relação às mulheres negras, seja por meio da reprodução indireta daquelas condições na terceirização dos cuidados dos filhos das mulheres brancas às trabalhadoras de serviços domésticos, em sua maioria mulheres negras. Não por acaso, já em sua exposição e debate prévios, Marília havia antecipado a hipótese que transformações essenciais de nossa sociedade só serão possíveis se incluírem a desconstrução dessa relação histórica. Por sua vez, Isildinha fez sua ênfase, por um lado, nas consequências psicopatológicas para as pessoas pretas devido à perpetuação dessas relações estruturais, mas, principalmente, nos permitiu testemunhar como sua experiência de mulher negra anima sua prática, em qualquer das modalidades que a exerça, de formas a produzir saber psicanalítico e transformações subjetivas naqueles que se aventuram com ela no tratamento psicanalítico ou no processo de formação como psicanalistas.
A reflexão de Cristina, desde sua perspectiva de psicanalista e de educadora, nos põe em contato com as condições de atenção às famílias em situação de vulnerabilidade social, o que não é pouco, mas, ainda mais, nos convoca ao deslocamento da significação de certas expressões, que, por meio de sua fala, se desvelam como jargões nefastos. Ela nos provoca a abandonar o conforto das significações compartilhadas do que é a vulnerabilidade, que atribuímos a famílias de outras classes sociais, e ao que classificamos de social, como se nesse sintagma, – vulnerabilidade social – o social se apresentasse em sua face condescendente, como às vezes se diz “preço social”, quando talvez fosse o caso de dizer “preço acessível”. Ela nos alerta para o esquecimento conveniente, sintomático, da condição constitutiva do desamparo, que nos deixa vulneráveis ao outro e de cuja resposta a essa posição de vulnerabilidade irá depender a ética de nossas ações. Pois, fundamentalmente, a provocação que Cristina nos faz é de estarmos atentos a essas questões na escuta clínica, para que potencializemos o advento do sujeito, para que não colaboremos para seu silenciamento por meio de nossa surdez de classe, à qual sempre precisamos voltar a desconstruir.
Finalmente, Kika nos apresentou o trabalho clínico por ela coordenado, rodas terapêuticas junto a pessoas trans em que, por um lado, se evidencia o sofrimento produzido em situações familiares com pessoas em transição de gênero – seja o das pessoas seja o de seus familiares – e por outro, a potência do encontro da escuta da psicanalista como mediadora da roda e com a fala e a escuta das pessoas que compartilham situações equivalentes[3]. Por meio do relato e reflexão apresentados por Kika sobre essas rodas, pudemos reconhecer as posições éticas em ação a que as exposições de Cristina e Isildinha nos exortam e testemunham. O que nos leva a considerar os efeitos dos relatos e reflexões desses trabalhos sobre nós, ali presentes.
O primeiro e imediato efeito foi a qualidade do debate que as exposições de ambas as mesas suscitaram, debate que teve o tom amigável de uma conversa participativa da grande plateia presente no auditório, e que foi facilitado e sustentado pelo modo receptivo com que as perguntas e comentários da plateia foram recebidos, incentivados, desenvolvidos, por cada uma das coordenadoras das mesas, Ana Raquel B. M. Ribeiro, na primeira mesa, e Adriana Elisabeth Dias, na segunda delas.
Penso que outro efeito no que nos concerne como psicanalistas diz respeito a pensar a Psicanálise e, quanto a isso, o modo como as questões foram propostas e o desenvolvimento que receberam durante os trabalhos, pelas exposições e nos debates, nos possibilita reconhecer que neste momento histórico a Psicanálise se apresenta como uma instituição em trânsito.
Momento em que sustenta sua práxis e seus pressupostos teóricos ao mesmo tempo que se põe à procura de parceiros para a construção das novas articulações, dos novos conceitos e das novas intervenções possíveis e necessárias à sua transformação, para efetivar sua potência de único discurso que leva em conta o sujeito. O que se faz por meio das práticas que nos arriscamos a criar, devido aos tempos atuais e aos territórios que emergem do atoleiro condominial da globalização, e que por meio de submetê-las à discussão, à colaboração, à amplificação e à validação de seus achados junto a nossos pares e a nossos vizinhos, prosseguimos levando a Psicanálise aonde ela precisa ir para se transformar. Como sabemos, ao psicanalista não é suficiente ser intelectual, é necessário praticar seu ofício junto às gentes de seu tempo e nos territórios onde estas gentes estejam.
Para concluir este relato, diria que a proposição “famílias brasileiras subindo a rampa” foi um mote precioso a nos convocar, muito bem expresso pela fala introdutória de Célia Klouri, emoldurada pela retomada – em vídeo – do discurso do ministro Silvio Almeida e que atingiu seu ápice com a emocionante leitura de “Do significante rampa…”, por Cristina Petry, um forte poema de sua autoria. “Famílias brasileiras subindo a rampa” foi também um bom ponto de partida para os trabalhos que se seguiram, pois foi por meio dessa referência coletiva que nos felicitamos por este momento político em que parece haver a possibilidade efetiva de que essas pessoas existam e sejam importantes para os três poderes do país. Ao mesmo tempo, é também um bom mote para que não deixemos de nos lembrar que “essas pessoas existem e são importantes para nós”, mesmo quando, e principalmente quando, os poderosos do país lhes são nefastos. Afinal, temos trabalhado em nosso Departamento desde sempre nas direções da emancipação política e da desalienação subjetiva dessas pessoas e nossas e, em seu âmbito específico, o Grupo Famílias no século XXI veio nos mostrar um recorte do longo e feliz trabalho que seus participantes têm desenvolvido nessa direção. Pelo que lhes parabenizamos e agradecemos.
São Paulo, 03 de setembro de 2023.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Além de ter feito parte da comissão organizadora do evento, na função de Articuladora da Área de Eventos do Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise do Sedes.
[3] Cabe ressaltar que o texto lido por Kika foi elaborado por ela e por integrantes do Grupo Generidades, do qual Kika é participante, grupo que fez essa parceria neste evento.