Instituto Sedes Sapientiae

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Proposta Envelhecine

 por Luciana Goulart Mannrich[1]

 

O Envelhecine é um projeto que busca ampliar o debate sobre o envelhecimento a partir da linguagem cinematográfica. Para Andrei Tarkovski, o maior estímulo para o seu trabalho é que a visão de mundo transmitida pelo filme possa “ser reconhecida por outras pessoas como parte integrantes de si próprias, como algo a que nada, até agora, conseguira dar expressão”. (Esculpir o tempo, p. 8)

Partindo da premissa de que o cinema consegue dar vazão a conteúdos que ainda não pudemos representar, capaz de fazer com que algo exibido na tela passe a fazer parte de quem somos e nos ofereça nova linguagem para falar do que nem sabíamos, o Grupo de trabalho sobre envelhecimento propõe debater o intrincado tema do envelhecimento tendo filmes como intermediários.

O percurso do nosso grupo de trabalho começou com estudos sobre o luto, a partir dos quais formulamos a hipótese de que a capacidade de elaborar as perdas que se sucedem ao longo da vida colabora para um processo de envelhecimento criativo.

O filme Ensina-me a viver, visto no primeiro Envelhecine, traz essa questão de maneira muito poética: “Num acaso, Harold percebe que Maude traz uma tatuagem em seu braço: nada é dito a respeito, mas parece que ela foi uma sobrevivente do holocausto, o que torna ainda mais espantosa sua vitalidade e alegria. Ela frequentava diversos funerais, talvez até como recurso de elaboração simbólica frente aos traumas que deve ter sofrido com tanta crueldade e mortes nos campos de concentração. O quanto esse hábito que ela tinha de ir ao cemitério e enterros era como um ritual, um modo de poder enlutar os tempos mortos e traumáticos como também se preparar para a própria morte, podendo assim escolher como morrer. Este é um ponto essencial para a experiência de Maude: ela estar preparada para morrer faz dela livre para viver.” (Benetti, Fabiana. Envelhecine: um novo projeto do Grupo de trabalho sobre o envelhecimento[2].)

Em geral, as perdas se fazem sentir de maneira mais amena ao longo da vida e aumentam de intensidade conforme ficamos mais velhos, atingindo esferas fundamentais nas quais balizávamos nossa existência: trabalho, amigos, amores.

No filme Boa sorte, Leo Grande, acompanhamos Nancy Stokes, uma viúva com filhos adultos, que contrata um garoto de programa para experimentar-se sexualmente como nunca havia podido antes. A partir desse filme, pudemos pensar sobre a complexa relação que passamos a estabelecer com nosso corpo e sexualidade quando perdemos a juventude e o ideal de beleza ligado a ela.

Nos dois filmes acima mencionados, o processo de elaboração está em curso e as crises vivenciadas a partir do envelhecimento podem ser representadas, enriquecendo o sujeito e sua vida. Há casos, entretanto, em que a elaboração não se faz. Algo de muito mortífero toma conta do sujeito e torna impossível representar as perdas. O luto não pode acontecer e o sujeito submerge em si, iniciando um processo de demência.

“Essa falta de elaboração pode ser então razão suficiente para levar um sujeito pelo caminho sem retorno do esquecimento mais radical e violento? Quais seriam os impedimentos para o sucesso de um processo elaborativo da perda? Em que consiste essa perda que, por meio da interrupção da comunicação com os outros, afasta o eu e o isola no esquecimento mais mortífero, pois constitui a morte da própria identidade?” (Goldfarb, Delia. Demências. P. 17). Guiado por essas perguntas, nosso grupo passa a se debruçar sobre o tema das demências.

Também o Envelhecine se debruça sobre o tema das demências em 2024. O primeiro filme do ano, Meu pai, foi escolhido por ser capaz de nos transportar para o cotidiano de pessoas que experienciam a Demência de tipo Alzheimer. Podemos sentir na pele a dúvida da filha, o cansaço do marido, o temor da cuidadora e a angústia imensa do sujeito com demência, que tateia por um mundo outrora conhecido em busca de marcas que já não são capazes de ajudá-lo a encontrar a si mesmo.

No segundo encontro deste ano, que acontecerá no dia 22 de junho, assistiremos ao filme Viver duas vezes. Nesse road movie espanhol acompanhamos Emilio, recém diagnosticado com Doença de Alzheimer, em busca de um amor da juventude na sua cidade natal. Sua jornada nos convida a pensar em como aproveitar o tempo que temos a nosso dispor e qual o sentido que damos à nossa existência.

Esses encontros seguirão acontecendo no Cine LT3, cinema de rua localizado em Perdizes, e aqui cabem algumas palavras sobre o posicionamento político do grupo, que embasa a escolha desse local. Acreditamos que o processo de envelhecimento, para ser bem sucedido, precisa acontecer em comunidade, sendo necessário para isso uma cidade acolhedora. Sabemos o quanto isso pode parecer utópico na São Paulo caótica e dominada pelo processo de especulação imobiliária.

Mas sabemos também que é justamente na ação que mobilizamos afetos e lutamos por transformação. Assim, ao ocuparmos um cinema de rua com nossos corpos e reflexões, criamos uma comunidade de pessoas interessadas em não só pensar sobre o envelhecimento, mas também em envelhecer bem. E vamos construindo essa possibilidade ao encontrarmos e ocuparmos lugares acolhedores de encontro na cidade.

Nós do Grupo de trabalho sobre o envelhecimento desejamos que essa proposta seja bem-vinda e que encontre pessoas interessadas em criar conosco um lugar acolhedor pra pensarmos sobre o envelhecimento. Lugar este tanto físico quanto psíquico, que acolha o processo de envelhecimento em suas dores, reflexões e adoecimentos, bem como toda a saúde e criatividade que ele pode conter.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, interlocutora do Grupo de trabalho sobre o envelhecimento.

[2] Texto publicado no Boletim online do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae: https://sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/boletimonline/2023/11/17/envelhecine-um-novo-projeto-do-grupo-de-trabalho-sobre-o-envelhecimento/

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