O grupo como envelope psíquico em tempos de pandemia e de barbárie no Brasil[1]
por Thais R. G. Angelo, Marcia E. Cerdeira, Ana Helena D’Ângelo Seixas[2]
Introdução
Quando trabalhamos com o traumático faz-se necessário lançar mão de diversos recursos, dado que estamos diante do que é irrepresentável. Comecemos, assim, com uma imagem: a de um naufrágio. Em 2020, o Brasil atravessou uma situação de profundo desespero que se tornou ainda mais alarmante, pois o capitão e os seus tripulantes – esses que, num momento como aquele, deveriam orientar e auxiliar – estavam mais desorientados que os passageiros. Frente a esse caos, alguns passageiros decidiram construir uma plataforma que serviria de apoio a muitas pessoas que estavam ali no mar, à deriva.
Aqui começa o relato sobre alguns náufragos sobreviventes. Em março de 2020 foi criada uma plataforma na qual psicólogos de todo o Brasil poderiam se inscrever para realizar atendimentos online a profissionais da área da saúde que estavam na linha de frente do combate à Covid-19. 4.238 psicólogos se voluntariaram para participar. A esses psicólogos foi oferecido um serviço online de suporte a seu trabalho. Esse suporte consistia em supervisão individual, supervisão grupal, grupo de discussão teórica ou grupo de elaboração para quem desejasse participar.
O que abordaremos neste artigo serão os grupos de elaboração. Trata-se de um estudo de caso à luz do conceito de envelope psíquico, tal como desenvolvido por Anzieu, Houzel e Ciccone. Foram reunidas cenas de dois grupos, um co-coordenado por Angelo e Seixas, e outro coordenado por Cerdeira. A beleza do trabalho foi ver a constituição do envelope psíquico, como apresentaremos nas próximas páginas.
Bases teóricas
Ciccone (2001) afirma que o envelope psíquico deve ser compreendido como uma metáfora da função de continência, consistindo em conter e transformar. Nos apoiaremos nessa visão para abordar a função de envelope psíquico do dispositivo de nossos grupos de elaboração.
Houzel (apud Ciccone, 2001) sustenta que o tratamento psicanalítico opera de forma conjunta ou simultânea em três modelos:
- o de descarga, que evidencia o valor catártico da representação pela ação da palavra, ou seja, a descarga da tensão por meio da palavra;
- o de “desvelamento”, no qual o psicanalista desvela o conflito inconsciente, o “fantasma”;
- o de continência, na qual o analisando vivencia um espaço em que suas emoções e seus pensamentos que seu Eu não consegue conter nem pensar sozinho são acolhidos e contidos. Segundo Ciccone, “O espaço da análise é um espaço que contém e transforma as emoções, as angústias, os conflitos. Dito de outra forma, a dor psíquica. E a dor é contida quando ela é compreendida.” (2001, pp. 82-83, trecho traduzido pelas autoras).
Por meio desses três modelos, Houzel aponta a importância da função de continência. Para ele, “o analista, à escuta da transferência de seu paciente e de sua própria contratransferência, percebe o envelope psíquico como uma estrutura de grande complexidade, que não pode ser reduzida a um saco contendo os elementos do psiquismo.” (1987, p.39, trecho traduzido pelas autoras).
O modelo de envelope psíquico nasce do conceito de eu-pele, que também é pensado como metáfora. A pele à qual Anzieu (1989/1985) se refere é a pele em que habitamos no sentido comumente usado de “sentir-se bem ou mal em sua pele”. Anzieu fala de uma dupla sustentação do psiquismo baseada no corpo biológico e no corpo social, mas afirma também que a sobrevivência destes corpos depende de um apoio no psiquismo individual.
O envelope psíquico se constitui por meio da ilusão grupal. Segundo Anzieu, “A ilusão grupal é a ilusão – necessária a uma certa etapa do processo grupal – de que o grupo pode se constituir em um objeto total” (1998, p. 136, trecho traduzido pelas autoras). Anzieu (1993/1975) coloca em evidência três momentos da evolução de um grupo.
Em um primeiro momento, os membros que acabaram de chegar são dominados por uma angústia persecutória. De modo reativo, surge um sentimento de euforia por ter sido liberado dessa angústia. Trata-se de uma etapa alienante e fundadora do narcisismo grupal.
Em um segundo momento, o estado de ilusão grupal permite que o grupo se transforme em um objeto libidinal comum aos participantes e permite que o grupo seja interiorizado por cada um sob o modelo de primeiro objeto de amor do bebê. Esse estado “(…) é espontaneamente verbalizado pelos membros da seguinte maneira: ‘Estamos bem juntos, constituímos um bom grupo, nosso chefe ou nosso monitor é um bom chefe, um bom monitor’” (ANZIEU, 1993/1975, p.65).
O terceiro momento é o de desconexão dos membros que, para acontecer, é necessário que ocorra uma desilusão grupal.
Apesar do grupo de elaboração não ter o intuito de tratamento psicanalítico, esse modelo de envelope psíquico permite-nos pensar na função do dispositivo psicanalítico grupal na elaboração da prática do psicólogo em tempos de trauma coletivo, isto é, a função de conter e transformar a dor psíquica dos pacientes depositada nesses psicólogos, num contexto em que todos (paciente e psicólogo) estão inseridos num cenário crítico.
Então, poder-se-ia pensar que, no contexto em que se desenvolveu o presente trabalho, é pertinente a seguinte colocação de Anzieu (1989/1985, p. 8):
assim, uma tarefa urgente, psicológica e socialmente, parece ser a de reconstruir limites, refazer fronteiras, reconhecer territórios habitáveis e onde se possa viver – limites, fronteiras que ao mesmo tempo instituam diferenças e permitem mudanças entre as regiões (do psiquismo, do saber, da sociedade, da humanidade) assim delimitadas.”
Caracterização dos grupos
O objetivo principal do grupo de elaboração era constituir um espaço de reflexão sobre a experiência clínica dos psicólogos dentro do projeto. Não consistia em atendimento psicoterapêutico, nem em supervisão. Tratava-se de um espaço intermediário entre o psicólogo e sua prática clínica. Os encontros eram semanais e duravam uma hora e meia. Participavam psicólogos de diferentes estados do país, de diferentes vertentes teóricas e em diferentes etapas da carreira. No grupo de Seixas e Angelo notou-se que os participantes eram mais jovens e iniciantes na carreira; no grupo de Cerdeira, a maioria tinha anos de atendimento na área.
Nós, coordenadoras, tínhamos um percurso prévio no trabalho psicanalítico de grupo com foco clínico. Entretanto, a experiência de um grupo com foco na prática profissional era nova. Enquanto coordenadoras, participávamos de um grupo próprio aos coordenadores, que tinha como intuito criar um espaço para discutir a condução dos grupos de elaboração.
Relato de caso
Primeiro momento: contexto brasileiro e formação dos grupos de elaboração
O estado de desamparo acompanha o homem desde sua tenra infância. A impotência original do bebê frente às suas demandas cria a necessidade de sermos amados durante toda a nossa vida. Em “O futuro de uma ilusão” Freud afirma:
(…) Mas permanece o desamparo do ser humano e, com isso, o anseio pelo pai, e os deuses. Esses conservam sua tríplice tarefa: afastar os terrores da natureza, conciliar os homens com a crueldade do destino, tal como ela se evidencia na morte, sobretudo, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que lhes são impostos pela vida civilizada que partilham (1927/2014, pp. 249-250).
Em 2020, o contexto vivido pela população brasileira era – e por muito tempo se manteve – de precariedade sanitária, bem como econômica e política. Não havia diálogo entre os governos federal, estadual e municipal sobre as questões fundamentais como a periculosidade do vírus e o momento de fazer confinamento. Dentro do governo central as medidas eram paradoxalmente divergentes: enquanto o presidente chamava o vírus de “gripezinha”, o ministro da saúde convocava profissionais da área da saúde de todo o Brasil a “se alistarem” na linha de frente de assistência, mas sem garantir equipamentos adequados de autoproteção. Podemos pensar que nossos pais e deuses, ou seja, nossos dirigentes romperam com o pacto, o que dificultou as ligações entre pulsões de morte e de vida dentro do tecido social.
Entramos na quarentena com o horror que vinha das notícias da pandemia no ultramar e com a fantasia de que, dessa pandemia, sairíamos rapidamente. No começo, não havia nada definido. E as pessoas não sabiam trabalhar com esses elementos pandêmicos. Além do medo da morte física, notamos nos grupos o medo da morte psíquica. Angústias não faltavam e transpareciam através da ideia de que a plataforma receberia uma altíssima demanda de profissionais da área da saúde, que chegariam psiquicamente desorganizados, à beira do suicídio.
Desde sua constituição, os grupos de elaboração confrontavam-se com diversas demandas, além daquela que propunha seu objetivo principal. Tratava-se de um espaço importante para o apaziguamento das angústias de morte, das angústias persecutórias e das angústias depressivas, vividas pelos participantes no contexto da pandemia. Por meio desse espaço de continência tentamos encontrar palavras para o inominável e para o desamparo vivido. Anzieu (1993/1975) afirma que a situação grupal desperta as feridas narcísicas de seus membros, porém consideramos que a regressão inicialmente vista nos participantes parecia estar ligada também ao meta-enquadre social e não somente à entrada em um grupo.
Embora a pandemia não tenha trazido novos elementos referentes ao desamparo, ela catalisou e desvelou esse desamparo social e político que os brasileiros já vivem há anos (Ferraz, 2016; Moritz Kon & Majolo, 2020), ou até mesmo desde que nossos povos originários foram colonizados e tratados como objeto de desejo dos seus colonizadores, instituindo no centro de nossa cultura uma relação de uso e abuso dos corpos brasileiros, corpos negros, corpos indígenas, corpos pobres. Essa lógica perversa é, nesse momento, escancarada, uma vez que o uso ilimitado do corpo do outro é estendido a todos, incluindo brancos e ricos. A ilusão de uma “gripezinha” logo caiu por terra, quando mesmo os hospitais privados mais prósperos estavam saturados, e profissionais tinham de escolher quem viveria e quem morreria. Como num naufrágio – claro que parte da elite teria botes salva-vidas, mas esses não eram suficientes para se escapar nem da morte, nem da loucura. O líder dizia: “É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”; “E eu com isso? Lamento!” – o que revelava seu desprezo pela vida dos brasileiros.
Käes (2012) desenvolve a ideia de que vivemos manifestações tangíveis de uma clivagem da civilização, o que a psique traduz como “No future”, “o mundo é perigoso dentro e fora” (p. 4, trecho traduzido pelas autoras). Para ele, “esse mal-ser[3] (…) produz tanto essa impregnação sombria e melancólica que se apodera dos espíritos e dos corpos, quanto também vínculos intersubjetivos e estruturas sociais, e produz essa cultura do excesso maníaco e onipotente” (2012, p. 4, traduzido pelas autoras). Estamos falando do desamparo que coloca em xeque a capacidade mesmo de existir e de empatizar. Diz ele:
O que produz o mal-ser ordinário é o apagamento progressivo do sujeito; a ausência de respondente às nossas questões sobre aquilo que somos e nos tornamos; o desaparecimento do respondente humano às demandas que nós formulamos a aparelhos administrativos; os micro traumas da vida cotidiana que os sonhos não conseguem mais reparar (2012, p. 5, trecho traduzido pelas autoras).
Os participantes chegavam como podiam. Ficavam os que conseguiam minimamente lidar com a ameaça que o outro representava. Alguns estavam em busca de um líder que lhes desse segurança e lhes mostrasse o caminho; outros estavam num excesso de atividade profissional que funcionava como descarga pulsional; outros buscavam um enquadre “pré-fabricado” para poderem organizar seus atendimentos, mas frustravam-se devido a plataforma não lhes oferecer isso. Os sentimentos de invasão e de transbordamento desses profissionais eram evidentes.
Apesar das diferenças entre os grupos, podemos afirmar que em ambos notamos uma manifestação da angústia de desamparo. De imediato os participantes chegavam ao grupo como um bebê voraz, tentando se alimentar de algo que não tinham mais, ou – pior ainda – com a sensação de nunca o terem tido. Alguns participantes tinham décadas de experiência na área; mas estavam apavorados, com medo de errar, como se existisse o psicólogo ideal. Havia tentativas de criar, de cuidar e de trocar, mas inicialmente essas iniciativas eram desesperadas e rígidas.
Cerdeira inicialmente havia se voluntariado para coordenar dois grupos. Após quase um mês de abertura do segundo grupo, tendo somente uma psicóloga comparecido nesse segundo grupo, Cerdeira a convidou para participar do primeiro grupo. Essa psicóloga já havia se mostrado muito rígida com sua paciente do projeto, se lamentando que a demanda não parecia diretamente ligada ao seu trabalho com a Covid-19. Ela buscou o grupo de elaboração quando sua paciente começou a faltar, e após duas ou três faltas, sua paciente lhe comunicou que fora infectada pelo vírus. Nesse momento a psicóloga impõe a ela uma condição: ir à sessão ou desligar-se do projeto. Sua incapacidade de acolher a paciente ou de perceber seu movimento contratransferencial (Puget & Wender, 2005), pode ser compreendida como uma incapacidade de conter sua própria destrutividade, assim como sua angústia de se contaminar pelo desalento de sua paciente. Nesse momento, a psicóloga entra no segundo grupo que já estava em seu terceiro encontro. Não aguentou ficar, de forma que rompeu com sua paciente e com o grupo. Não soubemos se rompeu também com o projeto. Seu abandono ao grupo e à sua paciente parece ter intensidade proporcional a seu sentimento de abandono.
Segundo Anzieu (1993/1975), do ponto de vista dinâmico, para a formação da ilusão grupal é necessário que a preservação da identidade seja transferida por seus participantes do indivíduo ao grupo. Assim, é necessário que os participantes resistam aos riscos de fragmentação, e, diante da ameaça ao seu narcisismo individual, reajam com a instauração de um narcisismo de grupo. Do ponto de vista econômico, para se passar à ilusão grupal, é necessário que as angústias persecutórias sejam contidas pela clivagem da transferência. De um lado, o grupo deve representar o seio bom, com a fantasia de que todos os irmãos e irmãs são objetos bons e se amam dentro do ventre da mãe boa, tal como a mãe, que os ama, que os nutre e os protege. E, do outro lado, é necessário que exista um objeto comum no qual seja projetado o seio mau. E, do ponto de vista tópico, Anzieu retoma o conceito de Eu ideal[4] como “constituído pela interiorização da relação dual da criança com a mãe de quem depende e por quem é protegida” (1993/1975, p. 83). Segundo o autor, a formação da ilusão grupal depende de uma substituição do Eu ideal individual por um Eu ideal comum.
Para essa participante, que parece ter procurado o grupo quando já estava no limite de uma implosão-explosão, o grupo não foi um lugar de contenção, mas talvez catalisador. Se sua paciente já lhe causava um risco, a pluralidade do grupo era o oposto do que ela buscava. Talvez a entrada em um grupo com tantas irmãs impediu-lhe a ilusão de que necessitava naquele momento: a de uma fusão com o seio materno. Nós supomos que, no início, no momento que estava sozinha com a coordenadora, esta parecia-lhe um objeto parcial, sendo o seio mau depositado no projeto vivenciado como persecutório e perverso. Contudo, com a entrada num grupo com colegas, a coordenadora pareceu-lhe impotente, frente a tantos bebês vorazes, e submissa, ou até mesmo cúmplice do projeto, transformando-se assim no objeto mau. As demais participantes podem ter sido inconscientemente consideradas por ela como rivais, que, assim como os brasileiros hospitalizados, concorriam por um sopro de vida (oxigênio) e por uma figura materna incapaz de dar a atenção que ela necessitava.
Quanto aos demais participantes dos diferentes grupos, questionamo-nos: o que os mantiveram lá? O que permitiu a constituição da ilusão grupal? Observamos uma regressão pelo contexto do grupo e, também, pela situação traumática social. Quem chegava ao grupo, chegava com a esperança inconsciente de uma “(…) restauração introjetiva de seu primeiro objeto – parcial – de amor perdido” (Anzieu, 1975, p. 163, trecho traduzido pelas autoras). Se a regressão, que precedia o grupo, colocava em risco as possibilidades de vínculo para uns, para outros foi isso que lhes possibilitou formar rapidamente uma ilusão grupal.
Psicólogos de diversas teorias participaram do dispositivo de grupo. Este possibilitara algo que talvez há muito tempo não nos permitíamos na psicologia: a tolerância teórica e a diversidade da clínica. A capacidade desenvolvida pelos grupos de acolher o que cada um tinha a dizer permitiu criar um laço afetuoso entre os participantes. Logo, as dúvidas de como conduzir um caso deixaram de ser assustadoras e não colocavam em xeque nem a teoria do psicólogo, nem sua capacidade clínica. Num momento em que nosso país era assolado pela intolerância e pela rivalidade, dentro de nossos grupos as diferenças foram compreendidas como forças motrizes para um trabalho em conjunto; utilizavam da objetividade de uns e da subjetividade de outros para dar contorno ao processo reflexivo. Tudo isso foi sustentado pelas funções parentais que os coordenadores asseguravam. Segundo Franch e Blum, “criar um lugar diferenciado para o outro e respeitar o lugar subjetivo dos outros significa garantir uma passagem para o dentro e para o fora, um meio de experimentações, um grupo, uma continuidade da existência” (2014, p. 110).
Se no grupo estava projetado o seio bom, o seio mau era depositado em outros objetos. E, no cenário em que estávamos, estes objetos não faltavam: políticos, conselho de ética de psicologia, assim como o próprio projeto. Para os participantes a não oferta de diretrizes precisas por parte do projeto incumbia-lhes a criação de um enquadre próprio, independente e acolhedor, como mostra a declaração seguinte. “O que o projeto quer de mim? Nada, aparentemente, somos nós que devemos construir”.
Nós, coordenadoras, recebemos a projeção do fantasma do psicólogo ideal, sem, no entanto, responder a essa demanda. Sustentando a angústia contratransferencial do não-saber, colaboramos com o grupo para que tomasse consciência desse fantasma e o desconstruísse. No grupo de Cerdeira, isso ocorreu com o surgimento de uma imagem do sábio da montanha. Esta imagem plástica foi depositária da fantasia de um líder absoluto, tirânico, onipotente e ausente, que abandona seus súditos, com os quais os participantes se relacionavam, ora como fiéis seguidores, ora como transgressores. Esta imagem permitiu que tomassem consciência do desejo por um líder, construindo assim um caminho próprio. Como disse uma participante: “Eu me pergunto se esta não é a questão do grupo: o que o projeto quer de mim?”; a quem outra participante lhe respondeu: “Você levanta uma reflexão muito dolorosa”. Dolorosa, mas agora possível de ser enunciada e pensada.
Segundo momento do grupo: o retorno à cultura
Saímos da paralisia da impotência frente ao imprevisível da pandemia e passamos ao reconhecimento da potência de cada um. Os participantes precisaram viver a dualidade entre onipotência e impotência dos primeiros encontros, para recuperarem a confiança em si mesmos e poderem se nutrir da vitalidade dos encontros para, então, confrontarem o desamparo.
Não por acaso, produziu-se uma mudança de posicionamento dos participantes em relação às demandas externas, na voracidade por conhecimento e nas atividades profissionais, que diminuíram. Os participantes passaram a se questionar sobre os excessos de lives que assistiam e sobre o excesso de atividades que assumiram: reconheceram seus saberes e também seus limites. O grupo fez sua função de continência, como aponta Houzel, baseando-se em Bion – função na qual se opera “um processo de transformação profunda que permite que sensações e emoções impensáveis passem a ser pensáveis, (…) em vez de serem puramente evacuadas em ações (…)” (1987, p. 29, trecho traduzido pelas autoras). Poder-se-ia pensar que a angústia do grupo agora era de castração: teriam de escolher.
Assim que os grupos começaram a constituir minimamente seu envelope, eles também foram recuperando alguns elementos culturais para sustentá-los no processo de reflexão. Em meados de julho de 2020, no grupo de Seixas e Angelo, a literatura começou a fazer parte do processo. Todos davam indicações de leitura, o que foi um alento diante de tanto sofrimento. O livro O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe, um escritor luso-angolano, foi o que mais reverberou. Ele é dividido em vinte contos: cada um traz a vida de um personagem com sua fragilidade humana e precariedade social; no final, os personagens encontram-se numa história comum de amparo. Era a metáfora do que estávamos passando e da tentativa de recuperar a esperança no porvir. Cada psicólogo via-se diante do horror inominável trazido pelos pacientes, ou pela própria experiência. A escuta e a palavra que o grupo restituía aos seus membros por meio da literatura davam-lhes a possibilidade de reconstruir seu envelope psíquico continente. Como diz Anzieu (1989/1985, p. 270):
a palavra do outro, se oportuna, viva e verdadeira, permite ao destinatário reconstituir seu envelope psíquico continente, e ela o faz na medida em que as palavras ouvidas teçam uma pele simbólica que seja um equivalente, no plano fonológico e no plano semântico, dos ecotactilismos originários entre o bebê e seu meio materno e familial.
A literatura, e este livro em particular, contribuiu para criar um repertório comum a esse grupo, que facilitou a nomeação e a representação do que era vivido. Os livros trouxeram o lúdico e potencializaram o espaço transicional, permitindo a recuperação da capacidade de sonhar e de se relacionar com o mundo externo. Não foi fortuito que esse livro foi comentado até o último encontro.
O reconhecimento da importância do encontro com o outro e o resgate das capacidades individuais geraram um retorno ao pacto social e permitiram a recuperação da cultura. Mesmo o Brasil estando à deriva, recuperamos certa esperança na força da cultura. Notamos, assim, uma simultaneidade entre o individual, o grupal, o institucional e o social. Quando o social se esfacelou, aspectos individuais também se desorganizaram. Ao recuperar a possibilidade de interação com o outro no ambiente grupal, tornou-se novamente possível acessar o fora, o social, a cultura.
No entanto, não é só de amor que se constitui um grupo. A pulsão de morte sempre esteve presente, ora velada, ora explícita, mas conseguíamos fazer as ligações pulsionais necessárias. A co-coordenação de Angelo e Seixas contribuía com isso, pois permitia que o grupo não se paralisasse. Enquanto uma das co-coordenadoras era tomada pela contratransferência do traumático, a outra entrava em cena. A parceria fazia com que ambas conseguissem manter a vitalidade grupal. Na coordenação solo supomos que a potência de vida do grupo, a maturidade psíquica e profissional dos participantes também permitiu a manutenção das ligações pulsionais e a preservação da coordenadora. Porém, o anúncio do fim do grupo trouxe à tona os aspectos regressivos das personalidades. Por isso Cerdeira procurou uma supervisão externa. Isso nos faz pensar que a rede de apoio que as coordenadoras criaram em torno de si possibilitou um envelope psíquico a si mesmas e, dessa maneira, uma extensão ao grupo.
Terceiro momento: o final do grupo
A plataforma anunciou seu término no final de 2020. A discussão do que aconteceria com os grupos começou a fazer parte de todos os encontros. Os participantes temiam perder esse espaço acolhedor, percebido como único ou, ao menos, raro: “A gente tem tantas perdas, a gente vai perder este espaço aqui?” (sic) – disse uma participante. Foi um desafio para a coordenação finalizar os grupos, uma vez que o cenário brasileiro era o seguinte: entrada em uma nova onda da pandemia no país; quase 200 mil mortos; quase dois milhões e meio de desempregados a mais do que no ano precedente. O encerramento exigiria um cuidado maior diante da possibilidade de as pulsões destrutivas prevalecerem e da possibilidade de o processo associativo cessar, vindo a tomar um caminho retraumatizante. Cuidamos para evitar que a perda do grupo se transformasse numa ruptura, como havia sido a entrada na quarentena.
Em um encontro do grupo de Cerdeira, no momento em que se falava sobre o término do projeto, sobre mortes, sobre luto e violência, fomos surpreendidas por uma das participantes que colocou sua filha de seis anos na reunião. As demais participantes se incomodaram. A coordenadora decide então brincar com a criança, com o grupo e com a participante, pedindo que a nova participante se apresente. Todas riram e jubilaram-se com o encanto da criança. Em seguida, Cerdeira pede à criança que se retire. Nesse momento, o que ela fez foi traçar os limites, protegendo a criança real ao distingui-la do lado mais arcaico do adulto, tirando-a do grupo, e acolhendo tanto a criança interna assustada da participante em questão como a criança interna do grupo. Assim constituiu-se um contorno estruturante por meio do desenvolvimento de uma pele flexível, mas que também tem limites.
O grupo de Angelo e Seixas precisou de dois encontros para seu encerramento. A utilização dos objetos transicionais foi fundamental para possibilitar o processo de desilusão grupal. O primeiro momento ocorreu em dezembro de 2020 e o segundo em fevereiro de 2021, após o período de férias. Antes das férias, utilizando o repertório grupal, decidiu-se realizar um amigo secreto de livros. Cada um dizia que livro gostaria de ler. E seu amigo secreto enviava-lhe o livro. Nesse momento de separação, o grupo escolheu um objeto transicional comum a todos os participantes, o livro, mas que, ao mesmo tempo, representava o interesse e a individualidade de cada membro. Abrindo mão da imagem de ideal grupal, ancorada no livro de Valter Hugo Mãe, o grupo favoreceu a constituição de um novo repertório. Com isso, iniciavam a possibilidade de criarem uma imagem de futuro que não era única para todos. Havia já um envelope psíquico grupal constituído, que permitia defenderem-se contra excessos internos e externos provocados pelo traumático. Existiam, assim, os recursos necessários para suportar o distanciamento entre os membros. Após as férias foram realizados mais três encontros. Ainda neste momento havia muita resistência frente às coordenadoras, que tiveram de sustentar o ataque contra a decisão de se encerrar o grupo. Para o último encontro, todos os participantes foram convidados, mesmo os que já́ tinham saído. A grata surpresa foi que todos compareceram e participaram da dinâmica de encerramento, na qual foi solicitado que trouxessem uma foto que representasse o que levavam do grupo para si e comentassem sobre ela. Usou-se mais uma vez de objetos mediadores para dar figurabilidade às experiências compartilhadas e à possibilidade de se enfrentar o futuro.
O encerramento do grupo serviu como um ritual do processo de luto – um luto necessário para a superação do traumático, luto pelo projeto de vida que cada um tinha antes da pandemia. Mesmo tendo a pandemia continuado, os participantes puderam liberar sua libido para a constituição de novos projetos de vida, pois puderam se sentir sustentados para lidar com o desmoronamento de um futuro. Sabemos que o processo de luto nunca se conclui completamente, mas ele fica mais próximo disso quando conseguimos seguir nossas vidas.
Apesar dos ataques, a tolerância dos grupos e o acolhimento ofereceram o que a nossa realidade brasileira não estava permitindo: diferente de um líder que não escutava, as coordenadoras estavam lá e sobreviveram a cada ataque do grupo; diferente das mortes súbitas, o grupo terminava paulatinamente; diferente de uma morte sem rito de passagem e sem corpo, os grupos tiveram fim com uma cerimônia de adeus, e com algo que pudesse dar corpo ao sentimento de seus participantes, através de objetos mediadores.
Conclusão
Como coordenadoras, notamos como a dimensão de quem era de fato o paciente da plataforma se perdia, dado que os psicólogos também estavam se apoiando na rede para lidar com suas angústias. Os grupos cumpriram sua função de sustentação, transformaram-se em um envelope que permitiu, por meio da intimidade entre seus membros, que se constituísse um espaço de sonhar e de criar. Durante o primeiro ano de isolamento, o grupo trouxe a continuidade, não como repetição de uma rotina que tornava os dias indiferenciados, mas de uma continuidade de potência de vida: quebrando a rotina alienante e promotora de adoecimento e abrindo espaço para a criatividade.
Notamos o potencial desses grupos no trabalho com o traumático, por meio do testemunho. Carla Penna aponta a potência do trabalho grupal na elaboração de lutos coletivos e em sua capacidade de transformar “dor e silêncio em narrativa e luto, de histórias encapsuladas em histórias compartilhadas pelo e no social” (2015, p. 25). Dentro da área da psicologia, os psicólogos estão geralmente isolados e expõe-se a um sofrimento do qual nem sempre estão protegidos. A pandemia e este momento sócio-político não trouxeram algo de novo nesse sentido, mas exacerbaram a vulnerabilidade que esse isolamento causa. Esses grupos possibilitaram que seus membros deixassem cair a máscara do psicólogo ideal e que integrassem seus limites humanos e profissionais.
Nesse momento de conclusão gostaríamos de ressaltar que embora nosso grupo tenha sido nomeado “grupo de elaboração” consideramos que ele se constituiu como um grupo de reflexão. Metapsicologicamente o termo elaboração se refere a um processo muito mais profundo do que conseguimos fazer. No jogo intersubjetivo, as experiências compartilhadas refletiam sobre o outro, espelhavam as angústias, mas também a potência, fazendo ligações, reconstituindo a cadeia associativa e reanimando o psiquismo. Os grupos conseguiram criar um envelope psíquico suficientemente firme e elástico para permitir um quantum de ligação pulsional necessário para sobreviver e sonhar. Contudo, ainda estávamos elaborando os restos: restos de agressividade que pudemos a posteriori fazer ligação, nas diversas reuniões que tivemos para a escrita deste trabalho, e restos que esperamos poder elaborar com trocas provindas deste artigo.
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Puget, J., & Wender, L. (2005-2006). Mundo Superpuesto entre paciente y analista revisitado al cabo de los años. Revista AEAPG, 30, 69–90.
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[1] O presente texto foi publicado originalmente na Revista In Analysis, v.7, n.1, maio 2023, intitulado Le groupe comme enveloppe psychique en temps de pandémie et de barbarie au Brésil. https://doi.org/10.1016/j.inan.2022.100330
[2] Psicanalistas, Angelo e Seixas são ex-alunas e Cerdeira é aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[3] O conceito de Malêtre, de Käes, traduzido pelas autoras como “mal-ser”, trabalha com o conceito mal-estar (Malaise) de Freud, enfatizando o mal-estar da cultura na constituição do Eu. Esse mal seria durável e provocado, não apenas pela repressão das pulsões destrutivas, mas sobretudo pela fragilidade do Eu.
[4] Na tradução de Anette Fuks e Hélio Gurovitz de O grupo e o inconsciente: o imaginário grupal foi traduzido como Ego Ideal. Optamos por utilizar o termo Eu Ideal.