Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Luto[1]

por Rubia Delorenzo[2]

 

Prepararam o corpo sem vida.
Colocaram-no no centro da sala.
Era hábito antigo.
Morrer em casa. Velar o morto, espantar fantasmas.
Serviram o café e o caldo quente para enfrentar a noite longa. Estavam de costas para a dor.

Atordoados.
Calados e imóveis.
Seus olhos fugiam dos roxos olhos da falecida.
De seu sono vazio.
Nos olhos de todos, inchados, lodosos, um infinito cansaço. Cheios de água e areia, estavam cegos. Sombrios de pesar. Soluços descompassados interrompiam a já difícil respiração.

Não conheciam a ausência.
Só a sentiriam depois.
Quando desmanchassem a casa, abrissem as gavetas, os armários das louças. Quando encontrassem os guardados e descobrissem os segredos.
Examinando o coração da gaveta da penteadeira sentiriam a ventura de tocar tantas relíquias: o espelho marroquino trabalhado no metal, a tesoura de entiotar, um leque conseguido nas touradas de Madrid, o colar de pérolas, o camafeu da virgem.

Chorariam de novo.

Na gaveta da estante de livros, ali estariam as cartas de amor recebidas, as fotos em sépia, e pequenos símbolos de grandes alegrias.
Os registros dos nascimentos todos, os feixes de cabelo de criança amarrados num lacinho, o primeiro dente de leite, o primeiro brinco de ouro na caixinha de veludo.

E finda essa viagem pelo demorado tempo do luto, a palidez e o oblíquo dos olhos, abandonariam cada uma daquelas faces tristes.

Outubro 2023

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[1] Inspirado em Interior de pobres II, 1916-1921, Lasar Segall. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/interior-de-pobres-ii-lasar-segall/oQGYVDe-lI1EzQ

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é colaboradora deste Boletim online.

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