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Ubuntu notas sobre um colóquio

 por Maria de Fátima Vicente[1]

 

Há encontros que abrem mundos.

Voltava de uma festa e a amiga que me dava carona disse que iria a BH para o Colóquio Ubuntu e perguntou, a mim e a outra amiga também presente, se queríamos ir. Aquela ponderou que talvez não lhe fosse possível devido a compromissos familiares a confirmar para aquelas datas. Quanto a mim, me decidi inopinadamente e disse “eu topo”. Até então eu não sabia desse colóquio, mas a proposta me pareceu instigante – Ubuntu – o que poderia ser um colóquio de Psicanálise com esse nome?

A única referência que eu tinha sobre Ubuntu era a referência histórica à Comissão de Verdade e Reconciliação, na África do Sul pós apartheid, em que esse princípio havia sido norteador das práticas daquela Comissão em um país fraturado por décadas daquele regime. Se procurarmos na Wikipedia, encontraremos que a palavra Ubuntu é considerada “conceito da filosofia africana” e referida como sem equivalente em nossas línguas ocidentais (talvez por não termos o equivalente dessa experiência?) e dela se diz que pode significar algo como “eu sou porque você é”.  Sob essas evocações, me decido a ir de pronto ao Colóquio e fico também surpresa por saber que já era um segundo colóquio desses e que eu o desconhecia, o que fortalecerá ainda mais a percepção difusa, mas persistente, que já me acompanhava, de que o protagonismo das produções do eixo Rio-São Paulo tende a acomodar e enrijecer o pensamento. O desejo de mudar isso em mim me impulsionou ainda mais a ir. Tempos depois da volta, passado o Colóquio, comentei no Conselho de Direção do qual participava à época, algo do que vinha pensando sobre o que tinha experienciado por lá e que tinha vontade de escrever sobre isso. Sílvia, articuladora área de Publicações e membro do Boletim, me sugeriu que escrevesse um relato de minha experiência com o Colóquio, para um dos números do Boletim nos inícios do ano de 2024. É o que segue.

Esse foi o segundo Colóquio Internacional de Decolonização e Psicanálise, e se intitulou Ubuntu o mal-estar colonial: nossas terras, línguas, corpos, memórias e horizontes de transformação; realizou-se na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, em Belo Horizonte durante os dias 13, 14 e 15 de novembro. Sua proposta foi a de recolher, produzir, articular e compartilhar de um pensamento e das práxis decoloniais, a partir do conhecimento científico produzido no contexto universitário, da clínica psicanalítica em intensão e extensão e a partir dos saberes tradicionais que se efetivam por meio de outras formas de vida – outros modos de produção e de reprodução da vida, por exemplo, os quilombos, e outros modos de sua celebração, o das artes populares e/ou tradicionais. Pretendeu-se discutir como a “herança histórica e geopolítica dos processos de colonização afeta o inconsciente, o discurso, a memória e as relações sociais e políticas” tendo por referência o eixo Sul-Sul e por perspectiva abrir “espaços para uma teoria e prática migrantes”.

Para realizar essas finalidades tão significativas, as atividades foram intensas, iniciando-se pela manhã, por volta das 8h30/9h e se estendendo até a noite, frequentemente ultrapassando o teto mais ou menos estabelecido das 19h. Teria sido muito exaustivo se as atividades não fossem todas muito atrativas e se não fossem entremeadas pelos cantos e pelas danças de inúmeros grupos tradicionais mineiros, em que as artes dos historicamente postos às margens ganharam destaque e vigor. Contribuiu ainda para o clima de uma certa energia juvenil e esperança revividas o ambiente amigável da universidade, seus estudantes e o onipresente almoço no bandejão universitário, ao qual acorríamos porque o tempo era escasso e os encontros eram alegres; e ainda, a singeleza do café da tarde, café de garrafa térmica, pão de queijo mineiro e bolo caseiro, tudo feito pelos organizadores e partilhado com todas e todos.

As palestras das convidadas e convidados locais e estrangeiras e estrangeiros ocorriam no auditório, no primeiro horário da manhã e no último horário da tarde, o que permitia a presença de todos que quisessem, assim como a eventual priorização desses horários, caso se desejasse descansar ou passear em Belo Horizonte no entremeio. Eu preferi ficar todo o tempo!

A presença de uma grande diversidade de brancos e não-brancos de variadas procedências – chineses, indianos, ingleses nascidos na América do Sul, canadenses, africanos da África do Sul… era sedutora e suas falas foram impactantes. Eram, em sua maioria, professores e pesquisadores universitários, mas eram também militantes e ativistas de suas causas locais, que se articulavam à grande causa decolonial do Colóquio. Grande parte deles era também psicanalista. Dos estrangeiros, retive a apresentação desenvolvida pelo único latino-americano nascido em uma possessão inglesa – a Guiana; e dos locais, a de um padre, cuja presença no programa do Colóquio me havia intrigado.

George, o cidadão sul-americano do Reino Unido, apresentou um estudo sobre a construção social do monstro e da crença genuína no monstro por parte daquele que do monstro se defende e o mata, amparado por seu direito legítimo de único a poder usar da violência. Ele tratou dessa temática a partir dos testemunhos do julgamento de um policial norte-americano, branco, que havia matado um adolescente negro, cara a cara, quando o jovem estava a levantar as mãos sobre a cabeça conforme ordenado pelo policial. A narrativa do réu é genuína e traduz todo o resultado de um treinamento específico direto e indireto, mas principalmente, o enraizamento subjetivo no registro inconsciente dos significantes que configuram as feições do garoto – a importância do cara a cara nessa situação – como algo demoníaco do qual o policial tem não só a obrigação de se defender como a de proteger a sociedade. O palestrante especifica a instauração dos elementos que irão compor o discurso do ódio, as ações segregacionistas e, em última instância, a política de morte que orienta os que têm a prerrogativa do uso da violência armada. Trata-se da construção de uma fé, uma fé laica que separa os que têm direito à vida dos que não têm.

Por outro lado, uma outra dimensão da fé é apresentada pelo padre cristão, a fé na busca da verdade, fé que professa e a que o pertencimento à instituição que o sustenta serve. Ele os utiliza como elementos a serviço da recuperação da memória histórica sobre a existência de uma extensa população negra na Belo Horizonte histórica; ele o faz por meio dos documentos que atestam a concessão da criação de uma capela católica para a população de negros que a haviam requisitado e, por meio desse e de outros documentos da Igreja, desvela os caminhos do apagamento da memória dessa existência, por parte do Estado, quando do planejamento da urbanização de Belo Horizonte. Apagamento realizado por meio da afirmação, por parte dos agentes do Estado, que ninguém habita aquelas terras, que são terras sem povo, repetindo e perpetuando invasões e extermínio dos povos originários como marca colonialista e antecipando a continuidade da negação da existência de povos em uma dada terra que se tornou cobiçável, apagamento que se reproduz no neocolonialismo e neoimperialismo contemporâneos. Curiosamente, temos nesse caso a Igreja como veículo de recuperação da historicidade que o Estado apagou, prolongando momentos históricos recentes da Igreja no Brasil, em que esta esteve predominantemente ao lado dos oprimidos. Uma pesquisadora mexicana, radicada no Canadá, parece poder sintetizar o teor da maioria das apresentações dos palestrantes; ela considera que o significante que especifica esta década é o significante “irrespirável”. O que as palestras de certo modo confirmam, uma vez que, nelas, o predomínio da reflexão, às vezes, intensifica a dimensão angustiante das questões, uma vez que se referem a casos paradigmáticos que marcam como a violência se consolida e se reproduz.

Entretanto, as pesquisas dos alunos universitários de graduação e de pós-graduação, assim como apresentações das Clínicas Públicas fazem um contraponto ao irrespirável e apontam para as perspectivas de abrir espaços para uma teoria e prática migrantes. No primeiro dos casos, pelo predomínio da investigação, no segundo, pelo predomínio da intervenção em extensão, em condições ainda pouco familiares à Psicanálise. Em ambos os casos, o futuro também fica anunciado pela presença majoritariamente de estudantes e profissionais jovens.

No âmbito das pesquisas acadêmicas, apresentadas à discussão em salas cujo número de presentes, assim como a coordenação cuidadosa, possibilitavam as conversas, a participação era muito estimulante. Ressaltava, para mim, não apenas e não principalmente o conteúdo das apresentações, que eram bastante significativos e importantes, mas, especialmente, o fato que seus agentes eram, em número expressivo, jovens mulheres e homens, pardos, pardas, negras e negros, trazendo não só sangue novo ao pensamento, mas vozes jovens para lutas ancestrais. Fortemente impressionante reconhecer o acerto das políticas de cotas, que, neste momento, já resulta na formação de muitos mestres e doutores forjados nas problemáticas essenciais desta sociedade sob a perspectiva decolonial e atentos às condições necessárias à sua efetivação resolutiva.

No âmbito das clínicas que atuam junto a grupos específicos, territórios específicos e/ou periféricos, instituições críticas, clínicas cuja nomeação abrangente e congregativa se consolidou sob a denominação Clínicas Públicas, as apresentações foram diversificadas e, de certa forma, um pouco exíguas para situações que envolviam problemáticas muito complexas. Tratava-se de um colóquio dentro de outro, ou seja, as apresentações das Clínicas Públicas estavam organizadas como um encontro bienal entre elas, ao qual o grande público presente em Ubuntu pôde ter acesso.

Foi bastante interessante ouvir a exposição, ainda que geral, de muitas intervenções desafiadoras, o modo como cada grupo lidava com seus desafios, e o desafio comum, relacionado a (não) ter dinheiro, ou seja, quando se tem a possibilidade de subvenções que à primeira vista poderiam facilitar a continuidade do trabalho, mas que, frequentemente, introduzem uma dimensão de hierarquização e diferenciação de lugares a qual havia podido ser ignorada até então. A mim chamou a atenção que grande parte daqueles trabalhos havia se iniciado por volta de 2016, ano ao qual associei a ascensão política da direita no âmbito do governo federal, efetivado pelo governo Temer, após o golpe contra Dilma Rousseff e que haviam continuado durante todo o período bolsonarista. O que as caracterizaria também como respostas de resistência política àquela situação. Torço pela continuidade dos trabalhos, mas fiquei preocupada pelas condições necessárias à sustentação de projetos tão exigentes, embora muito vivificantes. Apostei silenciosamente na força da juventude! Apenas assisti às discussões, não me vi em condições de participar, mas apenas de ouvir e aprender.

Minha angustiosa apreensão quanto ao futuro imediato daquelas ações de intervenção psicanalítica se dissipou um pouco com o renovado frescor das vozes ancestrais atualizadas, que trouxeram sua experiência de persistência e de luta historicamente contínua, ainda que silenciadas, ainda que em risco constante de apagamento… As vozes das mulheres quilombolas do quilombo citadino em que se deu a finalização do Colóquio.

No primeiro momento, meu estranhamento quanto ao que poderia ser um quilombo no interior de uma metrópole. Grande percurso de Uber e chegamos a uma rua inclinada, em um bairro mais ou menos distante dos bairros por onde eu havia circulado, mais ou menos com aparência de população de classe média baixa e um ar de cidade do interior com crianças nas ruas. Ouço então as falas das mulheres, que historizam a luta pela reivindicação daquelas terras, pertencentes a seus ancestrais escravizados e posteriormente libertos – novamente a questão da terra e do território. Me dou conta que se trata de domínio e de pertencimento como posições em confronto, a propriedade da terra versus o pertencimento ao território e o manejo de seus usos e de sua ocupação. Penso entender que quilombo é como ubuntu, uma palavra que não tem equivalente em nossas línguas ocidentais, porque não temos delas a experiência que lhes dá lastro. Compreendo que essas experiências nos são inacessíveis, pois não são nossas, mas que essas palavras nos franqueiam passagens a esses outros mundos, passagens que nos cabe assegurar com novas e permanentemente renovadas trilhas. Criando os lastros de nossas experiências para, talvez, por fim, atingirmos essas palavras e criarmos outras, novas, junto com aqueles que as criaram anteriormente.

É dessa forma que entendo o sentido da última apresentação que encerrou o Colóquio, a criação de trilhas de acesso. Tratou-se de uma conversa com um convidado estrangeiro, o incansável, poliglota e fecundo psicanalista Thamy Ayouch que apresentou seu trabalho ainda em estado embrionário, de elaboração. Trabalho por meio do qual realiza um certo modo de retorno a Freud: à luz da interseccionalidade de raça, gênero e classe, na perspectiva decolonial de produzir a teoria e prática migrantes. O autor terá por objeto a sexualidade infantil, conforme discutida por Freud no texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, de 1905. É cedo para saber as conclusões, mas a notícia de que há um processo como esse em curso é em si muito entusiasmante.

Como, aliás, foi todo o Colóquio.

Recomendo a todas e todos um possível terceiro colóquio.

Eu estarei lá.

São Paulo, 24 de março de 2024.

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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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