Uma tarde à toa
por Rubia Delorenzo[1]
Está quente. O sol entra sem cerimônia no cômodo. Lambe os quadros, a mesa de trabalho, derrete as balas dentro da latinha.
Gosto desta casa em silêncio, da tarde morna, do livro difícil que me desafia. Gosto também de me recolher, de estar quieta, de saborear da vida essa quietude, não só o seu murmúrio.
Sinto falta da minha cachorra morta. Falta daqueles olhos que me interrogavam, querendo saber o que me acontecia. Tenho saudades da quentura do seu corpo grande, da expressão daquele rosto sempre buscando me fazer companhia.
Neste mesmo livro inquietante, li sobre um acontecimento insólito. Uma mulher que habita uma natureza selvagem, luta com um urso e neste combate, a fera e ela tatuam seus corpos, na pele e nos pelos, com o sangue que se misturou.
Foram marcadas, uma e outra por aquilo que se pressentiu como o fundo humano dos bichos e a ferocidade incomum da mulher, tudo se amalgamando na violência de um encontro inesperado.
No coração das montanhas a massa viva desses corpos que se entranham, apaga os traçados das fronteiras entre o animal e o humano.
Pensei neste encontro sem palavras, na força bruta desses seres imantados, no feitiço que domina o olhar eletrizante. Faísca que suspende o tempo e a respiração.
Depois de luta encarniçada, o urso sai trôpego e se afasta. A mulher combalida, mutilada, quase morta, vê perplexa sangue e pelos que se espalham sobre a neve. Está viva.
Enigmático esse acontecimento descrito.
Parece o retorno de uma experiência que não conhecemos mais. Algo de ancestral, de uma outra era, acontecendo agora.
Neste encontro entre os dois seres, atual e pretérito a um só tempo, vê-se as pegadas – quem sabe? – de uma união fóssil, ruínas dos começos.
O dia está terminando, o sol já desaparecendo.
Terminei meu livro.
Fui tocada por uma cena erradicada da memória dos humanos.
Escute as feras.
Agosto – 2023
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste boletim online.