Conversa ao pé do fogo
A antropóloga Nastassja Martin é conhecida dos leitores brasileiros pela sua obra Escute as Feras, onde narrou seu encontro com um urso na floresta da Sibéria. No seu novo livro A Leste dos sonhos, ela retoma suas pesquisas no Grande Norte e nos convida para um chá fumegante ao lado de Dária, matriarca do povo indígena even.
por Déborah de Paula Souza[1]
Para o povo even, as crianças vão aos sonhos como vão à escola, os adultos podem sonhar com animais que avisam onde estão, oferecendo-se à caça, à pesca, ao sacrifício. Na floresta gelada, não morre de fome quem segue o sonho, mesmo se os xamãs já tiverem partido. É impressionante o sonho de Dária com o cardume de trutas: numa temporada de comida escassa, ela acorda cedinho, vai até o rio e volta com uma cesta cheia de peixes para alimentar sua família, pois as trutas avisaram exatamente onde estariam. E ela sabe, pelo sonho, que recebeu sua permissão para pescá-las. Quando essa permissão não existe, o equilíbrio se rompe. É o que acontece quando o filho de Dária vai atrás das ovas do salmão e pesca muitas fêmeas fora de hora – o caviar está com bom preço na cidade – e enfrenta uma série de problemas por isso. Martin pontua que enquanto ela – branca, ocidental, intelectual – enxerga os problemas como fruto do capitalismo avançado, o clã de Dária, embora não seja ingênuo em relação ao contexto neoliberal (seu povo já foi expropriado de suas terras e rebanhos), permanece conectado aos animais e às forças que operam na natureza.
Na visão animista dos povos originários, tudo o que está vivo tem alma e os bichos praticam formas próprias de comunicação, participando dos acontecimentos, de modo a equilibrar a balança vital. Ali, a malha da interdependência entre os seres não tem nada de misticismo, apenas evidencia que uma vida depende da outra: é mais fácil de ver isso numa floresta do que numa grande cidade desalmada, em que essa malha se rompeu, até o laço entre os humanos está por um fio e os bichos são vendidos a quilo no congelador.
Em Kamtchátka, onde se passa essa história, o volume de peixe e o tempo certo de extração das ovas precisa ser controlado pelo pescador e isso não é apenas uma exigência legal, refere-se a leis ancestrais e acordos entre homens e bichos, selados no convívio diário. Os sonhos exercem ali sua função radical: sonhar para se nutrir, para entrar em contato com o próprio alimento, para reafirmar a conexão com outros seres e espíritos, sonhar para não morrer.
O retorno à floresta
Enquanto no Brasil os yanomami estão segurando o céu para que ele não caia completamente sobre a nossa cabeça, e os garimpeiros deixam na Amazônia um rastro de sangue e mercúrio, no Alasca a invasão é das petroleiras e, na Sibéria, nas terras onde vive o povo even, é a extração de níquel que faz a vida desmoronar. A escritora pensava em comparar os povos originários dos dois lados do Estreito de Bering: o povo gwich’in e o povo even. O povo gwich’in vive do lado do Alasca, colonizados pelos EUA. Sua pesquisa com eles resultou no livro As almas selvagens.
Do outro lado, está a Sibéria, colonização russa, para onde Martin viaja em 2014, e chega ao território Ítcha. O trajeto daria um filme que não é só de natureza selvagem, mas também de fronteiras em que policiais vivem enjaulados em contêineres de plástico, embriagados de vodka. A destruição impera dentro do capitalismo e do comunismo e Martin evoca muita teoria antropológica para dar conta de sua angústia, da dificuldade de abordar outros modos de existência sem mistificá-los, sem apaziguar a torrente de conflitos que envolve suas empreitadas.
Seu objeto de estudo se definiu quando a autora confirmou que algumas famílias, que haviam sido deslocadas de suas terras, voltaram à floresta após o colapso da União Soviética, em 1989. É no clã de Dária que o livro se concentra. Dária e seus filhos viviam ainda no vilarejo Esso, ela começara a ter sonhos recorrentes com a floresta, o rio, a família originária e os espíritos dos mortos. Sua mãe nunca se conformara que uma parte da família tinha ido viver na cidade. “Uma vez fiquei um ano sem ver minha mãe. Dentro de mim, pensava que tinha morrido”. Mas a volta nunca é para o mesmo lugar. O povo even, que vive de caça, pesca e coleta, já havia perdido terras e rebanhos de rena. Antes, eram poucos animais, amigos das famílias. Na colonização soviética, os rebanhos foram confiscados pelo Estado e depois por acionistas, a criação de renas se industrializou. O sofrimento causado por essas mudanças estava coberto por uma capa de silêncio. “Eles não falam muito de problemas porque recusam a catástrofe”, acredita a autora. Existe uma disposição otimista que está mais ligada ao que está por nascer do que ao que está morrendo. “Tudo desmoronou, é verdade”, diz Dária, ao mencionar a queda do regime e o abandono dos colcozes antes tutelados pelo Estado. “Mas os espíritos voltaram durante a noite e nós os seguimos. Porque se você não acredita no mundo, nada se oferece a você”.
Na visão de Martin, o retorno à floresta é uma das respostas do povo even às catástrofes contemporâneas: o agravamento da questão climática e a colonização, que reduziu a cultura dos povos autóctones ao folclore para fins turísticos e tornou sedentários (com terras demarcadas, sujeitas às instabilidades políticas) povos que antes eram nômades. Ainda hoje, Dária lembra: “nós somos nômades”. Ela se fixou na terra demarcada, mas guarda os valores de seus ancestrais. “Os nômades constituíam um coletivo onde quer que fossem”(…) nunca preparavam a sequência da viagem, mas quando era preciso partir, iam sem olhar para trás”, observa Martin.
Para Dária, o mais importante é que que seu clã permaneceu unido e ela conseguiu retornar ao lugar onde nasceu. A escritora também voltou ao território even, depois de ter sido atacada por um urso. Com o rosto ainda inchado pós-cirurgia, ela reencontrou Appa, filho de um xamã que já morreu. Ele não é otimista sobre os destinos do mundo. Vive retirado numa montanha e perguntou se ela estava com dor de dente. Ao ouvir sobre a mordida da fera, Appa fez um gesto afável e ponderou que os ursos são pessoas formidáveis.
Chama acesa
Quando Dária senta-se com Martin perto do fogão ou da fogueira, ela não conversa apenas com a escritora, mas também com o fogo. Porém, quando se dirige a ele, a partitura muda, o tom é quase inaudível, ela recita algumas formulações diante das chamas, no dialeto even. Em muitas situações, as respostas que ela e os membros da família dão às perguntas da antropóloga sobre esse assunto são vagas. A autora presume que eles não concebem como alguém poderia não falar com o fogo, consideram que isso é “óbvio”, embora os mais jovens não se lembrem mais das palavras e dos gestos dirigidos ao fogo, acham que é coisa dos antigos. Seja como for, não é difícil respeitar o fogo no frio rigoroso da Sibéria. A família vive às margens do rio Ítcha e passa períodos de isolamento por causa das chuvas ou tempestades de neve. A morte da mãe de Dária foi precedida de uma profecia doméstica, as brasas da fogueira avisaram.
Invento aqui um diálogo que não existe no livro, na tentativa de resumir a temática da comunicação dos even com os elementos e recuperar o espírito das conversas entre Martin e Dária, que já duram anos. Nessa invenção, retomo palavras e expressão delas, com a permissão de G. Agamben, citado no livro: “Toda narrativa –toda literatura—é, em certo sentido, memória da perda do fogo”.
Martin: Quem é para vocês o fogo?
Dária: Depende do fogo! De qual fogo você quer saber?
M: Sei lá, de todos.
D: Cada um tem um nome. O fogo primeiro se chama tore; o pequeno fogo que guardamos em casa é ulekit. As brasas são torelakakan.
M: Falam com as brasas também?
D: Nós observamos os sinais. Se as brasas caírem de pé, alguém vai chegar, partir ou morrer. Então, quando o fogo se apaga, colocamos as cinzas sobre as brasas que deram o aviso, para que o viajante faça boa viagem.
M: Por que vocês falam com o fogo?
D: Para agradecer. Cantamos para o rio e falamos com o fogo porque sem eles não poderíamos viver. Em casa, na hora de comer, a primeira colherada é sempre do fogo, mesmo que seja sopa. Ninguém se atreve a pegar a comida sem servi-lo primeiro.
M: Além de agradecer, o que você diz a ele todos os dias, Dária?
D: Que ele não devore tudo, que se contenha, não perca o controle de si mesmo. É como se eu dissesse para você: fique no seu lugar! Não imploda nem se espalhe, pois você não está sozinha, você está conosco. O fogo nos faz viver, mas também pode nos matar.
M: E você acha que ele te escuta?
D: Claro que sim! Não tem orelhas, mas escuta de outro modo. (Ela dá gargalhadas).
M: Você o considera um espírito ou algum tipo de deus?
D: O fogo não é deus. É um princípio. Ele ilumina, esquenta, atravessa os corpos. Sem ele não existiria vida, mas ele também é a morte.
M: Um princípio de transformação, então?
D: Sim, de certa forma é isso. No centro da nossa casa, colocamos a vida e a morte juntas. Alimentar o fogo, manter um fogo corretamente é segurar a vida pelas duas pontas.
M: No centro da iurta está o fogão. Vocês sempre constroem a cabana a partir dele?
D: Sim, o primeiro lugar é o lugar do fogo. Nós vivemos ao seu redor. O fogo é o sol dos humanos. Colocamos o sol no centro da casa, assim como colocamos o sol no coração. E você ainda me pergunta se falo com ele? É claro que eu falo! Volódia me disse que você fez essas perguntas a ele também.
M: Fiz e ele me achou burra. Estávamos nos deslocando na mata e eu perguntei por que ele colocou uma vara sobre a nossa fogueira apagada. E ele me disse… que era óbvio! Que se eu quiser informações sobre o mundo devo olhar para o fogo e seu rastro.
D: É verdade, se outros humanos passarem pela mata, é óbvio que olharão para o fogo ou para as sobras da fogueira. A vara indica a direção em que vocês seguiram.
M: Volódia me contou sobre a caça. Ele disse que o fogo muda a natureza de sua presa e é o único que sabe fazer isso. A água dissolve ou mistura, a terra decompõe, mas só o fogo transforma radicalmente e de modo muito rápido. Até aí eu entendi.
D: O que foi que você não entendeu?
M: Ele disse que nós queremos nos parecer com o fogo.
D: Sim, queremos ser a transformação, a vida e a morte ao mesmo tempo, como é o fogo. Mas não sabemos. Mas sabemos chamá-lo, acendemos o fogo todos os dias. Não cansamos de olhar. Ele já existia antes e vai existir depois de nós.
__________
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste Boletim online.