Sobre o Concurso de Estudantes Dr. Jorge Rosa
XII CONGRESSO FLAPPSIP
PSICOANÁLISIS BORDES Y DESBORDES
Transformaciones em tempos de desmesura
Santiago, Chile 13, 14 e 15 de outubro de 2023
por Elcio Gonçalves[1]
“Seria uma tolice tentar deter o furacão ou a vertigem civilizatória em que vivemos. Trata-se de não ceder à perplexidade e entender o que podemos” (Marcelo Viñar, 2013)
Foi com essa epígrafe que o(a)s colegas da Sociedade Chilena de Psicanálise (ICHPA), integrante, como o nosso Departamento, da Federação Latino Americana de Associações de Psicoterapia Psicanalítica e Psicanálise (FLAPPSIP), enunciaram e convidaram, a todos os seus membros, a participar do Congresso de 2023, com apresentação de trabalhos e workshops teórico-clínicos.
Como ocorre em todos os congressos da associação, os colegas em formação, nos institutos e associações filiadas, também foram convidados a participar do mesmo, enviando seus trabalhos, através dos quais concorreriam ao prêmio Dr. Jorge Rosa.
O disparador em torno do qual o congresso foi organizado implicou em refletir sobre as “novas” bordas e as transformações requeridas, à psicanálise e aos psicanalistas, na sua escuta e manejo clínico, num momento de sensíveis transformações na Cultura e seus transbordamentos.
Situando-nos sobre o que foi colocado em questão, sigamos a proposição do próprio conselho científico junto à comissão organizadora:
“Poderíamos nos perguntar nesta atual situação globalizada, onde há pontos em comum, que atravessam diferentes países e formas culturais, se talvez estejamos passando por uma crise civilizatória. Vários autores como Marcelo Viñar, Bifo Berardi, ou o próprio Freud, em 1933, em “O porquê da guerra”, anunciavam esta possibilidade.
Em 1919, um ano após o fim da Primeira Guerra Mundial, Ferenczi referiu-se à crise civilizatória, insinuando que a psicanálise não tinha remédio para as psicoses massivas.
Pensamos nas bordas e transbordamentos como um processo. Quando as bordas de uma civilização entram em crise, um desequilíbrio irrompe, dando lugar aos transbordamentos necessários para o surgimento de outras ideias, experiências protagonistas, é o tempo do inédito.
Os últimos fenômenos que nos têm afetado globalmente tornaram visível, além de uma enorme desigualdade, “um desequilíbrio de altíssima instabilidade que já existia, entre o humano e o mundo”. (A. Stolkiner).
Perguntamo-nos de que forma as bordas se deslocam, se opacam, as produções humanas se desprendem de seus enquadramentos e de suas supostas certezas. Podemos pensar em transbordamentos como processos situados, cujo futuro não conhecemos. Podem ser vitais ou mortais.
Como se constroi a subjetividade nestes tempos de incertezas e imprevisibilidade?”
A partir dessa complexa questão foram propostos os seguintes eixos temáticos:
TRANSFORMAÇÕES SÓCIO–CULTURAIS
BORDAS E EXCESSOS DA CULTURA E DA VIDA COTIDIANA
. Psicanálise nas bordas.
. A desmesura do poder: perversidade / permissividade do poder.
. Os movimentos de reconstrução – restituição da memória e historicização em tempos de transformações.
. O tempo do inédito.
. Transbordamentos como processos situados vitais ou mortais.
CIRCULAÇÕES, MIGRAÇÕES E TRÂNSITOS
. O nomadismo do século XXI. Causas e consequências.
. Tráfico de pessoas, tráfico de drogas, racismo, ódio.
. Movimentos migratórios. O fenômeno migratório na América Latina.
. Psicanálise e movimentos sociais.
. Movimentos sociais e tecnologias digitais, novas práticas de resistência.
MODELOS PARA MONTAR. CULTURA E ÉTICA
. Viver Bem. Políticas de Cuidado. Políticas Públicas.
. Direitos Humanos. Novas formas de resistência. Práticas de cuidado como responsabilidade social.
. Qual o tratamento atual para crianças e adolescentes?
. Segurança: inseguro quem?
. Consequências do individualismo. Que cultura diante da indiferença do semelhante?
PSICANÁLISE NAS BORDAS
SOBRE A CLÍNICA
. Desmesura dos diagnósticos
. O mundo em que vivemos. Consumos problemáticos.
. Transbordamentos no espaço clínico.
. Psicanálise. Interdisciplina. Incapacidade.
. Arte e psicanálise.
. Abordagem aos idosos perante a incerteza.
. Problemas das bordas na clínica psicanalítica.
. O jogo e a desmesura no trabalho com crianças.
. A formação de analistas (imediatismo e velocidade)
BORDAS E TRANSBORDAMENTOS COMO PROCESSO.
CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE EM TEMPOS DE INCERTEZA
. Novas formas de comunicação. Excesso de informação.
. Temporalidade. Tempo e velocidade.
. Tecnologias e processamento psíquico.
. Fortaleza do tempo sobre o espaço e o tempo real.
. O não-lugar. O inabitável.
MESURA E DESMESURA.
SOFRIMENTO PSÍQUICO CONTEMPORÂNEO. O CORPO COMO UM PERGAMINHO DE HISTÓRIAS.
. A diversidade de corpos e sexualidade.
. Corpos que falam.
. Psicanálise e diversidade.
. Diversidade e diferença.
. Psicanálise e gênero.
. Violência doméstica.
. O vício – figura da época?
. Os lutos e o Covid. Experiências de desamparo.
Como podemos verificar, a psicanálise e os psicanalistas, enquanto sujeitos singulares e cidadãos, independentemente de seu país de origem ou filiação, também padecem da sintomatologia coletiva e do “espírito do tempo” pelos quais são atravessados.
Parafraseando Martin Heiddegger: “… tudo o que é humano, não me é estranho”. Parece possível verificar que o volume de eixos e temas proposto para o nosso último congresso não foi capaz de evitar o que o próprio disparador pôs em questão: Tempos de excessos, com transformações e transbordamentos, e suas consequências nos processos de subjetivação.
Para quem não sabe, a FLAPPSIP foi criada no Salão dos passos perdidos (um nome próprio sugestivo) no Palácio Legislativo, de Montevidéu – Uruguai em 21 de maio de 1998 e o discurso de abertura foi proferido pelo professor Dr. Jorge Rosa, reunindo naquele momento algumas instituições de países vizinhos que, além do Brasil, foram: Argentina, Chile, Peru e Uruguai.
Num ponto de seu discurso fundador, Dr. Jorge Rosa frisou o que há ainda hoje de significante nessa proposta de associação:
“Juntos trocamos ideias e juntos começamos a cristalizar esse projeto. Consideramos que o intercâmbio enriquece, que as nossas instituições são em parte semelhantes e diferentes, mas que nos encoraja ou deseja que partilhemos o progresso científico, ou o conhecimento mútuo e o desenvolvimento da teoria e da prática da psicanálise nas suas diversas vertentes”.
Hoje sabemos que a “cristalização” não é indicada num mundo em constante e permanente transformação; porém, segue sendo fundamental que alguns pilares se mantenham tão estáveis quanto possível na psicanálise, fortalecendo dinamicamente a escuta clínica e a ética que lhe é requerida, sem se deixar cair na tentação de uma formação inconsistente e imediatista, a exemplo da tentativa de profissionalização sindicalizada ou regulamentada pelos padrões MEC de educação, como têm ensejado alguns grupos.
Essa longa introdução visa nos aquecer e posicionar sobre o que foi o XII Congresso da FLAPPSIP, de 2023, cujos trabalhos apresentados por colegas do nosso Departamento foram bem acolhidos e deverão ser novamente compartilhados, intramuros, no DIA FLAPPSIP, no nosso Departamento, a ocorrer nos dias 12 e 13 de abril próximos; bem como a origem da FLAPPSIP e, consequentemente, do prêmio Dr. Jorge Rosa – que visa, entre outras coisas, estimular a troca entre colegas em formação nas suas diferentes instituições filiadas.
O concurso Dr. Jorge Rosa no ano de 2023 contou com a participação de 22 trabalhos, com os seguintes pré-requisitos:
. anônimos (com identificação através de pseudônimos)
. inéditos
. com autoria individual ou grupal
. num formato máximo de seis páginas mais bibliografia
. formato A 4
. espaço duplo
. letra: Arial 12
.citações conforme normas da APA
e critérios de:
. pertinência temática
. originalidade
. rigor conceitual
. inserção nas problemáticas socioculturais latino-americanas
. contextualização
. aporte reflexivo à psicanálise contemporânea
.atualidade da problemática trabalhada.
Tendo aceito o convite das colegas do grupo representante da FLAPPSIP no nosso Departamento, composto por:
Silvia Alonso (Secretaria Científica da Diretoria da FLAPPSIP biênio 2024-2026)
Danielle Breyton (Delegada)
Helena Albuquerque (Delegada)
e grupo de apoio composto por:
Mara Selaibe
Maria Aparecida Barbirato
Maria Beatriz Vannuchi
Silvia M Moraes Gonçalves
Silvia Ribes
Tive o prazer de conhecer as colegas:
Marcela Marsenac (ASAPPIA – Associação Argentina de Psiquiatria e Psicologia da Infância e da Adolescência)
Olinda Serrano Dreifuss (APPPNA – Associação Peruana de Psicoterapia Psicanalítica de Crianças e Adolescentes)
com quem compus a comissão julgadora do prêmio, bem como o conteúdo dos trabalhos enviados que, na sua maioria, além de atender aos pré-requisitos propostos, nos pareceram totalmente bem investidos e dedicados ao proposto, dificultando de certo modo a atribuição de valor na escalação dos “melhores”. Não por acaso, tivemos além dos três primeiros colocados o acréscimo de duas menções honrosas:
. Primeiro lugar
Valentina Bravo Pelizzola, “Reflexiones en torno a la clínica psicoanalítica con adolescentes: Lugar, función y posición del analista”. Chilena, Postgrado ASAPPIA.
. Segundo lugar
Sergio Correa, “El trabajo psíquico de sobrevivir y las perturbaciones en el sentimiento de estar vivo: una modalidad del sufrimiento psíquico para las subjetividades latinoamericanas en riesgo de deshumanización” Colombia, ASAPPIA.
. Terceiro lugar
Fernanda Almeida, “a COR da PELE do CORPO que (Eu)habito”, Brasil, Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES Sapientiae.
e duas menções honrosas:
. Primeira:
Rodrigo Civetta, “El dispositivo psicoanalítico interpelado: desbordes y neogénesis”, Argentina, ASAPPIA.
. Segunda:
Gimena Abasto “Por un psicoanálisis que pueda seguir escuchando”, Argentina, AEAPG.
Orientado pela ordem decrescente na hierarquia dos trabalhos classificados (conforme a máxima: “os últimos serão os primeiros”) recorto um pequeno parágrafo do trabalho de Gimena Abasto, que condensa parte da atualidade de seu pensamento, num artigo que em breve poderá ser acessado por completo, no próximo número da revista FLAPPSIP: “Por um psicoanálisis que pueda seguir escuchando” (2ª Menção honrosa).
“… hoje a psicanálise deve poder sustentar sua abertura ao incerto, suportar as tensões das revisões intra–teóricas e não deixar de apostar no gesto freudiano de escutar novos padecimentos subjetivos. Quando digo novos, não faço referência àqueles que antes não existiam, mas que graças a uma história de conquista de direitos em nosso país (Argentina) hoje chegam ao consultório subjetividades diferentes às de um tempo anterior: pacientes pobres, pacientes trans travestis, pacientes de povos originários que têm muito o que dizer; e do nosso lado fica a responsabilidade de poder escutar, ainda quando estes padecimentos atentem contra a coesão conceitual de nosso corpo teórico”
Recupero, da sua argumentação, o momento atravessado pela Argentina e sua situação política pós-pandêmica e em crise político-financeira, em que recorre à distinção proposta por Silvia Bleichmar (1999) entre “constituição psíquica e produção de subjetividade”, reafirmando que: a primeira faz referência a “variáveis cuja permanência transcende certos modelos sociais e históricos” que podem ser mantidas no campo específico da psicanálise, enquanto a segunda inclui “aqueles aspectos que compõem a constituição social do sujeito, em termos de produção e reprodução ideológica e de articulação com as variáveis sociais que o inscrevem num tempo e espaço particulares do ponto de vista da história política”.
A 1ª posição de menção honrosa coube a Rodrigo Civetta, com o trabalho “El dispositivo psicoanalítico interpelado: desbordes y neogénesis”, também da Argentina (ASAPPIA), pondo em questão as bordas, as leituras, conceitos e recursos clínicos e o que pensamos a respeito dos modelos psicopatológicos atuais. O que dizer e como pensar as situações de crise, os episódios de desorganização e de descargas massivas de afeto, mediante o discurso ou das atuações, que põem à prova as capacidades de ligação entre as representações simbólicas do Eu, dos pacientes e dos analistas, impondo-se e desafiando a nossa escuta, teorizações flutuantes e capacidades de simbolização?
Em outras palavras: como trabalhar com os transbordamentos impostos aos diagnósticos e às estruturas fundantes (neurose, psicose e perversão) que extrapolam as proposições em torno do Nome do Pai, bem como, a nível clínico, de tudo aquilo que na escuta ultrapassa o desvelamento do inconsciente e seus sintomas mediante a atenção flutuante e a associação livre, mais voltados à clínica das neuroses?
Sobre o que o autor, também acompanhado pela teorização de Silvia Bleichmar (2006), propõe um modelo de escuta dos desbordes do dispositivo analítico, através de um trabalho de revisão, recomposição e produção de algo novo – uma neogênese capaz de abarcar a nova e atual pluralidade de sofrimentos psíquicos, cuja expressão psicopatológica requer que pensemos outras conceitualizações e ferramentas.
Concluindo que é urgente pensar numa prática clínica situada, arraigada e delimitada por um contexto sociocultural e histórico, na qual as trocas nos modos de produção de subjetividade, que teriam gerado grandes déficits de narcização e simbolização, possam dar lugar a uma nova qualificação dos afetos, capacidade de ligação e de articulação simbólica, assim fazendo frente aos excessos intrusivos, provenientes “de fora” – promotores de rupturas nos laços sociais e nas associações de um sujeito.
Sobre o 3º lugar no concurso Dr. Jorge Rosa (2023), ele foi atribuído com mérito à Fernanda Almeida, com o trabalho “a COR da PELE do CORPO que (Eu)habito”, aberto com um trecho da canção Ismália do rapper, cantor, compositor e apresentador brasileiro Emicida:
“Ela quis ser chamada de morena
Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena
A raiva insufla, pensa nesse esquema
A ideia imunda, tudo inunda
A dor profunda é que todo mundo é meu tema.”
Partindo do impacto provocado por uma peça de teatro “OBÍNRIN ALÁGBÁRA – MULHERES FORTES” e de seu conjunto musical de fundo, composto de tambores e atabaques, na qual, numa das cenas, uma das personagens entoava um canto: “minha mãe foi uma mulher preta!” e suas repercussões em análise, a psicanalista põe em questão a sua “máscara branca” e a proteção defensiva da qual havia se servido até então.
Da Descida aos infernos: a motivação da escrita, passando por depoimentos pessoais e por sua concepção de racismo: “não é um fenômeno social episódico ou patológico, o racismo na sociedade moderna contemporânea é constitutivo do modo de produção capitalista” tomando como referência Clovis Moura e Florestan Fernandes, na esteira de Silvio Almeida e do conceito de racismo estrutural, a colega discorre com muita apropriação sobre o racismo e seus desdobramentos, acrescentando à questão proposta pela FLAPPSIP “Como se constrói a subjetividade nestes tempos de incertezas e imprevisibilidade?” o seu acréscimo pessoal:
“A psicanálise e os psicanalistas latino-americanos estão em condições de escutar as dores e os sofrimentos conscientes e inconscientes atravessados pelo racismo em tempos de resistências e pactos narcísicos por parte da branquitude, e por outro lado, das insurgências disruptivas por parte de sujeitos racializados?”
Entre Freud e Fanon, contando com a perspectiva de Paim Filho, Davison Faustino, Lélia González e seu conceito de Amefricanidade[2], recupera a presença histórica de Virgínia Leone Bicudo (a pioneira, psicanalista negra, credenciada pela IPA nos anos 50) e Neusa Souza Santos, já falecidas, além de autoras contemporâneas como Izildinha Baptista Nogueira, Maria Lucia da Silva e Cida Bento com um conjunto de novas elaborações metapsicológicas e ético-políticas em torno do racismo. A autora passa por, e coloca o leitor em, uma reflexão significativa sobre o tema, reunindo para além de seu depoimento pessoal, várias questões conceituais a serem apropriadas, através de um necessário letramento, culminando com eventos da contemporaneidade e a violência preconceituosa, recuperando a questão: VIDAS NEGRAS IMPORTAM? (Minneapolis, EUA – George Perry Floyd Jr., 2020) refletindo com Judith Butler (2021): quais as vidas que têm valor?
Com destaque para COR, PELE, CORPO: A constituição do Eu e o tornar-se negro a colega busca responder na conclusão de seu texto, “quais são os impactos do racismo na constituição dos sujeitos?” algo que vou deixar aqui em aberto, considerando a proximidade do nosso próximo evento DIA FLAPPSIP onde a própria autora nos dará o prazer de discorrer sobre o tema e conosco dialogar presencialmente.
Sobre o segundo lugar na classificação do concurso, foi eleito com destaque o texto de Sergio Correa, que concorreu com o artigo “El trabajo psíquico de sobrevivir y las perturbaciones en el sentimiento de estar vivo: una modalidad del sufrimiento psíquico para las subjetividades latinoamericanas en riesgo de deshumanización” Colombia (ASAPPIA).
Sua epígrafe, tomada de empréstimo de Piera Aulagnier[3]: “? A qué condiciones tiene que responder la organización del campo social para que el sujeto que toma lugar ahi no tenga que pagar esta entrada com um precio que pondria em peligro su funcionamento psíquico?”, fala por si.
Afirmando que as condições sociais, históricas, ético-políticas e econômicas são as responsáveis pela produção de sujeitos e de suas formas de expressão e sofrimentos, o autor nos interroga sobre o que fazer dos “restos” refletidos nas formas de sofrimento inconciliáveis entre a Europa e a América Latina, para refletir sobre os desafios à psicanálise no nosso continente.
Apoiado em Silvia Bleichmar, Freud, Castoriadis e Mbembe, dentre outros, Sergio põe em evidência as formas de precarização do Eu, como resultado de inúmeros atentados à vida identitária na América Latina, face a procedimentos de poder e de mecanismos de modulação do desejo, a serviço de necropolíticas que incluem a desumanização como parte da gramática da vida cotidiana.
Enumera processos desumanizantes, fruto da dessubjetivação, com perda dos enunciados próprios à estruturação de sujeito, com base nos Ideais, que resultam em queda na organização do próprio Eu, à medida que grande parcela das populações necessita deixar de ser quem é, para buscar um modo de inserção que lhe permita sobreviver.
São processos, afirma o autor, de desmantelamento da subjetividade na América Latina, que têm em comum democracias frágeis, edificadas sob uma lógica extrativista, associadas a um capitalismo neoliberal tardio, que reúne: marginalidade crescente e pobreza, economias do narcotráfico, exploração do trabalho, injustiça social, impunidade jurídica, corrupção estatal, violência social, dispositivos políticos, individualismo dessubjetivante, decomposição das relações com o semelhante, exploração infantil, criminalização histórica de protestos sociais, assassinato de líderes, além de estigmatização da juventude.
O sentimento de estar vivo (Bleichmar S., 2002) é recuperado como fundamental para a geração de políticas de bem-estar, como forma de combate aos processos de dessubjetivação, desidentificação e desfiliação. Neste contexto, a vitalidade subjetiva seria um antídoto fundamental para a regulação econômica do aparato psíquico, com base na preservação narcísica da representação do Eu e da apropriação da própria representação de existir com suas simbolizações.
Interrogando-nos sobre: com o que pode a psicanálise latino-americana contribuir na redução dos sofrimentos relacionados à subjetividades sob risco de desumanização?, afirma que, embora os sofrimentos narcísico-identitários sejam próprios das neuroses traumáticas ou das neuroses atuais, não há saída individual.
Conclui que, se a prática psicanalítica é um dispositivo de subjetivação e um recurso que transforma o conteúdo traumático em representação simbolizada, somos convocados, pela via das simbolizações em trânsito (Bleichmar S., 2009), a nos colocar a serviço de denunciar os modos em que o mal-estar é produzido e cristalizado nos sujeitos, a partir de nossa própria prática e escuta clínica.
Finalmente, chegamos ao primeiro colocado no concurso Dr. Jorge Rosa, com o delicado e precioso trabalho de Valentina Bravo Pelizzola, “Reflexiones en torno a la clínica psicoanalítica con adolescentes: Lugar, función y posición del analista” (Chile – ASAPPIA) que nos põe frente a frente com a especificidade da clínica da adolescência e com tudo o que com ela nos é requerido nos processos de subjetivação como: tolerância, paciência, criação, disposição e disponibilidade subjetiva.
Concebendo a clínica como espaço de recomposição simbólica e de resgate de inscrições não historicizadas pelo Eu, pergunta-se a autora: como pensar metapsicológica e clinicamente as intervenções quando a palavra falta ou se ausenta? Quando os adolescentes são lançados a atuar mais do que a falar?
Devemos abandonar, diz ela, a ideia de que a ausência de associações emergem necessariamente da repressão, resistência ou oposição, sendo encontrada em seu lugar uma insuficiência na capacidade de estruturar um pensamento, devido à fragilidade na constituição temporal própria à tópica do pré-consciente e da massa de representações do Eu, cruciais no processo de reorganização subjetiva, onde a rede subjetiva do Eu é posta à prova em sua função defensiva e na sua capacidade de ligação e simbolização das excitações traumáticas, iniciadas com os conflitos da puberdade.
Apoiada em Silvia Bleichmar (2002), ela também, nos lembra que na sociedade ocidental existe uma ruptura nos processos de subjetivação, uma coisificação dos processos de inserção social, com o desaparecimento do reconhecimento do outro como outro. Assim, o sofrimento atual se daria mais por fragmentos, aos pedaços e com a perda de bordas; os sintomas, no sentido clássico, parecendo não se apresentar.
O que é escutado?, pergunta-se.
Propõe-se a tratar de adolescentes invadidos por ansiedades de morte, impotentes frente à ausência de um adulto que os sustente, com sensações de desintegração, com peças que faltam ou sobram em seus corpos, relações ou ao próprio psiquismo. Vivem sob a crença na insuficiência de recursos próprios para enfrentar a passagem à vida adulta. Com sensações de irrealidade e desentendimento frente ao espelho e à própria imagem, invisíveis ou visíveis demais para os olhos sem corpo, que se dão a ver ou cegam; angústias de castração e aniquilamento onde o Ser mais do que o Ter é posto em jogo. E, ainda, sob questões primárias relativas à origem da existência, vinculadas a imagens impossíveis de entrelaçar e ligar, associadas por vezes à angústia massiva ou a vivências de confusão, fragmentação e difusão. Fragilidade nas representações que envolvem o Eu e conduzem a episódios de sensações massivas de vazio e estados de confusão que, sem um continente e capacidade de estabelecer uma ponte simbólica com a própria história do paciente, são de difícil ligação.
Situações em que o desligamento entre representações que ditam a fragilidade narcísica se evidencia, com frequência nos diagnósticos de adição, transtornos da imagem corporal, inibições, somatizações ou relações interpessoais violentas, com dificuldades no vínculo amoroso, vivências de desamparo e abandono, tédio e atuações.
Partindo de um modelo cujo aparato psíquico está aberto ao Real, submetido ao traumatismo, num período específico da vida no qual o psiquismo está se reestruturando, identificando e recompondo, para além do que fora herdado da primeira infância e no qual faltam os recursos de representação – palavra e figurabilidade, caberá ao analista a sustentação em busca de palavras possíveis que possam sustentar seu discurso durante a elaboração. O que requer não só a interpretação entre o passado histórico e a experiência transferencial, mas onde será necessário ainda criar um espaço de figurabilidade para o novo, tanto psíquica quanto somaticamente.
Será necessário, diz a autora, ingressar com abertura para colher através do material, aparentemente não analítico, tudo aquilo que possibilite conhecer a massa de representações, identificando fantasias além de aspectos ligados, ou não ligados, que se prestem à reconstrução psíquica, requerendo não somente a palavra do analista, mas também seu corpo, paciência e presença, do lúdico e do singular – seu estilo pessoal.
Cabe ao analista, então, colocar-se como uma ponte, um terreno que não apenas recebe projeções e espera a aparição da palavra do outro, mas que favorece a palavra capaz de gerar um espaço propício para que esta surja, sendo fundamental, neste ponto, a plasticidade do analista. A abstinência nesse caso será de juízos ideológicos, moralizantes, pedagógicos, porém não da capacidade para criar formas, que mesmo parecendo pouco neutras, propiciam a geração de um vínculo, um espaço onde é possível pensar-se e ser pensado – metabolizar em companhia.
Função esta, necessária e, em boa parte das vezes, a ser ocupada também pelos pais, que nessa clínica, requer a reconstrução de partes dessa função, principalmente quando, frente a vínculos marcados pela fragilidade e violência, foram, eles mesmos, pouco libidinizados e narcisados.
É frequente receber pais angustiados, com dificuldade para escutar o que poderia ser um chamado de ajuda ou socorro por parte de seus filhos, ansiosos e angustiados por ver mudanças em seus comportamentos.
Silvia Bleichmar (2000) já frisava ser frequente os filhos serem parasitados pelas angústias catastróficas dos pais a respeito do futuro incerto, pois vendo-se despojados de certezas, encontravam-se sem propostas mínimas a oferecer.
Concluindo, a autora propõe que a intervenção analítica em tempos de recomposição psíquica adolescente se transforma em intervenção simbolizante, possibilitando a criação de algo novo, como forma de resgate de inscrições não historicizadas pelo Eu. Sobretudo nesta etapa, que não só implica dor a respeito da infância, senão também num momento de profunda criatividade e progresso psíquico. Criamos pontes, diz ela, armamos um tecido para recompor os elos esgarçados. Uma vez criados, podemos avançar em seu esgarçamento, para que advenham representações e ligações próprias ao paciente.
Encerrando esse relato e sobrevoo, graças à participação como jurado desse importante momento de elaboração individual e coletiva, resta parabenizar a iniciativa da comissão organizadora do concurso e do congresso, bem como agradecer às colegas do Departamento pelo convite a fazer parte dessa atividade, bem como ao grupo do Boletim online pela oportunidade de compartilhar a experiência na atividade.
Um forte abraço e até breve!
__________
[1] Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] “Em uma interpretação mais simplista poderíamos limita-lo à condição geográfica dos povos negros nas Américas”.
[3] ?qué es la realidade para el psicoanalista?, 1986.